Maria Emília Bottini
As histórias me agradam, sejam as de meus pacientes, sejam as dos livros, dos filmes ou da família.... Simplesmente histórias. Com meus nonnos maternos, sempre que estive na companhia deles quando menina, aprendi com suas histórias povoadas de magia.
Oscar Neimeyer
disse certa vez que “a vida é o tempo de vir contar uma história e ir embora”.
Apenas um tempo é o que temos para contar e fazer nossa história. As histórias
me encantam com suas possibilidades de nos fazer refletir, sorrir, chorar. Elas
me movimentam a compreender a existência.
A história que
transcrevo a seguir me foi contada de forma oral por uma pequena/grande mulher,
uma contadora de histórias que foi minha professora no Planalto Central.
“Certa vez existia uma mulher que vivia em uma bela e grandiosa
floresta. Ela e a floresta pareciam ser uma.
Ela conhecia todas as plantas daquele lugar: as de
fazer remédio, as de fazer comida, as de fazer adornos. Conhecia cada lugar,
cada paisagem e se alguém se aproximasse, embora não houvesse ninguém com ela,
poderia até pensar que ela conversava com as plantas e os animais.
Ocorre que num dia ela começou a sentir uma coisa lá
no fundo que ela não compreendia bem. Então como de costume ela foi para um
lugar na floresta onde ela conversava com Deus.
Olhou para tudo ao redor, para o céu, a natureza toda
e começou a dizer: “eu não sei bem o que estou sentindo, eu sou muito feliz,
muito grata por tudo o que tenho neste lugar, mas estou sentido uma coisa na
minha barriga, no meu peito, parece falta de alguma coisa ou de alguém”.
Ah! Deus imediatamente entendeu o que ela estava sentindo.
E já começou a moldar, feito de barro, um ser assim, parecia muito com ela, mas
só que tinha uma coisa diferente entre as pernas, comprido como uma semente
longa. Assim que terminou de moldar soprou.
E este ser deu cambalhotas e saiu rolando e caiu bem
lá embaixo do lado dela.
Ela ficou muito feliz, grata por ter nova companhia. E
eles dois começaram a viver juntos e se descobriram, se amaram. E ela continuou
vivendo como sempre viveu: se embrenhava na floresta, passava o dia todo por lá
e voltava no final do dia, como sempre.
Ocorre que um tempo depois, aquele novo ser que foi
chamado de homem, começou a achar ruim que ela demorava muito para chegar em
casa; ficava muito tempo fora, a cabana ficava bagunçada. Ele nem tinha
relógio, porque não existia isso naquele tempo, mas ele fazia um sinal
apontando para o braço como se tivesse dizendo que tinha passado da hora.
O tempo passou e ele sempre com esse mesmo incômodo,
ela estava se sentindo muito desconfortável com aquilo tudo, até que um dia
resolveu ir de novo naquele lugar conversar com Deus.
Aí disse ela: “Eu sou tão grata por tudo o que tenho e
pela companhia desse homem, desse ser que vive perto de mim agora, mas pela forma
que ele está se comportando, da forma como fala comigo e age, eu imagino que
daqui a pouco ele vai começar a dizer que ele foi criado antes de mim. E Deus
olhou para ela e disse: “Sim, ele vai começar a dizer que sim, que foi criado
antes de você, que você veio dele, mas nós duas sabemos que não foi bem assim”.
Em uma noite
fria de julho, em Brasília, ela que nos reuniu ao redor de uma fogueira para
comemorar a vida vivida e encerarmos o curso chamado “Caminhos do Conto” que
ministrou com maestria e sensibilidade. Ouvimos e contamos histórias. Essa
história permaneceu em mim por algum tempo até a memória perder parte dela.
A vida deu
algumas voltas depois daquela noite e não se repetira aquele momento de fogo,
frio, mulheres, comida, crianças, música, histórias...
Precisei dessa
história e mandei-lhe um recado, mas ela não tinha registro escrito dela, tão
somente oral. Amorosamente gravou a história, e eu a recebi com imensa alegria
em uma manhã de novembro. Ao digitá-la, pois desejava contá-la a um grupo de
mulheres, decidi que publicaria para que ela voasse e outras mulheres tivessem
acesso a ela também.
Voltei a morar
no Rio Grande do Sul e fui convidada a fazer uma palestra para um grupo de
mulheres sobre Outubro Rosa, um movimento para estimular a participação feminina
no controle do câncer de mama, doença que atinge muitas mulheres no mundo todo.
A data é celebrada anualmente, com o objetivo de compartilhar informações sobre
o câncer de mama e promover a conscientização sobre a doença, proporcionar
maior acesso aos serviços de diagnóstico e de tratamento contribuindo para a
redução da mortalidade feminina por causa do câncer de mama.
O tema era um
tanto difícil na minha avaliação, pois teria que tocar na ameaça da vida quando
adoecemos e como enfrentamos essa ameaça, falar da morte e do morrer, tema
pouco palatável para um sábado à tarde.
Escolhi essa
história para iniciar a conversa e provocar sintonia com as mulheres. Ao
finalizar a história as mulheres riram. Essa era uma das minhas intenções que
elas se descontraíssem, se alegrassem por estarmos juntas naquela fração de
segundos e seria um espaço em que pudessem aprender sobre elas mesmas, sobre
cuidados com a saúde física, mas também com a saúde mental. Algumas comentaram
“É o que vivemos em casa”, “Deus é uma mulher, isso é engraçado”, “Os homens
fazem isso o tempo todo com a gente”.
A narrativa desta
história inverte uma série de questões que estamos acostumadas a ouvir e
torna-se engraçada, justamente por não estarmos acostumadas a ela. O que nos
contam é outra versão: a de que a primeira mulher veio do homem, isso para os
que acreditam na concepção do criacionismo.
Mas e se
tivéssemos criado o homem?
E se Deus fosse
uma mulher?
E se a versão da
história fosse outra, a de que a mulher criou o homem do barro, da terra, do
movimento e que o sopro da sua vida lhe fosse dado por ela? A mulher gerando a
vida, desde o princípio, desde sempre. Talvez a história tivesse sido outra.
Quem sabe?
Essa é a magia
das histórias, pois nos permitem pensar em outras possibilidades possíveis,
podemos subverter a ordem estabelecida, nem que seja dentro de nossas cabeças e
essa é a maior libertação.
Maria
Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos sábados.
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