Maria Emília
Bottini
Holocausto
Brasileiro é um livro-reportagem, lançado em 2013, pela jornalista Daniela
Arbex premiada por seu trabalho em várias ocasiões. Daniela realizou um
trabalho de pesquisa difícil de deglutir, por vezes não se acredita em muitas
coisas que se lê em suas páginas de denúncia, mas os fatos são reais, não são ficção,
e aconteceram em nosso país, as fotos que nele vemos corroboram para que se
acredite.
Tentemos acreditar
que isso não é humano, mas lembrando o que uma amiga sempre comenta: “se um
humano fez, eu também faria”. Essa é nossa tragédia, isso também foi da ordem da
espécie a que pertencemos, visto que nem um animal trata os de sua espécie dessa
forma deliberadamente violenta.
Palavras dizem
coisas e o título desse livro é sugestivo, comecemos por ele. Holocausto foi o
assassinato em massa de seis milhões de judeus, ocorrido na Alemanha pelos
nazistas na Segunda Guerra Mundial. O fato é que não foram só judeus que foram
eliminados da face da terra, foram também homossexuais, deficientes, ciganos,
os considerados por Hitler e seu exército como raça inferior. Pessoas de toda
sorte chegavam de trens até os campos de concentração, vestiam uniformes
listrados e seus cabelos eram raspados, objetos pessoais eram surrupiados pelos
alemães e submetidos ao trabalho forçado até a exaustão física e mental que os
levava a morte.
Em Barbacena,
Minas Gerais existiu um dos maiores Hospitais Psiquiátricos do Brasil: O Colônia.
A semelhança com o Holocausto Alemão se dá porque as pessoas chegavam de trem,
ônibus ou viatura da polícia até o hospital, vestiam uniformes listrados até os
fiapos, seus cabelos eram raspados e eram submetidos a trabalho forçado,
escravo e muitos morreram.
Muitas
atrocidades no trato com pacientes ditos doentes mentais foram cometidas em
nome do que se chamou de tratamento mental, dentre elas pelo menos 60 mil
pessoas perderam suas vidas jogados ao próprio inferno, sem voz ou vez. Nos
períodos de mais movimento no Colônia chegavam a morrer até dezesseis pessoas
por dia. Muitos foram enterrados como indigentes, em cova rasa, sem nome ou
coisa nenhuma.
Outros, por
sua vez, tiveram seus corpos vendidos. Após a morte ainda continuavam a serem
lucrativos, seus corpos, seus ossos e seus órgãos eram comercializados.
Estima-se que arrecadaram pelo menos 600 mil reais com esse mercado ilegal. Nem
na morte alcançaram dignidade humana. De 1969 a 1980 foram mais de 1800 corpos
vendidos para dezesseis faculdades do país, sem nenhum questionamento.
Afinal quem questionaria?
As famílias? As faculdades? Os profissionais da saúde mental? Ninguém perguntou
nada, porque nada queriam saber. Esses corpos nada representavam além de cadáveres
decompostos em ácido, no próprio pátio do Colônia, com o testemunho ocular dos
pacientes.
Muitas
histórias são reveladas nesse livro que dói a alma segurar nas mãos: dor,
sofrimento e gritos são revelados. Os gritos saem das páginas e ecoam a nos
deixar quase surdos. São gritos de desespero, de lamento de vítimas de uma
psiquiatria que pouco ou nada tinha de humana, mas que sem sombra de dúvida geravam
muito dinheiro.
Gritos de
corpos que morriam de frio pela escassez de cobertas e roupas. Gritos de corpos
expostos a nudez da alma. Gritos de corpos famintos pela comida racionada,
doenças não tratadas, banho gelado, eletrochoque e serviços forçados. Gritos de
corpos feridos, corpos machucados.
Para os dias
gélidos os pacientes, como estratégia de sobrevivência, se juntavam no pátio,
faziam dois círculos, ficam próximos e movimentavam-se. Ou mesmo andavam
pendurados um aos outros, aquecendo-se mutuamente. A noite para dormir não
havia nem cama, nem colchão suficiente o capim e o chão eram a alternativa.
Muitos pacientes dormiam juntos na mesma cama e isso causava o sufocamento de
alguns. O Colônia chegou a ter 5000 mil pacientes, isso equivale a população de
muitas cidades brasileiras.
Muitos bebês
foram roubados de suas mães. Após o nascimento eram arrancados dos braços de
suas genitoras e entregues para adoção sem jamais se saber de seus paradeiros. Muitas
mães passaram anos chamando por seus filhos e isso não era nem delírio e nem
alucinação, era dor da alma espancada.
Denúncias
foram feitas, mas pouco ou nada aconteceu. Franco Basaglia, italiano pioneiro
na luta antimanicomial ao visitar o Colônia, chamou a impressa e disse: “estive
hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei
uma tragédia como essa”. Ele era uma autoridade no assunto, mas sua voz não
ecoou numa sociedade que não desejava ouvir coisa alguma a esse respeito.
O psiquiatra
Ronaldo Romão também denunciou o que acontecia, mas perdeu o emprego. O repórter
José Franco e o fotógrafo Luiz Alfredo escreveram uma reportagem e seu título
já resume os fatos “Sucursal do inferno”. O documentário realizado por Helvécio
Ratton, Em nome da razão (1979)
também narrava através das imagens a dor e as atrocidades. O diretor comentou
que no terceiro dia das filmagens, uma paciente o segurou pelo braço e disse:
“Eu sei o que vocês estão fazendo. Tirando foto de todo mundo. Assim, quando a
gente morrer, as pessoas vão saber que estivemos aqui”.
A paciente
sabia qual era seu destino no Colônia. A lucidez dessa paciente não permitiu
que se mudasse o rumo dos fatos, foi preciso muitos anos para que se entendesse
do que a louca com lapsos de saúde mental verbalizava.
Como se
percebe muitas denúncias sobre o que acontecia atrás dos muros do Colônia, mas
assim como no Holocausto Alemão, a sociedade brasileira seguia sua rotina
diária, sem se importar como eram tratados os doentes mentais que estavam
internados no submundo da maldade humana. Isso não lhes interessava, pois já
não eram dignos de humanidade alguma, já haviam perdido essa condição
tornando-se não humanos, eram corpos desprovidos de identidade.
O livro deu
origem ao documentário Holocausto Brasileiro (2016) dirigido por Daniela Arbex
e Armando Mendz e está disponível no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=CVMGZqV2cP4.
O documentário dá voz e vez ao vivido, dá voz aos personagens reais dessa parte
da história da saúde mental ou seria doença mental, composta de luz e sombras
de uma triste realidade que não se pode negar.
O livro e
documentário são referência ao denunciar a nossa loucura coletiva, a de que loucos
somos nós que não queremos saber, porque saber é dor e exige ações que alterem
o contexto de injustiças constatado. Contudo quem não sabe de suas memórias, não
conhece suas dores, corre o risco de repeti-las, esse é o perigo.
Nunca consegui assistir ao filme nem ler o livro. É dor demais!
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