Quando Mariazinha me abordou na entrada do Cel Antonino
dizendo que tinha um presentinho na sala do Serviço Social fiquei meio
ressabiada... não era presente bom... ela não conseguia ainda conviver com esse
jeito de ser assistente social que chega sempre batendo papo com as mulheres
antes de ir à folha de ponto. Ao entrar na sala senti um cheiro forte do tipo
cheiro de ranço, como diria Elenir. Era tão forte que pensei em não entrar.
Entrei, segurei o fôlego e acalmei o estômago. De fato, era próximo do que
poderia ser um pedaço de curtume.
A menina parada, em pé, com vestido branco reto e sem
mangas, feito de algodão tinha cor de jambo, cabelos longos pretos e olhava
para o nada... Bom dia! E ela virou devagar, abriu um sorriso amarelo e
respondeu ao cumprimento. Coloquei a bolsa no canto, indo e vindo em sua frente
e retornando à mesa perto da janela e disse: sente-se. Como devo lhe chamar? e
ela: Mariana.
Quando ela se sentou bem perto de mim (minha mesa era bem
estreita... estratégia de trabalho) percebi que não tinha um dos dentes
frontais e ela percebeu que eu tinha olhado indignada... e ela: eu perdi esse
dente no corgo perto de onde a gente morava. Já faz tempo. Não dói mais.
Eu havia cometido um erro crasso com Mariana. Não se
pergunta o nome da outra pessoa sem dizer quem se é. Nós, trabalhadores em
saúde somos quase uníssonos nesse erro. Queremos saber tudo do outro sem
apresentar quem somos nós. É uma forma de dominação. Alguns serviços adotam o
crachá... mas como alguém em sofrimento ou em sentimento de menos valia vai
lembrar de ler crachá? É do respeito o dever de nos apresentarmos primeiro, é
de sermos verdadeiras humanidades.
Aliás, quando não os chamamos pelo nome, chamamos pelo número do leito
ou pelo tipo de reclamo de doença: lá vem o CA, o ITU... e, às vezes por
apelidos discriminatórios: o PITI da terça, a mulher nervosa... E quando
chamamos de mãezinha, vozinha... cruzcredo! Que desrespeito é esse...,
criatura!
Lembrei dos próprios aprendizados no estágio com o Júlio
Lancelotti e retomei:
Eu me chamo Estela, sou assistente social aqui do posto.
Encaminharam você prá mim... o que precisa e que vamos fazer juntas?
O cheiro de cebola e fritura que vinha do cachorro quente
que se apoderou da frente do posto junto com o cheiro marrento que vinha da
Mariana encontraram-se nas minhas narinas e eu comecei a ter ânsias. Pedi licença,
saí da sala em direção ao banheiro... só deu tempo de chegar e coloquei todo o
café com leite e pão com manteiga da manhã. Fiquei um tempão ali quando a
Marília, psicóloga das boas, veio perguntar se eu estava bem. Não, não estava. Não sabia se passava mais mal dos cheiros
físicos ou da vergonha de não suportá-los. Lavei o rosto, fui à porta da sala e
disse à Mariana: posso passar na sua casa depois? Não estou conseguindo parar
com nada no estômago... e ela: tá, eu moro na rua debaixo, depois da Rio de
Janeiro. Todo mundo conhece que o véi é catador de papelão.
Quando ela se foi, Marília e eu ficamos em silêncio até
desatarmos. Ela foi mais forte e conseguiu ir atrás de informações. Ficamos
fora da sala prá ver o cheiro ia embora. A informação é que Mariana tinha 19
anos e tinha vindo pela primeira vez na gineco
e precisava fazer preventivo. A ideia da auxiliar de enfermagem é que eu
tinha que dar um jeito dela tomar banho, senão ficava impossível coletar o preventivo.
Que a sala tinha sido desinfectada e que precisava que tudo fosse feito logo...
cheirava mal demais... pode ser que tinha uma inflamação grande...
E eu assistente social tinha sido chamada prá isso? Lembrei
logo do nascimento da profissão lá na Europa em que mocinhas limpinhas ,
estudadinhas e cheirosinhas iam fazer visita domiciliar para famílias que
precisavam de um “esbrega” porque não faziam higiene adequadamente e seus entes
acabavam hospitalizados. Ou seja, iriam às casas, a partir do critério médico
de cuidado-negligência para fazer as famílias tomarem banho, cuidarem das
crianças... Eu, de minha parte, ainda
olho praquelas mulheres como corajosas em fazer a entrada nos dois territórios
(aliás, três: o delas, o dos hospitais e o das famílias) e saírem vivas...
tinha um quê de coragem nas branquelas, com certeza! Não era só caridade... era
também uma forma de sair dos olhares familiares e irem pelas ruas... eu bem que
acho isso!
