24 dezembro 2019

VÉSPERA


Maria Amélia Mano



O dedo do homem suspenso a um centímetro do botão da bomba, aguardando a derradeira ordem.
A louca diz que seu lema é se colocar no lugar das pessoas e dos animais e que viu uma bola luminosa. Ela sabe, sente.
As arandelas em forma de lua iluminam a avó na cadeira de balanço na varanda.
          Uma antiga meretriz de mãos nas costas atravessa o jardim público sem medo e sem esperança.
Teresa bota batom vermelho e torna a noite inesquecível.
O sismógrafo, o radar, o sensor diz que não há nada a declarar, nada a declamar, mas há.
Amanda, tão pequenina, espia pela fechadura o doce passar dos vultos solitários como se se despedisse deles. Ela sabe, sente.
A tia rabisca um caramujo na trama do algodão para bordar com linha que brilha no escuro.
O silêncio do ateu reverencia a queda da folha mais lenta do mundo como um grande milagre.
Dagmar canta Quando a Luz dos olhos meus.
Um comando maior calcula data mais propícia e o presidente da república deve decidir o andamento da missão.
A cadelinha acompanha o camelô na fuga com relógios falsos na rua sabendo que não adianta ter pressa. Ela sabe, sente.
Suicida escreve carta vendo último por de sol: me mato para apagar acúmulo de dor de amor.
Poeta minucioso faz um haicai sobre dunas e silêncios com palavras fortes tomando chá leve de casca de laranja.
Heloísa triste na frente fria rasga postais de um amor que já se foi.
O presidente da república convoca homens de confiança.
Árvore cheia de fé convida passarinho para um canto-reza da manhã do dia que seria a último. Ela sabe, sente.
Adelaide estala todas as juntas, dobradiças que precisam de algum óleo de alegria e entusiasmo.
Júlia ouve Caetano com aroma de café com os pés descalços, virados para fora da rede florida.
Julieta desfia, desmancha, enovela e limpa as ferrugens da alma.
Em um telefonema de cinco minutos, o presidente da república define o fim da missão.
Melina, menina loira mostra o caderno de desenho para desconhecidos na estação de trem, aliviada. Ela sabe, sente.
Íris oferece açúcar mascavo, cristal ou adoçante e uma flor de capuchinha no pires de chá.
Poliana toma sopa no asilo e seus olhos brilham mais intensamente por lembrar de um sabor distante. 
Luíza espana porta-retratos da cristaleira o pó de pequenas eternidades.
O dia que seria véspera seguiu seu curso como sempre, como se nada houvesse. Todos iguais seduzidos pelo futuro, assombrados pelo passado, contaminados de afazeres, sem escutar a natureza, os loucos, as crianças e esse cotidiano mágico como estreia, como vida breve e quente feito pés se tocando debaixo de lençóis, papel embrulhando pão recém saído do forno e esse pássaro que voa da minha mão, inquieto.   

Ilustração: Shozo Ozaki

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog