Eu guardo a luz das estrelas
A alma de cada folha
Gerônimo / Ildásio Tavares
Folheio nesse último mês de 2013, minhas páginas escritas, desenhadas, rabiscadas em ônibus, praças, rodoviárias, camas, redes, ruas e até barcos. Palavras retas e tortas conforme o movimento das marés, das curvas e que do apoio da mão permitiam. Meus caderninhos de viagem. Meu refúgio de algumas confissões, confusões. O resquício do diário dos meus 12 anos em que falava de amores, sonhos, medos e algumas coisas que só as meninas de 12 anos sentem, sofrem e esperam. Pena eles serem pequenos e não suportarem algumas folhas de árvores bonitas ou papéis de bombom: coisas que via no caminho, lembranças que encontro nos meus diários antigos. Mas quero falar das folhas depois, bem depois...
Acaricio e admiro com alguma surpresa as páginas sem pauta. Uma surpresa diferente de quando vi os fatos, as falas, as cores e as músicas pela primeira vez. A surpresa de me ler em um momento em que estava mais tranquila, menos turbulenta, menos chuvosa e menos ventosa. Tempos e climas de caminhos partilhados ou solitários. Caminhos escolhidos ou somente intuídos. Agora, a ideia é trazer essas palavras soltas aqui, me relendo, me revendo e me dizendo do significado que elas têm para mim e dividindo com vocês. Histórias empoeiradas, molhadas de orvalho, chuva e alguma lágrima.
Depois que volto, volto ao dia, volto ao traço mais estudado da pauta do prontuário, mas volto mais serena, mais menina de 12 anos. Mas é ela, a volta dela, em mim, que na minha lida, traz um pouco da essência: da gota de chuva que peguei, do vento que me descabelou, da saudade solta na noite e das palavras. As palavras, essas, as que fizeram mais significado. As que vão significar depois. Umas tantas, uma delas, as que ouvi em Parati, na feira literária. Perguntaram ao Pondé, jornalista, acadêmico, filósofo, ateu e polêmico, qual seria o 11º mandamento. Se, por acaso, penso eu, Moisés tivesse saído cedo da hora, antes que viesse o último mandamento. Pondé responde rápido: “não será ressentido”.
Ora me pareceu simples demais perto de um “não matar”. Mas era isso. Me conformei e escrevi no caderninho. E segui. E, quando era tempo, guardei o caderninho, guardei a malinha e a mochila.
Converso, hoje, dia 30 de dezembro de 2013, com dona Cida no consultório. Pede uma avaliação de um especialista depois que um acidente deixou seu tornozelo inchado e dolorido. Preencho os dados, peço a identidade. Pai: ignorado. Mãe: ignorada. Como assim? Pergunto a ela, surpresa. Pai ignorado é bem comum, mas mãe? E ela me conta que foi achada por um homem, seu padrinho, embrulhada em um jornal. O padrinho disse que talvez a mãe não tivesse condições de criá-la. Com ele e com a esposa viveu por 8 anos. Daí a esposa do padrinho engravidou e como já iam ter um filho “deles”, resolveram devolvê-la a uma instituição: um abrigo. E no abrigo viveu até os 13 anos, quando saiu para trabalhar como empregada doméstica, morando na casa dos patrões.
Fala isso, sem queixa da vida, sem raiva, sem mágoa. Entende que talvez a mãe não teve condição de criá-la. Entende que o padrinho fez o que pôde no tempo que pôde. Mas fico brava com a mãe e mais ainda com o padrinho de Cida. Insisto: mas nenhuma raiva? Nenhuma mágoa? “Não”, me responde sinceramente. Era o que eles podiam. Exigir pouco da vida ou entender o pouco que a vida dá? Antes que eu dê nomes, que eu julgue, que eu faça alguma teoria, apenas lembro do último mandamento. O que Moisés não esperou. O que não está escrito nas páginas sagradas.
Dona Cida que lê pouco e pouco conhece da Bíblia ou de filosofia, não era ressentida. Entendia a mãe que a deixou embrulhada em um jornal, entendia os supostos pais que a criaram até os 8 anos e resolveram deixá-la em um abrigo. Abandonos, como não se ressentir? E ela não se ressentiu. Seguiu a vida, teve filhos, ganhou peso, ganhou cabelos brancos, uma hipertensão arterial sistêmica e um inchaço no pé depois de um entorse feio, ao sair do ônibus. O 11º mandamento não era assim tão simples como eu havia pensado.
E, no momento de pensar nos ressentimentos da vida, na grandeza de certas almas que nos ensinam, nos surpreendem, nos iluminam, lembro das folhas secas que encontro no meio das páginas escritas. As folhas de um tempo e de uma árvore que já não vejo, já não lembro. Folhas, cujo vento que as derrubou já não sinto. Parece que essas folhas valem mais quando encontradas assim, ao acaso, sozinhas. Passa o tempo e elas ficam mágicas. Assim são as palavras anotadas ao léu, ao céu. Estão lá. Depois voltamos a elas e, em algum contexto, alguma história, elas se tornam valiosas e nos levam a um outro lugar. Não aquele lugar em que estamos, não aquele lugar em que estivemos. Mas um lugar novo, dentro de nós, feito da surpresa de significar.
Olho, saudosa de mistério e de tempo para um pouco de mim nas nervuras de algo que viveu. “Não será ressentido”, ecoa a página do caderninho... Aprendo: é bom colher palavras, folhas e guardar como presente ao futuro, ao nosso reencontro com a poesia de viver. Aprendo: tal qual a tinta que se apaga e a folha que envelhece, vivemos, mas algumas magias e algumas belezas sempre estão ali, esperando o nosso retorno. Como o amor que nos espera na estação, sempre disposto a retornar conosco a lugares onde não esteve. Mas foi companhia, sempre, de inspiração, carinho e abraço de saudade bem guardada.
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