16 fevereiro 2020

Mariana, seus e nossos cheiros


Quando Mariazinha me abordou na entrada do Cel Antonino dizendo que tinha um presentinho na sala do Serviço Social fiquei meio ressabiada... não era presente bom... ela não conseguia ainda conviver com esse jeito de ser assistente social que chega sempre batendo papo com as mulheres antes de ir à folha de ponto. Ao entrar na sala senti um cheiro forte do tipo cheiro de ranço, como diria Elenir. Era tão forte que pensei em não entrar. Entrei, segurei o fôlego e acalmei o estômago. De fato, era próximo do que poderia ser um pedaço de curtume.
A menina parada, em pé, com vestido branco reto e sem mangas, feito de algodão tinha cor de jambo, cabelos longos pretos e olhava para o nada... Bom dia! E ela virou devagar, abriu um sorriso amarelo e respondeu ao cumprimento. Coloquei a bolsa no canto, indo e vindo em sua frente e retornando à mesa perto da janela e disse: sente-se. Como devo lhe chamar? e ela: Mariana.
Quando ela se sentou bem perto de mim (minha mesa era bem estreita... estratégia de trabalho) percebi que não tinha um dos dentes frontais e ela percebeu que eu tinha olhado indignada... e ela: eu perdi esse dente no corgo perto de onde a gente morava. Já faz tempo. Não dói mais.
Eu havia cometido um erro crasso com Mariana. Não se pergunta o nome da outra pessoa sem dizer quem se é. Nós, trabalhadores em saúde somos quase uníssonos nesse erro. Queremos saber tudo do outro sem apresentar quem somos nós. É uma forma de dominação. Alguns serviços adotam o crachá... mas como alguém em sofrimento ou em sentimento de menos valia vai lembrar de ler crachá? É do respeito o dever de nos apresentarmos primeiro, é de sermos verdadeiras humanidades.  Aliás, quando não os chamamos pelo nome, chamamos pelo número do leito ou pelo tipo de reclamo de doença: lá vem o CA, o ITU... e, às vezes por apelidos discriminatórios: o PITI da terça, a mulher nervosa... E quando chamamos de mãezinha, vozinha... cruzcredo! Que desrespeito é esse..., criatura!
Lembrei dos próprios aprendizados no estágio com o Júlio Lancelotti e retomei:
Eu me chamo Estela, sou assistente social aqui do posto. Encaminharam você prá mim... o que precisa e que vamos fazer juntas?
O cheiro de cebola e fritura que vinha do cachorro quente que se apoderou da frente do posto junto com o cheiro marrento que vinha da Mariana encontraram-se nas minhas narinas e eu comecei a ter ânsias. Pedi licença, saí da sala em direção ao banheiro... só deu tempo de chegar e coloquei todo o café com leite e pão com manteiga da manhã. Fiquei um tempão ali quando a Marília, psicóloga das boas, veio perguntar se eu estava bem. Não, não estava.  Não sabia se passava mais mal dos cheiros físicos ou da vergonha de não suportá-los. Lavei o rosto, fui à porta da sala e disse à Mariana: posso passar na sua casa depois? Não estou conseguindo parar com nada no estômago... e ela: tá, eu moro na rua debaixo, depois da Rio de Janeiro. Todo mundo conhece que o véi é catador de papelão.
Quando ela se foi, Marília e eu ficamos em silêncio até desatarmos. Ela foi mais forte e conseguiu ir atrás de informações. Ficamos fora da sala prá ver o cheiro ia embora. A informação é que Mariana tinha 19 anos e tinha vindo pela primeira vez na gineco  e precisava fazer preventivo. A ideia da auxiliar de enfermagem é que eu tinha que dar um jeito dela tomar banho, senão ficava impossível coletar o preventivo. Que a sala tinha sido desinfectada e que precisava que tudo fosse feito logo... cheirava mal demais... pode ser que tinha uma inflamação grande...
E eu assistente social tinha sido chamada prá isso? Lembrei logo do nascimento da profissão lá na Europa em que mocinhas limpinhas , estudadinhas e cheirosinhas iam fazer visita domiciliar para famílias que precisavam de um “esbrega” porque não faziam higiene adequadamente e seus entes acabavam hospitalizados. Ou seja, iriam às casas, a partir do critério médico de cuidado-negligência para fazer as famílias tomarem banho, cuidarem das crianças...  Eu, de minha parte, ainda olho praquelas mulheres como corajosas em fazer a entrada nos dois territórios (aliás, três: o delas, o dos hospitais e o das famílias) e saírem vivas... tinha um quê de coragem nas branquelas, com certeza! Não era só caridade... era também uma forma de sair dos olhares familiares e irem pelas ruas... eu bem que acho isso!
