29 junho 2019

PRECISO SER





Maria Emília Bottini



Tive o privilégio de conhecer uma amiga de quem me recordo com frequência, e em maio fez dois anos que faleceu. Convivi pouco tempo com ela, mas era um tempo vermelho no sentido da urgência, então foi bem vivido e aproveitado. De setembro de 2016 até seu falecimento em maio de 2017 nossas horas tinham intensidade que só podemos desfrutar com quem sabe o valor do tempo.
Conheci-a através de um projeto que chamamos de Yoga-terapia, em que fazíamos a yoga e depois conversas compartilhadas aconteciam, sempre ricas de saberes mútuos de quem aprendia uns com os outros. Duas vezes por semana eram esses encontros, na medida do seu possível, fazia seus exercícios e conversávamos sobre tudo.
Ríamos muito, pois minha amiga tinha o dom de rir, apesar de toda dor visível em seu frágil corpo, muitas vezes também choramos juntas. Ela permaneceu conosco até não poder mais frequentar, faltou algumas vezes, pois fazia quimioterapia que já se prologavam além do suportável. As dores eram sua companheira diária.
Incentivei que ela escrevesse o que sentia e vivia. O câncer que desmilinguia seu corpo. Sua vitalidade me impressionava, talvez por saber que estava próxima de sua finitude, vivia e nos ensinava a viver.
Em março me devolveu alguns livros que lhe emprestei. Junto deles me entregou o texto que partilho como homenagem para quem muito me ensinou. Percebi ao ler que se despedia da vida, que sabia de sua morte eminente e se preparava para o fim. Ao ler chorei por toda a beleza que dividia comigo. Após a leitura, disse-lhe que molduraria o texto, acho que não acreditou.
Dias depois passei em uma loja e comprei um porta retrato vermelho, pois sempre achei que era a cor apropriada para um texto que se manteria vivo. O texto está no meu escritório a me lembrar que preciso ser. Hoje, fico a imaginar suas mãos magras a escrever com tamanha poesia aprendida na riqueza do que viveu. Ela tocava flauta e neste texto fez música com as palavras.
Preciso ser
Preciso me imbuir da massa que me faz existir.
Do barro que me constrói e de um dos elementos que me torna humana densa.
Preciso de braços fortes para carregar o barro fardo e fechar as frestas das palavras malditas, dos pensamentos irados, da navalha que me cortou e dos açoites que deformaram a minha pele.
Preciso de água que limpe os excessos. Cristalina para tornar moldável meu caráter fraco, meus sulcos de erros vãos da covardia que me rodeia agora.
Preciso de água que me limpe e me torne novamente pura para seguir reluzindo e refletindo toda a luz que me alcance.
Preciso ser gás hélio, mais leve que o ar, para poder sonhar e fingir que transmutei do pó e que ao pó retornarei como solo e rocha.
Preciso de flores para colorir meus olhos cansados e turvos das lágrimas que hoje escorrem pelas dores da carne, pela coragem perdida, pela doçura que sonhei existir.
Preciso de som de flauta, para preencher a falta dos amigos que tenho, do amor de homem que nunca tive companheiro. 
Preciso de anjos para me darem asas, sair deste tijolo a pique escaldado pelo Sol de caatinga e que secou meu riacho doce de criança inocente.
Sou nada, porque nada me pertence, apenas a dor que penso que é minha, mas que é de uma existência apenas.
Sou nada, porque nada quero ter, nada quero sentir, nada quero ser.
E para isso, não preciso de nada, apenas ser SER PRECISO”.
Ser preciso é tudo o que temos quando estamos diante da nossa finitude, nada se precisa. Nada pode ser levado de bens materiais ou de qualquer natureza. Chegamos e partimos de mãos vazias. Somente nosso ser que mora em nosso corpo está diante do caixão, nada mais.
O ser é quem permanece, não há o ter, talvez isso nos deixe tão perplexos diante da morte. Só permanece o que somos/fomos um corpo e algumas roupas que se não escolhermos antes serão escolhidas por outros. Tal simplicidade assombra.
Tive a honra de me despedir de minha grande amiga. Estive no hospital e lhe agradeci pela oportunidade e pela convivência. Beijei sua mão magrinha e fininha, com um restinho de vida ainda em seu corpo. Sai do quarto do hospital com a certeza que não a veria mais e as lágrimas escorreram pela certeza da ausência.
No dia seguinte faleceu de forma serena e sem dores. Estive no seu velório, fiquei por lá por um bom tempo a chorar a falta que já sentia e ainda sinto, mas me alegrei com seu grupo de choro que tocaram músicas para acalentar nossa dor. 


 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog