11 junho 2019

O DIA EM QUE A MAMULENGA AVOOU


Maria Amélia Mano

Palco de madeira de caixote, triângulo e rabeca desafinada, olhos grandes de meninos no chão esquecido. Seca, sertão. Cabeça de madeira talhada, corpo de chita, trancelim, fuxico, renda, rima e sonho só ela só: Flô, mamulenga. Tantas quadrilhas, bandeirinhas e balão no céu, procissão, algodão doce, maçã do amor, zabumba, fogueira, padroeira. Flô dançava sozinha nessa vida cinza feita de açoite de trovão de destino.
Bonequeira movimentava fantoche. Cantiga e verso mudado na hora conforme riso e susto de menino. Repente, enredo escrito na palma da mão da memória em kombi mambembe enfeitada de fita, pó de histórias, pote de barro, roça de milho, caatinga. Entranhada de xique-xique. Atravessada de mandacaru, sede e fome de alegria. Flô dançava sozinha nessa vida de terra rachada cheia de nódoa de fruta arrancada a facão.
Sanfona de fole distorcido, aperreado, baião sem sentido. Bonequeira bebeu cachaça em cabaça. Esqueceu Flô em balaio de palha. Mascate levou em cangalha de jegue mais rapa-dura pra vender na feira. Semvegonhagem de rala-buxo arrochado com quenga, Mascate perdeu pra Jagunço que largou roubo em beira de cacimba. Achou sem valor, sentiu gastura de doçura que nunca teve e nem queria ter na vida. Acauã cantou e Flô se viu mais sozinha sem dança nessa vida esturricada pilada de tristezura.
Olhou pra baixo e reflexo da água pouca era gente conhecida: Saci Pererê, ET de Varginha, Vaqueiro, Lampião, Padre Cícero, Seu Lunga, Pavão Misterioso, Zé Grilo, Chicó, até o Diabo e a Morte. Com trouxa de retalho, fugiram todos do cordel. Queriam outro fim pra poesia, outra sina, saga, mote, viola, canto de curió. Cansaram da lida no escuro da cacimba, esconderijo e calabouço, sem lamparina. Vida bagaço seco de existência.
Era manhãzinha de noite enluarada que ainda enfeitava céu. Flô insistiu no existir mais doce. Beija-flor azul louco e lírico buscava colorido de pétala e doçura de néctar. Se enganou, se aprochegou, errou e triscou. Beijou Flô vestida de chita, lambuzada de rapa-dura. Ao longe, um pífano fez abrir rosa amarela, janela em casa de taipa, sorriso em moça triste, sabiá cantou.  Choveu. Aquele mundo gasto e tosco nunca mais foi o mesmo.
Transbordou água de cacimba. Povo saiu sem Bonequeiro e fez festa sem história pronta, sem verdade certa, sem final sabido, sem definido, sem definitivo, surpresa que é sustância de alma, farinha. Palcos de madeira de caixote foram alegrar meninos e sertões. Flô presepeira, arretada dançava não, pulava não. Flô avoava em canto doce de asa azul. A mamulenga avoava nessa vida cheia de encontro, cantoria e beijo de mel de amor. 

Texto da Oficina Santa Sede Circuito


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