Passei muito mal o resto do dia e tive que ir fazer visitas prá não ficar nem com o cheiro da cebola do cachorro quente e nem lembrar o cheiro que estava na Mariana. Mas cheiro é coisa estranha. Ele entra na memória histórica nossa e, quando nos lembramos das histórias, lembramos dos cheiros.  O cheiro que tive daquele dia só voltaria a se repetir quando fui na DEBRASA uma semana depois da retirada dos quase 900 indígenas do trabalho escravo. Era algo parecido. Ele também eu o  tenho na memória e sinto toda vez que conto a história.
Lembro também do cheiro bom do moço lindo de farda... eu pedia prá ele não colocar perfume porque gostava do cheiro dele antes, durante e depois... cheiro é nossa essência e quando se passa perfume demais ficamos com cheiro de marca de produto... cheiro bom é cheiro da gente... Um dia falei pro Didio... caramba, esse homem cheira homem... e rimos com nossas libidos e experiências... até cheiro bom eu tinha dificuldades, imagina com os cheiros ruins...
Lá na situação da Mariana e o véi, o cheiro não era deles... era das sobras da cidade...
Localizei a casa fácil e, no outro dia pela manhã, orientada pela minha vizinha Dona Odete peguei uma pequena garrafa com água e limão e levei comigo. Tomava aos poucos, sem  açúcar e respirei muito antes de chegar na casa. De fato, havia um amontoado gigantesco de papelão, ferros, vidros... e um aspecto meio de filme... quando aproximei do portão fechado por tramela, o véi veio logo perguntando: é a moça que ia vim aqui? Sim, sou eu... o senhor tá bem? Ele me olhou de cima a abaixo e baixo arriba  pelo menos umas três vezes. É o quê que quer conversar com a  menina?  E eu: hoje? Nada. Só vim falar pra ela que estou conseguindo uma dentista prá ela. E ele: hum.  Não sei como inventei aquela  situação não pensada.
Mariana foi saindo com os cabelos tampando o rosto, meio sem graça... e eu, meio despachada disse: Mariana, tá tudo certo prá você ir na dentista! Passa lá depois.  Olhei pro véi e pensei: podia pedir prá ir no banheiro... mas onde é que é? E se eu pedir água? Mas estou com uma garrafa na mão... ah, posso pedir prá encher ...isso!
Mariana, pode me dar um pouco de água prá encher a garrafa? Ela voltou rápido e trouxe num canecão de alumínio que brilhava... peguei a água, coloquei na minha garrafa e tomei um golão. Não titubeei.  Talvez esse fosse o teste dela para comigo.  Não entrei no quintal... tudo rolava  no portão aberto, sem entrar. O véi disse que ia trabalhar e saiu com um burro e uma carroça. Não me estendeu a mão e nem eu a ele.
Fiquei no portão e Mariana estava muito sem graça... Falei que conhecia algumas vizinhas dela, da festa na capela de São Pedro,  de umas mulheres que eram da pastoral... E ela me olhava mas falava pouco com a boca. Corpo curvado com um outro vestido de algodão, também branco. Mariana, como consegue fazer esses vestidos ficarem tão brancos? Ela destrambelhou a falar... explicou que fazia o sabão com coisas de sebo que o véi trazia, que isso ela tinha fartura, que limpava os bancos da casa com o sabão e por isso eram brancos, que ariava os alumínios com o sabão...  foi uma iluminação a palavra sabão e limpeza... era como a flor do mandacaru que a gente fica esperando e esperando e de repente abre... se não olharmos e registrarmos rápido, ela se vai e a gente volta a esperar. A Mariana tinha me mostrado a primeira flor... ah, suas habilidades de limpeza com a casa.
Esqueci o cheiro embora os ratos fizessem a festa passeando entre os recicláveis. Falamos de baratas, de ratos, de ariar alumínio... Aí ela me contou que o pai tinha ensinado a lavar panelas com areia, mas ela gostava mais de bombril e sabão que ela fazia bem forte de soda. Falei de uma mulher que fazia sabonetes... e ela falou que isso ela não sabia...fiquei de providenciar o encontro.
Saí correndo e fui à casa da Narciza prá saber quem fazia sabonete. Só tinha uma mulher na vila Margarida. No meu almoço, fui encontrar a Creuza que fazia sabonete nas horas de folga. Perguntei se ela topava ensinar... ela só podia no sábado. Era quinta e a Mariana iria ao dentista na sexta. Acertado tudo!  Mas, e o dinheiro prá aprender a fazer sabonete? Esqueci que ela precisava tomar banho... aiaiaiaiai... quando cheguei esbaforida no Cel Antonino, contei àquelas que partilhavam as pequenas vitórias: Solange, Marília, Márcia, Lurdes... Mariazinha quando soube do meu contentamento, chegou à porta e perguntou: e aí, ensinou a mulher a tomar banho?  E eu: esqueci... e ela: sabia... e saiu rindo e balançando a cabeça daquele jeito: essa não tem jeito.
