No terceiro dia, fui
encaminhado com um grupo de outros cinco meninos de volta ao mesmo pavilhão um,
onde foi feito o interrogatório inicial. Lá está o sargento do bigode vistoso.
Ficamos em pé esperando ser atendidos. Ele chegou com uma lista na não, conferiu
os nomes:
- Vocês não servem para
o exército, serão dispensados.
Respirei aliviado,
finalmente uma boa notícia.
Ficamos aguardando um
longo tempo para resolver a documentação necessária. Um garoto baixo, magro, de
Rolândia, muito triste, lamenta:
- Queria servir o
exército, era o meu sonho, mas disseram que sou muito magro.
Os outros não queriam
servir, estavam tão aliviados quanto eu.
Quando o sargento
voltou, trouxe consigo um menino com a cara muito triste, parecia arrasado, já
estava usando a farda verde oliva completa, com o gorro na mão esquerda e o
coturno brilhando. Era voluntário, já estava em forma no PELOPES, o temido
Pelotão de Operações Especiais. Seu irmão fora do PELOPES em 1985, e era seu
sonho servir lá.
- Infelizmente, disse o
sargento, um de vocês vai ter que incorporar, disse olhando para os cinco.
No rosto do garoto
magro acendeu a esperança de ainda ficar no exército. Eu fiquei tranquilo, só
um de nós tem que ficar, pensei, e tem um voluntário, então tá resolvido. Mas o
sargento corrigiu sua fala, olhando para a prancheta e para o garoto
considerado abaixo do peso mínimo:
- Quer dizer, um de
vocês quatro vai ter que ficar.
Todos falaram ao mesmo
tempo: eu não posso. Todos não, o garoto voluntário ficou calado, engolindo sua
decepção.
- Não tem jeito, agora
tá faltando um elemento no PELOPES e um de vocês vai ficar.
- Deixa eu ficar,
sargento, disse o garoto rejeitado.
- Não! Respondeu
bruscamente o sargento. Você não aguenta, ainda mais no PELOPES.
Nenhum de nós sabia o
que era PELOPES, e as palavras do sargento aumentaram a convicção de que nenhum
poderia ficar.
- Se não tiver
voluntário, vamos ter que escolher.
Tentei convencer cada
um dos três de que o exército era um bom lugar, que seria emocionante, que
aprenderiam várias coisas legais, mas como eu não achava isso, não tinha como
convencer ninguém. Nenhum foi convencido. O sargento fez novas entrevistas,
enquanto os dois rejeitados assistiam com esperança de ficar e os outros quatro
se debatiam para sair.
O sargento fez novo
interrogatório com cada um de nós e no final me disse:
- Todos têm problemas,
você tem o menor, vai ser você.
- Não sargento, eu não
posso, minha família se mudou para São Paulo, eu estou na casa de minha avó só
esperando a dispensa para ir embora.
- Por mim você já tá
incorporado. Mas vá falar com o oficial de seu pelotão, quem sabe ele te
dispensa.
O oficial do pelotão
era, naquela época, um aspirante a terceiro tenente, recém formado na Academia
Militar das Agulha Negra, Macedo Soares. Ele olhava de modo invasivo
diretamente dentro dos olhos da gente, bem próximo, não respeitando o círculo
do espaço pessoal. Com o tempo aprendi a fazer a mesma coisa com os superiores,
não a invasão do espaço pessoal, que era muito desconfortável, mas olhar
diretamente nos olhos do interlocutor, sem permitir que a visão fosse desviada.
Mas desta vez ele recebeu-me bem, no alojamento dos oficiais, disse para eu
sentar, e sentou-se também em uma cama. Frente a frente contei meus motivos: a
mudança da família, só eu fiquei, a necessidade de uma cirurgia, que minha mãe
teria que fazer (mas nem sei se isso era verdade). Ele não gritou, não deu
ordens, não fez perguntas constrangedoras, nem desmereceu meus motivos para não
querer incorporar. Imediatamente levou-me para falar com o capitão da
companhia, Ricardo.
