Maria Emília Bottini
No livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche, há uma pequena história que se chama
Autobiografia em cinco capítulos, que transcrevo a seguir:
“1. Ando pela rua. Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio... Estou perdido... sem esperança. Não é culpa minha. Leva uma
eternidade para encontrar a saída.
2. Ando pela mesma rua. Há um buraco fundo na
calçada. Mas finjo não vê-lo. Caio nele de novo. Não posso acreditar que estou
no mesmo lugar. Mas não é culpa minha. Ainda assim leva um tempão para sair.
3. Ando pela mesma rua. Há um buraco fundo na
calçada. Vejo que ele ali está. Ainda assim caio... é um hábito. Meus olhos se
abrem. Sei onde estou. É minha culpa. Saio imediatamente.
4. Ando pela mesma rua. Há um buraco fundo na calçada. Dou a volta.
4. Ando pela mesma rua. Há um buraco fundo na calçada. Dou a volta.
5. Ando por outra rua”.
Gosto muito deste pequeno grande texto, pois nele há sabedoria, se
soubermos interpretar.
Uso-o frequentemente com pacientes em consultório, palestras, atividades em
grupo, com amigos, familiares... Desde que o li na época em que fazia doutorado
em educação, ele penetrou meus sentidos e não me abandonou mais, recorrendo a
ele para entender alguns comportamentos alheios e os meus próprios.
Dia
desses, reencontrei uma linda garota ao acaso, quando me dirigia ao banco. A
conheci com cinco anos de idade, hoje uma mulher feita, que me chama de tia
pelos laços afetivos que se criaram e perduram através do tempo. Acompanhei seu
crescimento de longe e pelas escolhas que fiz não nos vemos com frequência.
Conhecemos
uma mulher em comum que por anos a fio namorou um alcóolatra. Eu mesma lhe dei
muitos conselhos para findar a relação, pois isso não lhe traria futuro algum,
visto que o namorado não tinha interesse em mudar seu comportamento, não admitia
o problema com o álcool ou mesmo demonstrava intenção de procurar internação e
tratamento psicológico ou psiquiátrico. Essa mulher o considerava um homem bom
quando não bebia. Trabalhei muitos anos com mulheres vítimas de violência
doméstica e alcoolismo dos esposos, é um discurso recorrente de que eles são
bons quando não bebem e de fato são. E quando mesmo não bebem? São poucos os
dias de calmaria, os outros são de gritaria, socos, pontapés, chutes, agressões
de toda a sorte para si e sua prole que assiste e internaliza modos de viver e
sentir. Via de regra os dias de sobriedade são poucos.
Os
anos se passaram e depois de muito sofrimento emocional e físico ela decidiu romper
com a relação abusiva que se permitia viver, o que muito me agradou saber, mas
minha alegria não perdurou.
Logo
a seguir minha “sobrinha” me conta que agora está envolvida novamente com outra
pessoa, que é pior que a anterior, pois não contribui com as despesas
domésticas e moram juntos. Refere que as coisas estão um tanto mais complicadas
que antes, pois o atual namorado é mais jovem e tem problemas com álcool
também.
Pensando
na história acima, essa mulher ainda anda pela mesma rua e escolhe cair no
mesmo buraco, ainda sem perceber que é seu hábito, seu desejo a queda e sem dar-se
conta de que a decisão de mudar é única e exclusivamente sua, de mais ninguém.
Essa é a grande aprendizagem, somos nós os responsáveis pelas escolhas que fazemos.
O
que nos faz decidir sair dos buracos que caímos?
Qual
é o limite para suportar a dor e o sofrimento?
Por
que não optamos por romper relacionamentos tóxicos?
Por
que caímos com frequência no mesmo buraco e de novo e de novo?
Só
decidimos sair dos buracos da vida quando optamos por outra rua. Outra via que
de fato nos conduza para outro lugar, por vezes escolhemos sem escolher, sem
decisão, sem posição firme de mudança, então permanecemos naquilo que
conhecemos, que dominamos. Entendemos e assimilamos pela baixa autoestima que
impera a nos mostrar que aquele é nosso lugar de sofrimento, de permanência, de
estacionamento. Nos acomodamos tanto a
esse lugar que por vezes nem percebemos o tamanho que tem, cavamos
com intensidade e seguimos afundando.
Nossas
vidas têm muitas possibilidades se conseguirmos vislumbrar. Nem sempre temos
discernimento e recursos internos para fazermos outras escolhas e perduramos
nas que conhecemos e minimamente dominamos. Pensamos e acreditamos que este é o
melhor espaço para estar. Mudar sempre exigirá esforço e desacomodação. Nenhuma
mudança ocorre na calmaria, na mesmice. Quem não muda, não muda nada dizia
Winston Churchill.
Escolher
outra rua e caminhar implica em não olhar para trás, para não virar estátua de
sal como a esposa de Ló, para não paralisar e fragilizar. Caminhar olhando para
frente é uma escolha em direção a se fortalecer e perseguir o novo, o
desconhecido. Isso dá medo? Evidente que dá, mas a coragem é feita passo a
passo. Coragem é o medo vencido.
Caminhar
é necessário até encontrarmos outra rua, mas sem a ilusão de que não haverá novos
buracos no percurso, mas temos a possibilidade de escolher e não colocar os pés
neles, por serem nocivos ao nosso bem estar. Caminhar por novas ruas é sair da
condição de vítima de si mesmo, é assumir o passo e o compasso das escolhas.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
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