Maria Amélia Mano
Não
há nada mais destruidor que o olhar de das Dores. Ela que tem cara de anjo e santa
misturada com coisas humanas, mundanas. Ela que nunca soube de esquerda e
direita, qual era sul, norte, mote. Ela que gosta do nascer do dia, do
sol, do ano, de todas as chances de recomeçar. Mesmo que calendário não vire,
não zere velocímetro. Ela inventa réveillon.
Não
há nada mais secreto que o sorriso de das Dores. Ela que não sabe ver horas. Ela que
se revolta com contracheque, mormaço antes da chuva, grau de miopia, passarinho
na gaiola, injustiça. Ela que gosta de romances longos de viagens solitárias,
sagas. Ela que se desvia de rotas conhecidas, chora nos filmes, deixa doer,
incandescer. Mesmo sem razão, inventa emoção e comoção.
Não
há nada mais vivo que o ventre de das Dores. Ela que engravidou tantas vezes quantas
não quis e abraçando demônios, tomou venenos. Espumou e sangrou em febres. Ela
que desentende medidas de rimas e remédios, mentiu nome no hospital. Não sabe
dia em que nasceu, sobrenome, nome da mãe. Ela, angústia, feita de culpas e tristezas.
Sonhando lar, ela inventa alívios.
Não
há nada mais fiel que o coração de das Dores. Em alguma parte muito longe, muito
escura, muito alta, fé se escondia. Sentiu lá, cintilar lá na pele, arrepio
e visão. Ela que não sabe ler, leu no céu que Verdade está sempre atrás do
último morro. E foi com sede. Cada gole saciado era rastro, destroço, resto
de vela, vida e alguma esperança. Ela que peregrinou, reinventa reza e crença.
Não
há nada mais sincero que a dor de das Dores. Ela, agora, pastora que guia, rege
cultos e louvores. Ela que fala em salvação. Ela que inventa inícios, alívios,
filhos, mães, irmãos e refrões de hinos. Família e lar. Ela que sabe tão pouco,
tão muito, que tanto pecou, sonhou. Ela é quem ensina a sentir e seguir nos
desesperos cotidianos de gente como ela. Desesperos muitos, múltiplos que conhece
bem. Ela que inventa altar, destino, sentido, sorte e céu.
Não
há nada mais verdadeiro que o templo de das Dores.
Ilustração: Bozena Jaworska
O altar de Das Dores é a dor resiliente?
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