26 outubro 2019

O MÍNIMO PARA VIVER


Maria Emília Bottini




Com direção de Marti Noxon o filme O mínimo para viver (2017) foi baseado na própria luta deste contra transtornos alimentares que sofreu durante uma fase de sua vida. O título em português o mínimo para viver, se explica porque em muitos casos os transtornos alimentares podem durar anos por causa de um ciclo que se constitui em restrição alimentar e processos compulsivos, gerando o mínimo considerado para sobreviver, o que dificulta significativamente o tratamento do paciente, por esse acreditar que está no controle da situação, e isso o filme o exibe de forma bastante lúcida e impactante.
É um filme tocante sobre um tema complexo que é o distúrbio alimentar, especificamente a anorexia, problema comum em uma sociedade que cada vez mais se preocupa com a formas perfeitas e o desempenho irretocável de seus habitantes.
O corpo toma forma única, magra, fina, esquálida e quem está fora desses padrões não conta, ou conta para ser alvo de chacotas e violências das mais diversas formas. Com isso, o corpo padece de alguns absurdos para entrar, forçadamente, nesse lugar estabelecido por uma sociedade de aparência a qualquer custo.
Assisti ao filme por recomendação de uma paciente, a quem tenho imenso prazer de acompanhar sua evolução ao abandono de uma imposição de formas para a aceitação de novos padrões. Evolução essa que se deu ao longo de seu processo psicoterápico entre dor e prazer de dar-se conta de quem é para além do que é. Ela comentou positivamente sobre o filme, disponível no Netflix, então o assisti.
A narrativa trata de Ellen, uma jovem que apresenta relação conflitiva com a mãe que, após a separação vive com outra mulher. Seu pai é uma figura ausente durante o filme todo, não há uma só cena em que ele apareça fisicamente, tamanho descaso e ausência em sua vida, portanto, não dá o ar da graça, mas a ausência tem espaço dentro da vida psíquica de Ellen.
A madrasta por sua vez é presente. É ela quem define algumas condutas de tratamento terapêutico, também tem uma meia-irmã chamada Kelly com tem uma relação mais próxima e afetiva. Ellen pertence à geração dos nem estuda e nem trabalha. É uma jovem artista esquálida que pratica atividade física compulsivamente para perder o peso que seu corpo não tem; um corpo de quase ossos que sente os efeitos dos maus tratos pessoais por longo tempo e nele vai impregnando marcas deste sofrimento.
Sua madrasta preocupada com o que percebe a leva para uma consulta com Dr. Beckham, devido à debilidade física. Ele recomenda internação pelo quadro que se apresenta de baixo peso e ausência de menstruação, mas impõe condições para a adesão ao tratamento. Ellen reluta dizendo que não precisa, porém se interna novamente, mas praticamente não adere ao tratamento.
O filme inicia com ela saindo de uma internação de outra clínica de recuperação, certamente por abandoná-lo também, entrando no ciclo repetitivo de internação em internação, comum em muitos casos nesse tipo de patologia. Ciclo vicioso de colocar a responsabilidade pela melhora no outro, fora de si, como se dele não dependesse nenhuma demanda ou esforço.
O tratamento nesta clínica consiste em morar em uma casa com outros seis pacientes com problemas parecidos com os dela. Os cuidados são dispensados por uma enfermeira que convive na casa com eles. Na equipe, além do Dr. Beckham e da enfermeira, há uma psicóloga de grupo. Ellen participa de atendimento individual e de família, frequenta um grupo chamado “reclame e chore” e a arte também está presente como proposta terapêutica.
A convivência na casa não é das mais agradáveis, pois todos a seu modo, sofrem e estão envolvidos com suas dores pessoais, o que dificulta a convivência e interação com os demais e por vezes, agredir é a defesa mais frequente utilizada por todos. Agressão como reação, pois são agressivos consigo mesmo levando seus corpos à exaustão e aos maus tratos o tempo todo. É assim que aprenderam a se relacionar pela agressão de si que é transferida ao outro.
Transtornos alimentares caracterizam-se por problemas na constituição da imagem corporal do sujeito, que ocasionam preocupações excessivas com a forma e o peso. Essas preocupações resultam em sintomatologias compulsivas específicas, como obesidade não orgânica, restrição e recusa de alimentação acompanhada por medos singulares, no caso da anorexia ou um aumento desmedido do apetite que leva à ingestão exagerada de alimentos, seguida de vômitos, uso de laxantes e/ou diuréticos, no caso da bulimia. E ainda, a prática exaustiva e desmedida de exercícios físicos, no caso da vigorexia, quando da obsessão pelo corpo perfeito.
Aproximadamente 90% dos casos de transtornos alimentares atingem mulheres jovens, porém recentemente tem ocorrido um aumento no número de transtornos em homens e em adultos de ambos os sexos. Provavelmente por sofrerem pressões sobre seus corpos de forma compulsiva e insistente em meios de comunicação de massa. Esses transtornos atingem entre 1% e 4% da população e seguem aumentando de frequência significativamente nos últimos anos.
Ellen se encontra com Dr. Beckham, que ouve sua dor e queixa, e devolve-lhe responsabilidade para que ela assuma o curso das escolhas que vem fazendo em sua vida e coloca-a a par de sua realidade pessoal: a de estar próxima a ser entubada, pois perdeu mais peso. Irritada, decide abandonar o tratamento quando confrontada com a imaturidade de sempre e a de achar que alguém irá salvá-la desse lugar que se colocou, que não precisa de esforço pessoal e emocional para sair dessa prisão que a alimentação se tornou em sua vida, então ela se afasta, foge da responsabilidade de assumir seu tratamento.
Ao sair da clínica retorna para a casa da mãe. Nesse retorno para a mãe-útero há uma cena bastante simbólica no reencontro entre mãe e filha, e até tocante, na qual compreendemos o que dói em Ellen. A mãe não teve uma boa relação afetiva com a filha desde seu nascimento, pois apresentou depressão pós-parto, foi negligente aos cuidados maternos e isso pode ter desencadeado os problemas com a alimentação. Ellen deseja, inconscientemente, esses cuidados mesmo que tardiamente o colo perdido. A mãe comenta que ao conversar com uma pastora, esta lhe aconselha que seria bom para a relação se alimentasse sua filha. A mãe propõe isso para Ellen, que rejeita essa possibilidade no primeiro momento. A mãe, diante de sua impotência em ajudar, se dá conta que pode perder a filha, mas a autoriza a desistir se assim a filha desejar.
O que significa alimentar-se? Alimentação é vida, é existir. Não comer é morrer, é desejar sucumbir, desaparecer de corpo e alma da vida, é não estar, é definhar até a exaustão. O inverso também é igual comer demais também é um ato de destruição de si.
Ellen se permite o alimento vindo das mãos da mãe. Nesse instante podemos perceber que alguns transtornos alimentares iniciam muito precocemente na relação mãe-bebê. Ao permitir-se ser alimentada recebe o sopro da vida através da alimentação e do colo materno e isso é mobilizador de forças internas que a movimentam para um novo rumo em sua existência: o de se permitir existir, permanecer, viver.
Às vezes quando percebemos que não estamos mortos, mas que chegamos muito próximo de findar a vida, é quando nos reposicionamos diante dela e é o que ocorre com Ellen, após um sonho em que se vê quase morta, dá os passos necessários por uma nova internação. O final do filme é otimista e alentador, mas fica a dúvida possível se dessa vez será diferente de tantas outras. A decisão pela internação dessa vez é assumida por ela em ter uma nova chance de se encontrar e permanecer viva.
Se você ou alguém que conheça está enfrentando um transtorno alimentar, é importante procurar ajuda profissional para que seja compreendido em seu sofrimento psíquico. Buscar ajuda quando se está em sofrimento é um sinal de fortaleza e não fraqueza. Com acesso a tratamento medicamentoso e apoio psicológico individual ou mesmo coletivo, as pessoas que apresentam anorexia podem se recuperar e levar uma vida normal, desde que reencontre um sentido para sua existência que, muitas vezes, é sem sentido.
Apesar das críticas recebidas, pois a atriz Lily Collins (Ellen), também enfrentou a anorexia, o filme serve de alerta para um assunto que precisa ser discutido de forma intensa e realista, o que a obra proporciona e pode servir para um pedido de ajuda diante de um problema tão grave que pode levar à morte em vida. Faço uma advertência: esse não é um filme para nos divertir e sim para fazer pensar.

  [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 


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