Passei muito mal o resto do dia e tive que ir fazer visitas
prá não ficar nem com o cheiro da cebola do cachorro quente e nem lembrar o
cheiro que estava na Mariana. Mas cheiro é coisa estranha. Ele entra na memória
histórica nossa e, quando nos lembramos das histórias, lembramos dos
cheiros. O cheiro que tive daquele dia
só voltaria a se repetir quando fui na DEBRASA uma semana depois da retirada
dos quase 900 indígenas do trabalho escravo. Era algo parecido. Ele também eu o
tenho na memória e sinto toda vez que
conto a história.
Lembro também do cheiro bom do moço lindo de farda... eu
pedia prá ele não colocar perfume porque gostava do cheiro dele antes, durante
e depois... cheiro é nossa essência e quando se passa perfume demais ficamos
com cheiro de marca de produto... cheiro bom é cheiro da gente... Um dia falei
pro Didio... caramba, esse homem cheira homem... e rimos com nossas libidos e
experiências... até cheiro bom eu tinha dificuldades, imagina com os cheiros
ruins...
Lá na situação da Mariana e o véi, o cheiro não era deles...
era das sobras da cidade...
Localizei a casa fácil e, no outro dia pela manhã, orientada
pela minha vizinha Dona Odete peguei uma pequena garrafa com água e limão e
levei comigo. Tomava aos poucos, sem
açúcar e respirei muito antes de chegar na casa. De fato, havia um
amontoado gigantesco de papelão, ferros, vidros... e um aspecto meio de filme...
quando aproximei do portão fechado por tramela, o véi veio logo perguntando: é
a moça que ia vim aqui? Sim, sou eu... o senhor tá bem? Ele me olhou de cima a
abaixo e baixo arriba pelo menos umas
três vezes. É o quê que quer conversar com a menina?
E eu: hoje? Nada. Só vim falar pra ela que estou conseguindo uma
dentista prá ela. E ele: hum. Não sei
como inventei aquela situação não
pensada.
Mariana foi saindo com os cabelos tampando o rosto, meio sem
graça... e eu, meio despachada disse: Mariana, tá tudo certo prá você ir na
dentista! Passa lá depois. Olhei pro véi
e pensei: podia pedir prá ir no banheiro... mas onde é que é? E se eu pedir
água? Mas estou com uma garrafa na mão... ah, posso pedir prá encher ...isso!
Mariana, pode me dar um pouco de água prá encher a garrafa?
Ela voltou rápido e trouxe num canecão de alumínio que brilhava... peguei a
água, coloquei na minha garrafa e tomei um golão. Não titubeei. Talvez esse fosse o teste dela para comigo. Não entrei no quintal... tudo rolava no portão aberto, sem entrar. O véi disse que
ia trabalhar e saiu com um burro e uma carroça. Não me estendeu a mão e nem eu
a ele.
Fiquei no portão e Mariana estava muito sem graça... Falei
que conhecia algumas vizinhas dela, da festa na capela de São Pedro, de umas mulheres que eram da pastoral... E
ela me olhava mas falava pouco com a boca. Corpo curvado com um outro vestido
de algodão, também branco. Mariana, como consegue fazer esses vestidos ficarem
tão brancos? Ela destrambelhou a falar... explicou que fazia o sabão com coisas
de sebo que o véi trazia, que isso ela tinha fartura, que limpava os bancos da
casa com o sabão e por isso eram brancos, que ariava os alumínios com o
sabão... foi uma iluminação a palavra
sabão e limpeza... era como a flor do mandacaru que a gente fica esperando e
esperando e de repente abre... se não olharmos e registrarmos rápido, ela se
vai e a gente volta a esperar. A Mariana tinha me mostrado a primeira flor...
ah, suas habilidades de limpeza com a casa.
Esqueci o cheiro embora os ratos fizessem a festa passeando
entre os recicláveis. Falamos de baratas, de ratos, de ariar alumínio... Aí ela
me contou que o pai tinha ensinado a lavar panelas com areia, mas ela gostava
mais de bombril e sabão que ela fazia bem forte de soda. Falei de uma mulher
que fazia sabonetes... e ela falou que isso ela não sabia...fiquei de
providenciar o encontro.
Saí correndo e fui à casa da Narciza prá saber quem fazia
sabonete. Só tinha uma mulher na vila Margarida. No meu almoço, fui encontrar a
Creuza que fazia sabonete nas horas de folga. Perguntei se ela topava
ensinar... ela só podia no sábado. Era quinta e a Mariana iria ao dentista na
sexta. Acertado tudo! Mas, e o dinheiro
prá aprender a fazer sabonete? Esqueci que ela precisava tomar banho...
aiaiaiaiai... quando cheguei esbaforida no Cel Antonino, contei àquelas que
partilhavam as pequenas vitórias: Solange, Marília, Márcia, Lurdes...
Mariazinha quando soube do meu contentamento, chegou à porta e perguntou: e aí,
ensinou a mulher a tomar banho? E eu:
esqueci... e ela: sabia... e saiu rindo e balançando a cabeça daquele jeito:
essa não tem jeito.