À tarde, combinei com uma liderança que iria comigo ao portão da Mariana... quando chegamos Dona Odete falou: mas isso tem que botar fogo! É muito rato, barata... num tem jeito. E eu: mas se botar fogo, queima o papel e os ratos se espalham todos. E ela: vou ligar no povo da vigilância. Eles têm isca prá rato.  Ela sabia mais que eu sobre os serviços... fiquei com vergonha de mim, mas era bom também ter mais gente comigo na empreitada. Ela fez tudo certo e a vigilância foi lá, conversaram na comunidade, enfim... virou algo prá eles encaminharem. E o véi teve que vender os produtos mais rápido sem acumular muito... Essa história eu adoro! Resolveram sem mim e eu, num contentamento danado.
Mariana, vai ter a oficina de sabonete, ok? Tá tudo certo. Vamos fazer em cinco. Mas como ela podia cheirar tão mal se a casa era limpa e o alumínio brilhava? Perguntei sobre o banheiro e ela me disse que era bem cuidado. Faziam as necessidades em um buraco e iam jogando terra por cima. E o banho? É atrás  do monte de papelão... e de onde vem a água? Aqui não tem... a gente pega um balde por dia de um vizinho. Um balde? É.
O balde foi mesmo na minha cabeça tonta... tão preocupada em falar prá Mariazinha que ela tomava banho que não lembrei de perguntar se tinha água. Mas e a limpeza da casa, das vasilhas? Ah, essa eu fervo da água que o véi traz na carroça. Era um também de óleo... levei uma tamborzada na cabeça.
Quando ela foi à dentista no outro dia, eu havia feito um encaixe prá ela ser atendida. A técnica que atendia ficou uma fera. A moça não tomava banho... como é que ia ao dentista? Outro esbrega, outro escutar...  e eu que não mandava a moça tomar banho?
Quando saiu da dentista com um ou dois dentes a serem obturados e um estudo de onde iríamos trabalhar para ela colocar o frontal, foi na minha sala e estava contente... lembrei da for do mandacaru... ela já tinha várias. Aí me falou que tinha 19 anos, foi dada para o véi aos 14, quando o véi era mascate e passou no barraco do pai com os 5 filhos que colhiam braquiária. Não conhecia nada da cidade. Só tinha ido no posto porque sentia umas dores lá em baixo. O véi quase não fazia as coisas com ela porque não tinha mais força. Achava que tava doente. A vida que levava só não era melhor porque tinha se apartado dos irmãos. Antes, brincavam muito e moravam à beira de um rio. Tomavam banho lá e agora a água era pouca.
Ela falava como se fosse cachoeira de informações e eu tinha que perguntar: era bom? Não era bom? ... Aí ela falou: eu queria era tomar banho de rio... a gente fica lá e se não sai cheirosa, pelo menos não sai com cheiro de sabão. O sabão de casa é muito forte. Tem dia que não consigo lavar direito porque queima a pele.
As portas da sala estavam abertas... o cheiro forte não me repunava mais... Chico me disse que é porque até o espírito da gente se acostuma com o mau cheiro, já não mais sentimos. Esses dias lembrei do curtume que eu passava mal na vigilância e lá ninguém sentia o cheiro... Até o pessoal da Casa da Mulher Brasileira que pega o cheiro do curtume à tarde em Campo Grande, dias atrás uma assistente social disse que já se acostumou e até consegue tomar água tranquila com o vento e tudo... talvez fosse o meu caso... Mas que eu lembro, ah eu lembro de todos os cheiros...
Quando começamos a rir, Mariana, eu e Marília de tomar banho no rio e dos namoricos, ela disse que isso nunca teve. Que o véi nem sempre relava nela... mas queria mesmo era ir conhecer a cidade. Falei que nossa oficina de sabonete já era uma primeira saída. Ainda perto, mas já era um passeio. Em meio às gargalhadas, Mariazinha chega à porta e fala prá Mariana: oh menina, aqui não tem rio, mas tem um chuveiro bem bom. Se quiser, pode tomar banho aqui... Mariana assustada olhava e ria baixo e depois disse: posso? quando? E, Mariazinha disse: uai, hoje, se quiser. Eu tenho sabonete de lavanda... acho que você vai gostar.
Eram muitas as flores de mandacaru.... há que se aproveitar o momento do floreio.
Batemos palmas em quatro!

Estela Márcia Rondina Scandola, 57 na inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

2 comentários:

  1. Querida Vovó Estela, é com alegria que li, refleti e senti o doce cheiro de humanidade que exala abundantemente das tuas palavras!
    Fraternalmente,
    Caio Baez

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  2. que os cheiros não nos impeçam ao trabalho, não é?

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