Maria Emília Bottini
Há mulheres que são grandiosas por seus feitos e marcam o mundo com sua presença. Ayaan Hirsi Ali é uma dessas mulheres. Li seu livro Infiel: a história de uma mulher que desafiou o islã. Ao ler esse livro em algum aspecto me identifiquei com essa mulher corajosa e, acima de tudo, por carregar sua história nos ombros com sabedoria. Ela reconhece seu percurso de vida e sofrimento e faz o registro em um livro denso e ao mesmo tempo tenso.
Ayaan é uma ativista, escritora, política e feminista somali-holandesa-americana, conhecida por seus escritos críticos sobre a mutilação genital feminina e o islamismo.
O livro, pouco a pouco, vai nos conduzindo pelas suas 496 páginas. Por vezes ao longo da leitura, fechei o livro e me recolhi a minha insignificância pela dor que estava acessando através das palavras, ao imaginar determinadas situações, senti uma dor profunda por ser humana. Tive dificuldade de imaginar algumas maldades descritas por alguém que as viveu, as conheceu.
Quando ela relata a mutilação genital que sofreu juntamente com sua irmã e irmão, precisei de um tempo para respirar. Fechei o livro e nada fiz por algum tempo, imaginando a dor de ser quem somos, uma humanidade desesperadora e extremamente violenta.
O que mais me comoveu neste trecho do livro foi a quantidade de mulheres que estavam ajudando a conter as pernas das duas meninas, que eram severamente violentadas e mutiladas. O ritual foi organizado pela avó, que aproveitou-se de uma das ausências da mãe das meninas. O pai era contra a tal prática, mas mesmo assim ela ocorreu. Ressaltando que o pai tem o poder das decisões sobre a vida das filhas nesta cultura.
As pernas devem seguir amarradas até a cicatrização. Quando esta ocorre, por vezes é necessário fazer novamente o “procedimento” como aconteceu com sua irmã, tendo consequências para sua saúde mental ao longo da vida.
Essas mulheres não acharam em momento algum que estavam equivocadas, todas acreditam que estavam seguindo os desejos de Alá e que as meninas estavam sendo purificadas. Do que exatamente estariam se purificando? De não terem desejos libidinosos por outro ser humano? Ledo engano, porque o prazer não está apenas nos órgãos genitais. Explique isso para quem acredita no que está fazendo em nome de Alá.
É preciso observar que em nome da religião se cometem muitos absurdos pelo mundo afora, a interpretação dos livros ditos sagrados é sempre uma ação do homem.
Ablação da genitália ocorre por volta dos cinco anos de idade. Podemos acompanhar como é descrito pela própria autora “Uma vez escravados, raspados ou, nos lugares benevolentes, simplesmente são cortados ou extraídos o clitóris e os pequenos lábios da garota, geralmente toda a região é costurada de modo a formar uma grossa faixa de tecido, um cinto de castidade feito da própria carne da criança. Um pequeno orifício no lugar adequado permite um fino fluxo de urina. Só com muita força é possível alargar o tecido cicatrizado para o coito”.
Dá para imaginar algo dessa natureza? E a relação sexual no casamento? Quando crescem e nem precisa ser muito, são casadas com homens muito mais velhos e geralmente desconhecidos. O sofrimento é intenso, pois não há vínculo afetivo de respeito e sim um forte sentimento de posse e propriedade.
As relações sexuais no casamento são de violência como descrevem muitas de suas amigas que com o tempo se “adaptam”, se “moldam”, não há outra possibilidade. As que resistem sofrem mais violência, perpetrada pelas famílias ou mesmo muitas são mortas. Se não tem relações sexuais, são violentadas; se saem sozinhas na rua; apanham.... É a vida que conhecem e sustentam pela crença de que as coisas são assim mesmo, não outra saída.
Yaan acredita que essa não é a única vida destinada às mulheres e não deseja casar-se, mas a vida lhe reservou um casamento clandestino com seu primo, que foi para a guerra logo em seguida.
Na adolescência seu pai, que esteve ausente a maior parte de sua vida, lhe arranja um casamento bastante promissor. Ela tenta convencer o pai que não deseja se casar, sua vontade é negada. Ela se casa e logo após o casamento o marido retorna para o Canadá e ela deve viajar para se encontrar com ele. Ela viaja conforme combinado, no caminho decide mudar os rumos de sua vida, não sem pagar um preço caro por isso.
E assim o faz, foge de sua família e do marido e se torna refugiada na Holanda. Mente para adquirir o direito de permanecer no país. Dessa forma, aos poucos, organiza a vida, não facilmente, enfrentando arduamente seu destino de tentar sobreviver por si mesma em um mundo desconhecido de liberdades que não conhecia. E assim vai mudando sua percepção de mundo e passa a questionar a sua própria interpretação do alcorão, sua fé.
Em 2004, juntamente com cineasta Theo van Gogh, idealizou o filme de apenas 10 minutos intitulado "Submissão" que relata de forma contundente a opressão das mulheres nas culturas islâmicas.
O filme mostra mulheres semi-nuas, com textos do Alcorão escritos em seus corpos. Van Gogh e ela receberam diversas ameaças de morte. Ele foi assassinado, por um muçulmano radical, em seu corpo encontrava-se uma carta que referia que a próxima pessoa a ser morta seria Ayaan. Tornou-se deputada na Holanda e teve de abandonar o país devido às ameaças que sofria por suas posições e questionamentos; viveu durante algum tempo na Califórnia, Estados Unidos, onde mais tarde se fixou.
O fato é que só se pode questionar a cultura quando se está fora dela, dentro fica praticamente impossível, pois ao perceber algo diferente o grupo trata de abafar, proibir, violentar para manter o estabelecido, a regra.
Chega ao parlamento holandês e adota algumas causas como a violência da mulher mulçumana, convive com a rejeição do pai e da mãe pelas opiniões apresentadas ao mundo, vivenciou a doença mental e morte da irmã, renuncia ao parlamento acompanhada de uma dose de coragem para enfrentar uma trajetória de lutas por existir de forma autônoma e independente.
A Revista Time a considerou uma das cem pessoas mais influentes no planeta em 2005. Ela é uma das fundadoras da organização de direitos das mulheres AHA Foundation. Uma mulher que nos faz pensar na nossa luta por viver e ter ideais na vida e quais as marcas que impregnamos ao mundo com nossa presença. Uma história que nos faz pensar pelo que lutamos e no que acreditamos. Quais são nossas causas que nos fazem acordar pela manhã? Precisamos dar sentido à vida e ela deve estar centrada no outro e não apenas em si, em seu umbigo.
Ayaan relata memórias da vida vivida com base em suas escolhas, faz as pazes com seu passado, não sem dor e uma dose cavalar de força interna para entender-se para isso foi preciso abandonar muitas coisas e uma delas suas crenças religiosas.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados]
Encontrei-me com esse livro mas nao fiquei com ele pq senti que poderia me abduzir para a historia... que bom que pude ler por sua mediacao! Acho que ficou denso maa não tanto tenso
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