Maria Amélia Mano
O
dedo do homem suspenso a um centímetro do botão da bomba, aguardando a derradeira ordem.
A
louca diz que seu lema é se colocar no lugar das pessoas e dos animais e que
viu uma bola luminosa. Ela sabe, sente.
As
arandelas em forma de lua iluminam a avó na cadeira de balanço na varanda.
Uma
antiga meretriz de mãos nas costas atravessa o jardim público sem medo e sem
esperança.
Teresa
bota batom vermelho e torna a noite inesquecível.
O sismógrafo, o radar, o sensor diz que não há nada a declarar, nada a declamar, mas há.
O sismógrafo, o radar, o sensor diz que não há nada a declarar, nada a declamar, mas há.
Amanda,
tão pequenina, espia pela fechadura o doce passar dos vultos solitários como se se despedisse deles. Ela sabe, sente.
A
tia rabisca um caramujo na trama do algodão para bordar com linha que brilha no
escuro.
O
silêncio do ateu reverencia a queda da folha mais lenta do mundo como um grande
milagre.
Dagmar
canta Quando a Luz dos olhos meus.
Um comando maior calcula data mais propícia e o presidente da república deve decidir o andamento da missão.
Um comando maior calcula data mais propícia e o presidente da república deve decidir o andamento da missão.
A
cadelinha acompanha o camelô na fuga com relógios falsos na rua sabendo que não
adianta ter pressa. Ela sabe, sente.
Suicida
escreve carta vendo último por de sol: me mato para apagar acúmulo de dor de
amor.
Poeta
minucioso faz um haicai sobre dunas e silêncios com palavras fortes tomando chá
leve de casca de laranja.
Heloísa
triste na frente fria rasga postais de um amor que já se foi.
O presidente da república convoca homens de confiança.
O presidente da república convoca homens de confiança.
Árvore
cheia de fé convida passarinho para um canto-reza da manhã do dia que seria a
último. Ela sabe, sente.
Adelaide
estala todas as juntas, dobradiças que precisam de algum óleo de alegria e
entusiasmo.
Júlia
ouve Caetano com aroma de café com os pés descalços, virados para fora da rede
florida.
Julieta
desfia, desmancha, enovela e limpa as ferrugens da alma.
Em um telefonema de cinco minutos, o presidente da república define o fim da missão.
Em um telefonema de cinco minutos, o presidente da república define o fim da missão.
Melina,
menina loira mostra o caderno de desenho para desconhecidos na estação de trem,
aliviada. Ela sabe, sente.
Íris
oferece açúcar mascavo, cristal ou adoçante e uma flor de capuchinha no pires
de chá.
Poliana
toma sopa no asilo e seus olhos brilham mais intensamente por lembrar de um
sabor distante.
Luíza
espana porta-retratos da cristaleira o pó de pequenas eternidades.
O dia que seria véspera seguiu seu curso como sempre, como se nada houvesse. Todos iguais seduzidos pelo futuro, assombrados pelo passado, contaminados de afazeres, sem escutar a natureza, os loucos, as crianças e esse cotidiano mágico como estreia, como vida breve e quente feito pés se tocando debaixo de lençóis, papel embrulhando pão recém saído do forno e esse pássaro que voa da minha mão, inquieto.
O dia que seria véspera seguiu seu curso como sempre, como se nada houvesse. Todos iguais seduzidos pelo futuro, assombrados pelo passado, contaminados de afazeres, sem escutar a natureza, os loucos, as crianças e esse cotidiano mágico como estreia, como vida breve e quente feito pés se tocando debaixo de lençóis, papel embrulhando pão recém saído do forno e esse pássaro que voa da minha mão, inquieto.
Ilustração: Shozo Ozaki
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