Os novos conscritos já
estavam em forma, a maioria usando farda, um ou outro de tênis e camiseta
civil. O oficial chamou o capitão do lado, contou-lhe que eu era o substituto
do conscrito com problemas cardíacos e meus motivos para não incorporar.
O capitão só fez uma
pergunta, olhando com indiferença para mim e para o aspirante:
- Você é médico?
- Não, respondi sem
entender a pergunta.
- Então vai incorporar,
disse secamente o capitão.
Pegou minha ficha da
mão do aspirante, assinou e virou as costas para nós dois:
- Pode entregar a farda
pra ele.
Macedo Soares olhou-me
sem palavras. Seu rosto dizia: eu tentei, mas não tem mais jeito.
Foi assim que, não
apenas fui obrigado a incorporar ao exército, mas fui parar no Pelotão de
Operações especiais, aonde quase ninguém queria estar. Era considerado o mais
difícil e sofrido lugar para servir, a linha de frente da companhia e do
batalhão. Haviam lendas sobre o pelotão, em anos anteriores, elas falavam de
coragem, bravura e até indisciplinas explicitas. Borba sempre dizia que em anos
anteriores, havia um grupo tão operacional que todo o pelotão fora preso de uma
vez só, por ter brigado (ou algo assim) com uma companhia inteira.
Agora, acomodados, cada
um em seus pelotões, começava o treinamento intensivo. Uma noite, o pelotão foi
guiado até a beira da mata, comandou-se para que ficasse de frente para
ribanceira e então a ordem:
- Sumam na mata, quem
for pego será torturado.
Os soldados saíram
correndo, caindo, rolando morro abaixo, uns pisando em cima dos outros. Quem
caiu, já foi sendo capturado pelos superiores, cabos, sargentos e o aspirante a
tenente. Esses já eram colocados sentado e começaram as torturas. A intenção, segundo o aspirante, era ver quem
tinha fibra para continua no PELOPES e quem pediria para sair. Muita coisa não
lembro mais (e é melhor que seja assim), mas na parte final do “exercício”,
alta noite, os soldados, em duplas, tinham que caminha pela mata, pela
ribanceira, pela escuridão, uma nas costas do outro, como se estivessem
feridos. Quem não conseguia carregar no ritmo ditado pelo aspirante, recebia
lambadas de galhos de árvores nas costas. O aspirante, os cabos e sargento
gritando:
- Pede pra sair,
mocorongo, pede pra sair, você não vai aguentar, pede pra sair.
No chão, de joelhos,
com as mãos na nuca, um soldado chorava e pedia piedade:
- Quero sair, Sargento.
E apanhava mais ainda
por isso.
- Quer sair, soldado,
seu frouxo, então diz que não aguenta.
- Quero sair sargento,
eu não aguento mais. Eu sou fraco.
- Tenente, esse aqui já
arriou, não aguenta mais.
- Não aguento mais, não
aguento mais, quero sair, repetia o menino que achou que o exército seria uma aventura de guerra.
Eu não aguentava mais,
pior, não via sentido em nada daquilo. Porém, não sei dizer a razão, não
conseguia desistir. Diferente do outro, eu não havia me voluntariado para estar
no pelotão, fora designado como substituto, como punição por não ser voluntário
para servir o glorioso exército brasileiro. Ainda lembro de que a única coisa
que consegui pensar, era:
- Esse filho da puta
foi voluntário e agora pede para sair de modo humilhante.
Ugo, era forte,
musculoso, era soltado por natureza, por vocação (talvez), queria aquilo para
sua vida, ainda pouco nos conhecíamos, mas colocou-me nas costas, na hora que
eu deveria lhe colocar, pois viu que eu não conseguiria mais, e carregou-me
durante todo o exercício final. Chegou no asfalto do batalhão e me jogo no chão
e deitou ao meu lado, exausto.
Sargento Borba, vendo a
gente chegar à reta final do exercício, gritou para o aspirante:
- Esse dois já
terminaram.
Sobrevivemos ao ritual
sádico de passagem. Agora éramos pelopianos, embora ainda sem o direito de usar
as insígnias, a farda camuflada, que nos diferenciaria de todos os outros
soldados do batalhão.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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