À tarde, combinei com uma liderança que iria comigo ao
portão da Mariana... quando chegamos Dona Odete falou: mas isso tem que botar
fogo! É muito rato, barata... num tem jeito. E eu: mas se botar fogo, queima o
papel e os ratos se espalham todos. E ela: vou ligar no povo da vigilância.
Eles têm isca prá rato. Ela sabia mais
que eu sobre os serviços... fiquei com vergonha de mim, mas era bom também ter
mais gente comigo na empreitada. Ela fez tudo certo e a vigilância foi lá,
conversaram na comunidade, enfim... virou algo prá eles encaminharem. E o véi
teve que vender os produtos mais rápido sem acumular muito... Essa história eu
adoro! Resolveram sem mim e eu, num contentamento danado.
Mariana, vai ter a oficina de sabonete, ok? Tá tudo certo.
Vamos fazer em cinco. Mas como ela podia cheirar tão mal se a casa era limpa e
o alumínio brilhava? Perguntei sobre o banheiro e ela me disse que era bem
cuidado. Faziam as necessidades em um buraco e iam jogando terra por cima. E o
banho? É atrás do monte de papelão... e
de onde vem a água? Aqui não tem... a gente pega um balde por dia de um
vizinho. Um balde? É.
O balde foi mesmo na minha cabeça tonta... tão preocupada em
falar prá Mariazinha que ela tomava banho que não lembrei de perguntar se tinha
água. Mas e a limpeza da casa, das vasilhas? Ah, essa eu fervo da água que o
véi traz na carroça. Era um também de óleo... levei uma tamborzada na cabeça.
Quando ela foi à dentista no outro dia, eu havia feito um
encaixe prá ela ser atendida. A técnica que atendia ficou uma fera. A moça não
tomava banho... como é que ia ao dentista? Outro esbrega, outro escutar... e eu que não mandava a moça tomar banho?
Quando saiu da dentista com um ou dois dentes a serem
obturados e um estudo de onde iríamos trabalhar para ela colocar o frontal, foi
na minha sala e estava contente... lembrei da for do mandacaru... ela já tinha
várias. Aí me falou que tinha 19 anos, foi dada para o véi aos 14, quando o véi
era mascate e passou no barraco do pai com os 5 filhos que colhiam braquiária.
Não conhecia nada da cidade. Só tinha ido no posto porque sentia umas dores lá
em baixo. O véi quase não fazia as coisas com ela porque não tinha mais força.
Achava que tava doente. A vida que levava só não era melhor porque tinha se
apartado dos irmãos. Antes, brincavam muito e moravam à beira de um rio.
Tomavam banho lá e agora a água era pouca.
Ela falava como se fosse cachoeira de informações e eu tinha
que perguntar: era bom? Não era bom? ... Aí ela falou: eu queria era tomar
banho de rio... a gente fica lá e se não sai cheirosa, pelo menos não sai com
cheiro de sabão. O sabão de casa é muito forte. Tem dia que não consigo lavar
direito porque queima a pele.
As portas da sala estavam abertas... o cheiro forte não me
repunava mais... Chico me disse que é porque até o espírito da gente se
acostuma com o mau cheiro, já não mais sentimos. Esses dias lembrei do curtume
que eu passava mal na vigilância e lá ninguém sentia o cheiro... Até o pessoal
da Casa da Mulher Brasileira que pega o cheiro do curtume à tarde em Campo
Grande, dias atrás uma assistente social disse que já se acostumou e até
consegue tomar água tranquila com o vento e tudo... talvez fosse o meu caso...
Mas que eu lembro, ah eu lembro de todos os cheiros...
Quando começamos a rir, Mariana, eu e Marília de tomar banho
no rio e dos namoricos, ela disse que isso nunca teve. Que o véi nem sempre
relava nela... mas queria mesmo era ir conhecer a cidade. Falei que nossa
oficina de sabonete já era uma primeira saída. Ainda perto, mas já era um
passeio. Em meio às gargalhadas, Mariazinha chega à porta e fala prá Mariana:
oh menina, aqui não tem rio, mas tem um chuveiro bem bom. Se quiser, pode tomar
banho aqui... Mariana assustada olhava e ria baixo e depois disse: posso?
quando? E, Mariazinha disse: uai, hoje, se quiser. Eu tenho sabonete de
lavanda... acho que você vai gostar.
Eram muitas as flores de mandacaru.... há que se aproveitar
o momento do floreio.
Batemos palmas em quatro!
Estela Márcia Rondina Scandola, 57 na inteireza de
mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.
Querida Vovó Estela, é com alegria que li, refleti e senti o doce cheiro de humanidade que exala abundantemente das tuas palavras!
ResponderExcluirFraternalmente,
Caio Baez
que os cheiros não nos impeçam ao trabalho, não é?
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