19 outubro 2019

ENTRE LIVRARIAS E FARMÁCIAS

Maria Emília Bottini

Desenvolvo em Erechim (RS), um projeto chamado No cinema e na vida, no qual são exibidos filmes e, logo após, ocorre uma ‘conversa compartilhada’, como chamou uma participante, que dá o tom aos encontros. Encerramos no dia 27 de dezembro de 2017 a última sessão do ano com o curta-metragem ganhador do Oscar de melhor animação de 2012, Os fantásticos livros voadores do Senhor Lessmore (2011). O cerne dessa animação está no conhecimento da escrita, que passa de geração em geração, e aborda também a capacidade que o livro tem de se tornar imortal e atravessar os tempos. É só observar em tempos de guerra quem se torna um vilão a ser combatido: os intelectuais e os livros são enviados às fogueiras, pois representam sérias ameaças, são muito perigosos.
Uma das participantes, já idosa, destacou que na cidade de Erechim não há nenhuma livraria e que isso é muito ruim, mas que há uma quantidade imensa de farmácias. Auto-questiona-se e nos questiona se de fato haveria tantos doentes assim... Outra participante comentou que há apenas um sebo resistindo ao tempo, mas que os preços eram impraticáveis que não entendia a razão de tal fato.
Um senhor que, silenciosamente, acompanhava as falas ergueu a mão e questionou se a gente abriria uma livraria nos tempos em que se precisa de dinheiro para pagar as contas, ninguém abre um negócio para ser altruísta, visto que não há almoço gratuito. Há demanda para livros? Quem lê livros hoje?
Ficou claro entre uma fala e outra que estamos optando por farmácias e não por livrarias ou livros. Quem é professor sabe que é muito difícil hoje fazer com que os estudantes, sejam eles do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, universitários ou de Pós-graduação leiam e, se lêem, não conseguem traduzir em entendimento, em compreensão o que leram. Há muito o texto escrito compete com as imagens perdendo sua força de cativar. Não ler não significa não escrever, pois com o advento das tecnologias digitais, nunca as pessoas escreveram tanto, a questão é: o que escrevem se não lêem?
Por que farmácias? Nas farmácias tem os remédios, os cosméticos, a ilusão da cura, do estar bem o tempo todo ao alcance da mão, ops, do bolso e haja bolso. Geralmente os remédios são receitados por médicos ou por si mesmo (automedicação), é condição para a melhora tomá-los e o alívio da dor virá e senão vir, outros estarão à disposição.
E os livros? Ah! Os livros eles nos provocam, incomodam, por vezes são complexos e tem pré- requisitos para serem digeridos:  precisamos saber o alfabeto, saber juntar as letras e depois entender as palavras, as frases, as linhas, as entrelinhas, o texto, o contexto e o além texto... Isso dá trabalho e requer tempo. Precisamos ser alfabetizados para ter os livros em mãos e entendê-los. Quando temos essa condição eles nos oferecem possibilidades e, se nos permitirmos, descobriremos um mundo para além do nosso umbigo tão pequeno.
Certa vez li o livro Paula  de Isabel Allende, uma grande autora, que escreve sobre a dor da perda de sua filha por erro médico. Esse livro ficou na minha memória, porque imaginei cada pequeno prazer e cada sofrimento vivenciado pela autora. Um livro difícil de ler, mas que faz a gente compreender o luto da perda de uma filha e a elaboração que vai acontecendo até a autora se permitir despedir-se da filha que já não vive mais.
Tinha uma professora no meu mestrado que dizia que dividia os livros em duas possibilidades: os para a felicidade e os para o conhecimento, estes nem sempre vão nos deixar você bem após a leitura. Muitos foram os livros que li e me deixaram angustiada, desacomodada e com a esperança diminuída. Linchamentos: a justiça popular no Brasil que trata de como somos seres violentos e matamos, ou melhor, linchamos outros humanos. Holocausto Brasileiro que narra as aberrações no Hospício de Barbacena em Minas Gerais e como conseguimos trancafiar e maltratar tantos de nós em uma sequência de longos anos. Diário de Anne Frank uma adolescente se escondendo da guerra com a família, mas que escrevia suas vivências entre o medo e a esperança. Esses são apenas alguns que me fizeram questionar a humanidade e o tal de humanismo.
Conforme a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro, entidade mantida pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), a pesquisa ouviu 5.012 pessoas, alfabetizadas ou não, representa, segundo o Ibope, 93% da população brasileira. Em 2011 os leitores representavam 50% da população, em 2015 eles são 56%. O índice de leitura, apesar de pequeníssima melhora, indica que o brasileiro lê apenas 4,96 livros por ano, desses, 0,94 são indicados pela escola e 2,88 lidos por vontade própria. Do total de livros lidos, 2,43 foram terminados e 2,53 lidos em partes. A média anterior era de quatro livros lidos por ano, aumentamos um pouco, claro que a passos de tartaruga.
A Bíblia é o livro mais lido em qualquer nível de escolaridade. Aparece em todas as listas como últimos livros lidos e mais marcantes. 74% da população não comprou  nenhum livro nos últimos três meses. Entre os que compraram livros em geral por vontade própria, 16% preferiram o impresso e 1% o e-book. Outro dado que mostra que não haverá livrarias e sim farmácias é que 30% dos entrevistados nunca compraram um livro.
É o que tem para hoje diria meu amigo bombeiro, nossas estatísticas não são nada animadoras, pois nada tem sido feito para mudar a triste realidade de uma educação que opta pela produção em massa de analfabetos funcionais. Dessa forma, enterramos possibilidades de futuro desse país varonil. Está explicado o por que temos tantas farmácias,  o por que a realidade dói.
Estou aqui a pensar se não devo passar na farmácia para comprar algum remédio que amenize minha dor de saber, mas acho que ainda não inventaram esse remédio.  

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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