09 junho 2020

DAS DORES


Maria Amélia Mano

Não há nada mais destruidor que o olhar de das Dores. Ela que tem cara de anjo e santa misturada com coisas humanas, mundanas. Ela que nunca soube de esquerda e direita, qual era sul, norte, mote. Ela que gosta do nascer do dia, do sol, do ano, de todas as chances de recomeçar. Mesmo que calendário não vire, não zere velocímetro. Ela inventa réveillon.
Não há nada mais secreto que o sorriso de das Dores. Ela que não sabe ver horas. Ela que se revolta com contracheque, mormaço antes da chuva, grau de miopia, passarinho na gaiola, injustiça. Ela que gosta de romances longos de viagens solitárias, sagas. Ela que se desvia de rotas conhecidas, chora nos filmes, deixa doer, incandescer. Mesmo sem razão, inventa emoção e comoção.
Não há nada mais vivo que o ventre de das Dores. Ela que engravidou tantas vezes quantas não quis e abraçando demônios, tomou venenos. Espumou e sangrou em febres. Ela que desentende medidas de rimas e remédios, mentiu nome no hospital. Não sabe dia em que nasceu, sobrenome, nome da mãe. Ela, angústia, feita de culpas e tristezas. Sonhando lar, ela inventa alívios.
Não há nada mais fiel que o coração de das Dores. Em alguma parte muito longe, muito escura, muito alta, fé se escondia. Sentiu lá, cintilar lá na pele, arrepio e visão. Ela que não sabe ler, leu no céu que Verdade está sempre atrás do último morro. E foi com sede. Cada gole saciado era rastro, destroço, resto de vela, vida e alguma esperança. Ela que peregrinou, reinventa reza e crença.
Não há nada mais sincero que a dor de das Dores. Ela, agora, pastora que guia, rege cultos e louvores. Ela que fala em salvação. Ela que inventa inícios, alívios, filhos, mães, irmãos e refrões de hinos. Família e lar. Ela que sabe tão pouco, tão muito, que tanto pecou, sonhou. Ela é quem ensina a sentir e seguir nos desesperos cotidianos de gente como ela. Desesperos muitos, múltiplos que conhece bem. Ela que inventa altar, destino, sentido, sorte e céu.
Não há nada mais verdadeiro que o templo de das Dores.

Ilustração: Bozena Jaworska

Um comentário:

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog