Maria Emília Bottini
Sou psicóloga há algum tempo e
gosto do que faço, pois sempre é possível aprender algo com os que cruzam nosso
caminho, mesmo que nem sempre seja fácil ou entendível o que aprendemos e o que
ensinamos. Foi num desses momentos que aprendi que só o amor nos ajuda a
enfrentar situações dolorosas e difíceis.
Assim aconteceu, em uma tarde
de janeiro, ao fazermos uma visita domiciliar a um senhor idoso cuja esposa
encontrava-se doente. Ao chegarmos veio nos receber e convidou-nos para entrar.
Adentramos e deparamo-nos com
uma situação chocante: sua esposa, magérrima, acomodada em uma cadeira de rodas
ao lado do fogão a lenha que aquecia a casa, de pijama longo em pleno verão, de
pantufas, com sonda nasal e sem nenhum brilho no olhar. Era um olhar para o
nada... Parecia não nos ver. Cabeça caída para o lado. Há treze anos sua esposa
começou a ter problemas de saúde e há sete que não fala, não caminha, não se
alimenta sozinha. Apenas vegeta presa em seu corpo, em si mesma. Observo-a e ainda percebo sua beleza de outrora, seu
cabelo loiro e sua mocidade perdida pelas rugas do tempo, está bem cuidada e
suas roupas asseadas.
Ela desenvolveu a doença de Alzheimer
e as morbidades associadas. Seu companheiro me explica que no início ela não
lembrava de fazer a comida, não sabia encontrar a vassoura ou sequer lembrava
de ter penteado o cabelo ou feito o almoço. Isso é perder suas referências de
vida, é ir aos poucos desocupando a memória de si, do outro e do entorno; é
estar presente, mas não estar, há uma presença física e uma ausência psicológica.
É ser apenas um pedaço porque o todo já partiu de si.
Cena triste e dolorosa se você
imaginar o que descrevo. Adoecer não é nada divertido ou fácil.
Quando o questiono sobre como
tem sido acompanhar sua esposa enferma por tantos anos, ele relata que já está
acostumado e que acorda de duas em duas horas todas as noites para mudá-la de
posição em sua cama, palco onde viveram o amor da juventude.
Relata que cuida dela com a
ajuda de seu filho solteiro, que gosta de cuidá-la, é sua tarefa diária,
encontrou sentido no sofrimento da esposa. Perguntei-lhe se não havia pensado
em colocá-la em um asilo, que isto representava uma possibilidade diante do
tempo da doença, ele me olha como se lhe tivesse feito uma pergunta absurda,
reage negativamente e repete que a ama e que esta é sua vida, sua história.
Falei-lhe que tinha certeza que
ele a amava porque senão não a cuidaria, já teria ido embora. Disse-lhe que
tinha certeza, também, que ela havia sido uma boa esposa, pois já não havia
contato físico íntimo, não tinha mais seu afeto, não tinha mais o seu sentir,
não tinha mais sua voz, seu abraço, seu beijo... Mas permanecia fisicamente a lhe
lembrar de tudo o quanto viveram.
Escorreram-lhe abundantes lágrimas em sua face magra e
sofrida.
O que sobrou realmente foi o
amor, somente o amor pode tornar visível o cuidado amoroso. Sem ele ninguém
cuida do outro, sobretudo um outro doente e sem ação, preso em si, todo
mequetrefe, mas desesperadamente humano em sua aparência.
Falei-lhe, olhando em seus
lindos olhos azuis, que ele era um homem admirável, que seus filhos deveriam
ter orgulho dele. Então contou-me de sua longa vida juntos, de suas lutas, de
suas conquistas, do quanto batalharam para ter a tão sonhada terra uma vez que eram
agregados, e que tudo o que tinham hoje era fruto de muito sofrimento, muito
trabalho. Afirma que ela sempre tinha ajudado muito. Enquanto falava havia
muita ternura e amor em seu olhar, próprios de um ser amoroso. Fico a imaginar
o quanto sua memória é povoada de cenas de suas vidas: casamento, filhos,
beijos, pequenas discussões, ranços que eram amenizados em momentos de amor, de
fazer amor.... Eu me despeço dele dando-lhe um abraço da vida inteira, aquele
que só alguns raros seres tem a possibilidade de desfrutar e vivenciar.
Ao sair de sua casa, pensei no
quanto precisaríamos ter mais seres amorosos que transportam o amor para outra
dimensão, para além de um corpo bonito e da beleza física, para além da
juventude, para além de si mesmo centrando-o no outro como cuidado que se torna
visível pela compaixão, pelo zelo, pelo carinho, pela preocupação. Nas palavras
de Leonardo Boff, “o cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância
para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu
destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua
vida”.
Há uma música dos Paralamas do
Sucesso que diz: “... cuide bem do seu amor seja quem for”, nesta cena vivida, a
música estava viva diante dos meus olhos. Nossa humanidade tem sede e fome de
seres amorosos; seres que se preocupem com o outro no verdadeiro sentido do
importar-se. Parece que cada vez mais raro estes seres são, fico feliz de ter
cruzado o caminho com um deles. Seriam mais suportáveis os embates da vida se
partilhássemos nossos dias com pessoas que amamos e que nos amam, mas que nos
amam tanto a ponto de nos cuidar mesmo que estejamos doentes e sem ação. Esses
são radicalmente e desesperadamente seres amorosos a nos ensinar que amar sem
esperar nada em troca é amor-doação.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
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