01 fevereiro 2020

MEMÓRIAS DO VIVIDO


Maria Emília Bottini



Viver duas vezes é um filme espanhol dirigido por Maria Ripoll e me encantou do começo ao fim; apesar do tema difícil e complicado que aborda, o humor e a leveza vão dando o tom da história.  Através de uma narrativa sensível, a diretora nos leva a uma reflexão sobre o envelhecimento, a solidão, a família, a viuvez, as doenças e como lidamos com o que se nos apresenta nas fases do desenvolvimento humano.
Emílio é um professor universitário de matemática que está aposentado, é viúvo e vive sozinho em seu apartamento. Sua rotina se resume a desenvolver os exercícios de sudoku ou quadrado mágico, como gosta de afirmar e ir até a cafeteria próxima de sua casa. Não tem televisão ou celular. A vida é um passar de dias. Sua rigidez se apresenta na ordem dos discos na estante e não mistura o pão com o tomate, seu pedido de sempre na cafeteria. Sua vida se reduz a poucos movimentos e interações, não há amigos, relacionamento com a filha, animais ou coisa alguma que não seja números. Possui uma filha que é casada e tem uma neta chamada Blanca.
Aos poucos vamos percebendo que sua memória começa a dar sinais de que está lentamente apagando as informações dos fatos da vividos. Já na apresentação Emílio não lembra de ter pago a conta na cafeteria e quer pagar novamente. Uma médica lhe faz perguntas simples o que o irrita, pois algumas questões são de matemática básica. O intuito é avaliar sua capacidade de memorização e informações do cotidiano.
Consulta outro médico e é informado que sua condição de saúde se agravará e não conseguirá resolver problemas básicos. O médico lhe explica como a demência se processa, o paciente divaga em seus pensamentos e estes o levam ao passado distante onde reencontra Margarita cantando. Emílio/adolescente não consegue se concentrar nas contas que está fazendo devido ao canto da moça. A dupla conversa rapidamente e a mãe de Margarita a chama; antes de partir o convida para um passeio na praia no dia seguinte, mas ele não aceita dizendo que precisaria estudar. O passeio nunca aconteceu, fazendo a opção pelo intelecto, pelo conhecimento e não pelo afeto e pela diversão. Ele não se permitiu viver o momento de encantamento e nesse instante recorda a memória do vivido e do desejo não realizado, adiado. Como não há mais chance, ele deseja concretizar.
Com o adoecimento e o diagnóstico de Alzheimer, sua filha decide que ele deve morar com sua família, mas Emílio não quer. Após uma acalorada discussão decidem que permanecerá em sua casa, pois ainda tem uma certa autonomia, a filha impõe a condição de ter um celular e a neta o ensinará a usá-lo.
O genro faz vídeos para a internautas que procuram a felicidade fácil e rápida apenas com frases simples e milagrosas, usa o celular o tempo todo incluindo em refeições com a família. Sua neta apresenta deficiência física, é mal-educada e apegada ao celular. Sua filha é vendedora de medicamentos para hospitais e bastante envolvida com o trabalho, quase não tem tempo para a família.
Blanca começa a ensinar como usar o celular e o avô se interessa pelo jogo eletrônico; ela explica que tudo está nele. O avô, surpreso, pede que ela procure por Margarita, já que tudo pode ser encontrado, dizendo que ela é uma amiga.
Emílio sente-se mais atrapalhado e com lapsos mais frequentes de memória, se perde nas ruas, a paisagem do muro vai se transmutando conforme seu caminhar, muda seus comportamentos na cafeteria e se sente distante, olhar parado no nada. Apenas um desejo de reencontrar sua amada o alimenta. Resolve reencontrá-la e sua neta e cumplice o acompanha. A aventura não vai muito longe, pois apresentam problemas com o carro, a sua filha e o genro se juntam na aventura.
Emílio justifica para sua filha que não quer esquecer Margarita e como tem essa possibilidade quer vê-la antes que se apague por completo de sua memória. A filha e o genro concordam e tentam encontrá-la, mas a tentativa é frustrada. Finalmente o encontro acontece, mas Margarita também vive um tempo de esquecimento pela demência senil em estágio avançado, não conseguindo mais se reconhecer em seu próprio espelho, está presa a seu corpo.
Emílio passa a conviver com a neta e a filha que se separa do marido. A convivência é difícil e o pai torna-se agressivo e irritado, a doença vai seguindo seu curso. Não reconhece mais a sua filha, vê nela sua esposa. As comidas não lhe agradam e vão ao chão. A memória já não tem mais registros da matemática que tanto amava. O choro é fácil e o riso também. As perguntas já não têm mais as respostas fáceis de outrora.  
Blanca é quem consegue fazer a conciliação entre a mãe, o avô e o esquecimento, apresentando maturidade para não discutir e sim aceitar o fluxo do pensamento, mesmo que por vezes é do passado/presente. Emílio vai para uma instituição para idosos. Sentado em uma mesa, olhar distante rabisca em uma folha, pois os números já foram esquecidos, apenas o sinal de infinito está na folha. Então escuta a canção do passado. É Margarita sentada em sua cadeira de rodas, ele novamente reclama que não pode se concentrar, ela se vira e propõe um passeio na praia. A câmera nos conduz até o mar e lá encontramos Emílio e Margarita sentados apreciando a paisagem que se deslumbra no vai e vem das ondas. Como o mar, a vida e feita de idas e vindas. Somos constituídos das várias memórias sem elas já não existimos, não somos. O filme nos remete a pensarmos sobre as memórias carregadas de afeto, as quais são as últimas que nos permitimos esquecer. Que tenhamos muitas memórias afetivas a nos mostrar de que matéria somos feitos.

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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