Maria Emília Bottini
Tive o
privilégio de conhecer uma amiga de quem me recordo com frequência, e em maio fez
dois anos que faleceu. Convivi pouco tempo com ela, mas era um tempo vermelho
no sentido da urgência, então foi bem vivido e aproveitado. De setembro de 2016
até seu falecimento em maio de 2017 nossas horas tinham intensidade que só
podemos desfrutar com quem sabe o valor do tempo.
Conheci-a através
de um projeto que chamamos de Yoga-terapia, em que fazíamos a yoga e depois
conversas compartilhadas aconteciam, sempre ricas de saberes mútuos de quem
aprendia uns com os outros. Duas vezes por semana eram esses encontros, na
medida do seu possível, fazia seus exercícios e conversávamos sobre tudo.
Ríamos muito,
pois minha amiga tinha o dom de rir, apesar de toda dor visível em seu frágil
corpo, muitas vezes também choramos juntas. Ela permaneceu conosco até não
poder mais frequentar, faltou algumas vezes, pois fazia quimioterapia que já se
prologavam além do suportável. As dores eram sua companheira diária.
Incentivei que
ela escrevesse o que sentia e vivia. O câncer que desmilinguia seu corpo. Sua vitalidade
me impressionava, talvez por saber que estava próxima de sua finitude, vivia e
nos ensinava a viver.
Em março me
devolveu alguns livros que lhe emprestei. Junto deles me entregou o texto que
partilho como homenagem para quem muito me ensinou. Percebi ao ler que se
despedia da vida, que sabia de sua morte eminente e se preparava para o fim. Ao
ler chorei por toda a beleza que dividia comigo. Após a leitura, disse-lhe que
molduraria o texto, acho que não acreditou.
Dias depois
passei em uma loja e comprei um porta retrato vermelho, pois sempre achei que
era a cor apropriada para um texto que se manteria vivo. O texto está no meu
escritório a me lembrar que preciso ser. Hoje, fico a imaginar suas mãos magras
a escrever com tamanha poesia aprendida na riqueza do que viveu. Ela tocava
flauta e neste texto fez música com as palavras.
“Preciso ser
Preciso me imbuir da massa que me faz existir.
Do barro que me constrói e de um dos elementos que
me torna humana densa.
Preciso de braços fortes para carregar o barro fardo
e fechar as frestas das palavras malditas, dos pensamentos irados, da navalha
que me cortou e dos açoites que deformaram a minha pele.
Preciso de água que limpe os excessos. Cristalina
para tornar moldável meu caráter fraco, meus sulcos de erros vãos da covardia
que me rodeia agora.
Preciso de água que me limpe e me torne novamente
pura para seguir reluzindo e refletindo toda a luz que me alcance.
Preciso ser gás hélio, mais leve que o ar, para
poder sonhar e fingir que transmutei do pó e que ao pó retornarei como solo e
rocha.
Preciso de flores para colorir meus olhos cansados e
turvos das lágrimas que hoje escorrem pelas dores da carne, pela coragem
perdida, pela doçura que sonhei existir.
Preciso
de som de flauta, para preencher a falta dos amigos que tenho, do amor de homem
que nunca tive companheiro.
Preciso de anjos para me darem asas, sair deste
tijolo a pique escaldado pelo Sol de caatinga e que secou meu riacho doce de
criança inocente.
Sou nada, porque nada me pertence, apenas a dor que
penso que é minha, mas que é de uma existência apenas.
Sou nada, porque nada quero ter, nada quero sentir,
nada quero ser.
E para isso, não preciso de nada, apenas ser SER
PRECISO”.
Ser preciso é
tudo o que temos quando estamos diante da nossa finitude, nada se precisa. Nada
pode ser levado de bens materiais ou de qualquer natureza. Chegamos e partimos
de mãos vazias. Somente nosso ser que mora em nosso corpo está diante do
caixão, nada mais.
O ser é quem
permanece, não há o ter, talvez isso nos deixe tão perplexos diante da morte.
Só permanece o que somos/fomos um corpo e algumas roupas que se não escolhermos
antes serão escolhidas por outros. Tal simplicidade assombra.
Tive a honra
de me despedir de minha grande amiga. Estive no hospital e lhe agradeci pela
oportunidade e pela convivência. Beijei sua mão magrinha e fininha, com um
restinho de vida ainda em seu corpo. Sai do quarto do hospital com a certeza
que não a veria mais e as lágrimas escorreram pela certeza da ausência.
No dia
seguinte faleceu de forma serena e sem dores. Estive no seu velório, fiquei por
lá por um bom tempo a chorar a falta que já sentia e ainda sinto, mas me
alegrei com seu grupo de choro que tocaram músicas para acalentar nossa dor.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
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