Estela
Márcia Rondina Scandola
Lurdes entrou na sala batendo antes
na porta.
Raramente a porta do Serviço Social
estava fechada, mas como eu estava acolhendo uma adolescência grávida, então
tinha fechado. Era um sinal de atendimento que precisava de olho no olho..., da menina saber quem eu
era e o que poderíamos caminhar juntas.
Minha colega para a pessoa que eu
atendia e disse: desculpa pelo incômodo. Depois olhou prá mim e “fala comigo
quando puder?”. Lurdes tinha sido muito dura comigo no início porque eu chegava
atrasada no horário da manhã... Até um dia que paramos e conversamos devagar...
falei que antes de ir da pro Cel. Antonino eu passava em várias casas de
pessoas, inclusive tomava café. Era uma imensa possibilidade de me encontrar
com as mulheres que frequentavam a unidade de saúde... e fazia sempre o caminho
a pé da Estrela do Sul para o posto e vice versa.
Márcia, diretora da Unidade, já
sabia. Falar ou não falar para os demais como eu trabalhava sempre foi uma decisão engasgada. Afinal,
eu estava chegando, tinha um jeito de trabalhar bem próximo das mulheres,
algumas eu conhecia bastante, morava por perto... E ainda tinha as mulheres da
pastoral da criança que eu vivia metida nas capacitações... então... sei lá,
Lurdes foi a segunda pessoa que
passou a me entender e conversávamos
sobre várias coisas e ela me
ensinava muito sobre a papelada que eu tinha que preencher... um dia até
entendi melhor as coisas da notificação e dos cartões da criança e da gestante
e montei estratégia para o atendimento. Eu não era boa de organizar as festas
de aniversário, final de ano, páscoa (o que a assistente social anterior era
responsável) e conversei com ela. Ufa! Virei participante ao invés de
organizadora. O primeiro elo com a
Lurdes chegou pelas músicas que eu cantarolava enquanto organizava papéis.
Ambas gostávamos de “mãe do céu morena” do Pe. Zezinho e de “canto das três
raças” da Clara.
Um dia Mariazinha me pediu prá
chamar atenção de uma usuária que estava dando um chilique na recepção. Quando
fui lá prá ver era uma mãe com filho no colo e febre de 39. Tentei explicar que
mãe com filho doente é sinônimo de mulher brava. Os dois ficaram com muita
raiva de mim, mas a situação deu origem a uma grande reunião e foi um
quebra-pau danado sobre as usuárias que pensam que são donas do posto e o
Serviço Social que não fazia o seu papel de chamar a atenção (na verdade queriam
que eu desse uma carraspana!). Mas que
diabos era o Serviço Social? Levei um susto... fiquei tonta por minutos e não
sei se sangrei.
As risadas, as cantarolas, a ida
pelas ruas com as mulheres, pular amarelinha na frente da escola... tudo era
motivo prá questionarem “que assistente social é essa¿”.
Parecia que eu ia criando uma
espinheira com vários trabalhadores da Unidade, ainda que me desse muito bem
com algumas delas, especialmente com a enfermeira Sônia que a gente conversava
de tudo, especialmente de sexualidade, das violências sexuais e dos prazeres
das mulheres... fomos agregando algumas outras mulheres (trabalhadoras do posto
e da comunidade), devagarinho, devagarinho... oh peleja com a rádio soô...
cheguei a pensar que tinha microfone gravando. Todo mundo sabia de tudo...
aiaiaiaiai. Fiquei assustada quando soube que quem não queria trabalhar ia na
sala do Serviço Social... e eu pensava que estava trabalhando... que encontro
difícil com as demais pessoas!
Só que do SUS quase ninguém falava.
Tudo era a Prefeitura ou o Ministério e as portarias, decretos... Eram várias
legislações de atendimento, mas da luta política, dos princípios dele, isso era nadica de nada no
cotidiano. Parecia que o SUS era um ghost. Esses dias, agora, nesse 2020
escutei uma entrevista na rádio. Era da coordenadora de vacinas e? ? ? ? ? ? ?
? ? ? continuam falando da Prefeitura e do Ministério da Saúde. O SUS, no caso
da entrevista, inexistiu. Como afirmou o
Secretário de Saúde do estado em 2015, o SUS não tem CNPJ, então não existe...
É de cair o cu da bunda como diria o Diarlon!
Quando Lurdes voltou encontrou eu e
Sônia na maior gargalhada. Animou-se e passamos a conversar da vida. Eram
histórias do movimento sanitário e da luta das mulheres... ríamos sem parar das
estratégias com megafone à frente do INAMPS na coleta de assinaturas, do fusca azul que não pegava nas madrugadas,
de ensinar as mulheres a assinarem.... ríamos de nós mesmas nas lutas.
Mariazinha estancou na porta e disse: vocês estão rindo alto, hein? Vão pensar
que aqui no posto tem gente que não trabalha. Narcisa e Enereilda, da Pastoral
da Criança, que estavam rindo também e a
primeira, colocando as mãos na cintura feito açucareiro, começou a rir e logo
foi dizendo: eita que é bom ter gente alegre no posto... saúde também precisa
disso, mulher!!!! O clima ficou tenso...
e meu espírito livre incontido piorou: num é que comecei... “viver
e não ter a vergonha de ser feliz.... cantar e cantar e cantar...”
A minha chegada não assustava
somente a mim. Sobretudo, assustava uma porção de trabalhadores da Unidade e a
outros causava curiosidade. Geralmente Assistente Social é a talba de tiro ao
álvaro e eu não estava preparada para isso...
Sempre pensava sobre a acolhida que tinha acontecido... não é uma
relação de uma pessoa da casa para quem chega, mas é uma relação de várias
pessoas encapsuladas no primeiro contato e disso vai derivar todos os conceitos
e pré-conceitos estabelecidos naquele momento e que vão se espraiar no ambiente
de saúde. Eu fiquei muito sofrida com a acolhida feito mandacaru, mas eu também
era muito preconceituosa sobre a força de trabalho. Ser assistente social que
não apagava incêndio cotidiano, militante na comunidade do entorno e risar alto
era quase a configuração de fogos de Santo Antonio. Eu não sabia o que fazer
com o pessoal trabalhador da unidade e nem eles comigo.
Narcisa, dali do bairro Cel
Antonino, sempre foi uma parceira fundamental nas comunidades e também tinha
estado na luta do SUS, desde o SUDS como ela sempre enfatizava... às vezes
completava dizendo: “eu já fui indigente, agora sou gente! ”. E ria solto. Era
um jeito de dizer como era tratada na Santa Casa antes do SUS. Sabia da
história da luta prá ter SUS.
Conversa vai, conversa vem Lurdes
resolveu colocar o assunto ali mesmo: tinha muita gente que trabalha no posto
que não sabia nada de SUS e ainda achava que o Sistema que veio atrapalhar
porque todo mundo quer ser atendido, “se acha”!. E o pessoal tem falado que vai vir na sala do
Serviço Social prá conversar. Pronto, mais um fuzuê
tava formado: Pq o Serviço Social só ficava do lado do povo e não via a
situação dos funcionários? Essa tinha me pego de surpresa e fiquei calada feito
dois de paus. A Sônia (enfermeira) gaguejou e a Narcisa falou logo: uai, e de
quem ia ficá?
Esse conversê me deu um nó. Afinal,
os trabalhadores também não eram usuários do SUS? Acaso não usavam os serviços
até com mais facilidade porque sabiam melhor os caminhos, tinham as amizades
com quem marcava os atendimentos? Não, não e não logo disse a Mariazinha.
Servidor é servidor, usuário é usuário. Eu não estava preparada para essa
resposta e fiquei paralisada. Não tinha preparo para pensar no mundo das
trabalhadoras em saúde. Elas não sabiam das lutas? Não conheciam a tal
universalidade e equidade? Por acaso não gostavam do SUS? Nem questionei a
palavra “servidor” (o que sempre faço com energia indignante!)... Sangrava feito lágrima que teimava...
Enrosquei nos pensamentos e passei uns dias cantarolando mais baixo, sem
gargalhar e ia e vinha convivendo com as mulheres, mas não me sentia mais
acolhida, escolhia os corredores para passar, as salas para entrar, as pessoas
para me relacionar. Os abraços antes efusivos eram de cumplicidade e já não
mais gratuitos!
Eu fui da luta do SUS, do sonho do
SUS, da utopia construída de um SUS público, estatal e de qualidade, mas não
tinha a experiência da lida do SUS por dentro do Sistema. A visão romântica de
todos e todas defendendo o SUS virou sequilho derretendo na boca. Foi
desfazendo o sabor e foi virando lembrança.
As tais contradições, as
alienações, o capital tomando conta da saúde mercadoria, as compas da saúde
referindo-se ao emprego sem falar do SUS... tudo isso à minha frente eu não
gostava, parecia vestido bonito que ia se esgarçando. A tomada de consciência é
um rasgar-se por dentro, é uma dor que quebra espelhos, de final da rapa
queimada de doce de leite. Não tem volta.
Quando cheguei no Coronel eu tinha
anos de sonhar e construir o SUS... mais precisamente desde 84 quando fomos no
Congresso da ANAS (Associação Nacional de Assistentes Sociais). Mas trabalhar
no SUS, ser funcionária pública concursada era menos de três meses e, no
Coronel, há 15 dias. Era novata na arte de trabalhar e ser a bola a ser
observada. Como me reconstruir para seguir indo e vindo ao trabalho? Foi pouco
tempo demais pro barro me chamar ao chão, ao palpável, àquilo que está
entranhado e que eu não gostava de saber. Não havia possibilidade de não
sofrer.
Naquela tarde saí e lá estavam Narcisa
e Enereilda. Caminhamos pela Rua Rio de
Janeiro e elas me animando, queriam que eu me achasse importante... kkkk e eu
só na desimportância. Quando cheguei em casa depois de 1,5km de encontros e
paradas prá cumprimentos e risadas, o sol ainda a pino, abracei os meninos. Joguei-me no tapete com eles, os cheirava e
beijava comprido e íamos montar quebra-cabeças, chupar laranjas... e eu me
afirmava: estou construindo um mundo melhor pros meninos. Quando eles
crescerem, isso já vai acontecer. Os 4 e
3 anos dos meninos já os fazia cantar... era uma casa muito engraçada, não
tinha teto não tinha nada... cantar com eles me recarregava e, quando Sid, Edu,
Leidi, Magali e kátia chegavam sem pedir licença, a casa virava uma criança só
e eu com elas!
Mas seguia sangrando... não se
fecha a dor fora de casa. Reabastecida, às vezes seguia noite afora
conversando, outras lendo, outras sonhando que ia dar tudo certo, mas o caminho
era longo com uma luz linda que chamava – acho que era a tal utopia.
Atualmente, trabalhando na Escola
do SUS, quase 30 anos depois, tenho me perguntado: estou construindo qual mundo
pros netos e neta que estão vindo? Que é que faço? Aquilo que eu tinha entendido (sobre os
trabalhadores ) que era desconhecimento dos trabalhadores e, por isso, não defendiam o SUS, agora é quase uma rinha... praticamente,
todas as pessoas daqui defendem o SUS mas há, na prática e no discurso, na sua
maioria, um sentimento parecido ao desprezo sobre (exatamente) as forças que
conquistaram o SUS... os movimentos populares, os grupos que contestam continuam
sendo “aquele povo” que se aproveita do SUS.
Há muitos que estão ganhando quatro
mil cruzeiros por mês e vão ao shopping
comer no Mac, quase cumprindo “ouro de tolo” , inda que gostem do Raulzito.
Evidente que outros ganham mais... e passam a ser a ponte de comando pro
desconhecimento, alienação, tristeza e des-sonhos... esses me causam um misto
de sentimentos difíceis de se dizer.
Se eu estivesse junto à maioria
seria eu inimiga de mim? Enxergo muitas pessoas que são inimigas de suas
histórias singulares... Como fazer análise de estrutura e conjuntura se sangro
tanto e se canto menos? Também, se
ninguém mais faz análise, eu teria que fazer? De novo ir pro espinhal?
Nada disso...Canto, canto e
canto... e agora vou fazer fogão de pó-de-serra pro doce de leite e hei de oferecer,
ainda que despretensiosa pretensa, o
convite a saborearem a rapa queimada depois de lambuzar-nos tudo o que produzirmos no Marangatu!
Depois marcamos para a próxima
semana,
a próxima
e a próxima
e a próxima...
“E se
eu chorar
E o
sal molhar o meu sorriso
Não
se espante, cante
Que o
teu canto é a minha força
Pra
cantar”
57 anos na inteireza de mulherices
Publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada