Maria Emília Bottini
O cinema é uma das grandes contribuições
da arte e da ciência para a humanidade. É uma forma eloquente de contar
histórias e resgatar a magia dos contadores que por vezes ainda adormecem em
nós. O filme japonês A Partida (Okuribito, 2008) é um belo exemplo disso. É
envolvente, mesmo que o tema seja tudo aquilo que não se deseja ouvir e muito
menos se preparar. Morrer é fato inquestionável, mas constantemente negado. É
uma experiência única, pessoal e intransferível. Passa-se a vida escondendo a
doença, a decrepitude e a decadência, especialmente da vida das crianças. As
religiões quase sempre tratam o assunto de uma forma muito reduzida, semeando
ideias de medo e de castigo eterno. Morre-se um pouco a cada dia. Talvez seja
sábia a máxima que afirma: deve-se viver cada dia como se fosse o derradeiro.
O filme narra alguns episódios da vida de
Daigo Kobayashi, um violoncelista frustrado da orquestra de Tóquio. Quando a
orquestra encerra suas atividades por falta de público, ele e sua esposa, Mika,
retornam a sua cidade natal e passam a morar na casa deixada pela mãe, que
morreu há dois anos. A cidade traz para Daigo lembranças amargas,
especialmente, a dor pelo abandono do pai na infância, de quem nunca mais
soube.
Encontra no jornal uma oferta de emprego
em uma agência de viagens. Contudo, ele constata se tratar de serviço para
“viagens derradeiras”. A contragosto, aceita o emprego ritualístico de “nokanshi”,
um especialista em acondicionar e purificar os mortos para a derradeira viagem.
Revela-se espantosamente apto nesta arte, expressando delicadeza e respeito
admiráveis. Ele esconde isto de sua mulher, Mika, por crer que é um trabalho
vergonhoso e pouco aceito socialmente. Ao negar o trabalho, nega a dificuldade
de aceitação da finitude da vida. O relacionamento mal resolvido com o pai
ressurge de forma decisiva ao se defrontar cotidianamente com a morte.
O filme aborda a dicotomia da sociedade
japonesa que se moderniza e se ocidentaliza ao mesmo tempo em que tenta manter
alguns traços da sua própria cultura. Com o passar do tempo, Daigo busca
compreender a morte para além do trabalho. Contudo, sua esposa descobre e o
repele por considerar um trabalho indigno. A perda da esposa o reconduz à
reconciliação com a música que aprendera por insistência do pai. Junto ao
violoncelo, encontra uma pedra embrulhada (pedra-mensagem). Quando criança, o
pai lhe contara que antes da invenção da escrita, os antigos procuravam uma
pedra que expressasse seus sentimentos e a brindavam aos seus entes
queridos. Podiam, dessa forma, ler os
sentimentos do outro pelo peso e textura.
A dificuldade estabelecida em vida com o
pai só tem desfecho com sua morte, quando está acondicionando e purificando o
corpo. Ao abrir a mão direita, encontra a pedra que ele havia dado ao pai
quando criança. Compreende que ele estava em seu coração até o último momento.
Era hora de perdoar as escolhas do pai perdoando-se, pois o mistério da morte
se vislumbra no coração da vida e ela é uma oportunidade aberta a todos para a
necessária mudança cotidiana de rota, mesmo que seja a última da frágil
condição humana.
A Partida é um fio condutor para a
reflexão de um tema definitivo, mas não oferece receita pronta, cada um tem que
caminhar o seu próprio caminho passo a passo, é um convite a repensar qual o
sentido que damos aos parcos dias que vivemos.
Maria
Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos sábados.
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