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Imagem capturada pelo Google, 2019. |
Ernande Valentin do Prado
Às vezes
inventamos várias teorias, palavras bonitas e conceitos complexos para explicar
o que é muito simples e pode ser entendido lendo uma (ou quatro) histórias...
PLANTÃO NOTURNO
Segurei firme e apertei com cuidado, para a
maçanete fazer o menor barulho possível, afinal, já era quase duas horas da
manhã.
Ao entrar no quarto não acendi a luz, observei o
ambiente apenas com a luz de vigília. A neta, sempre presente, dormia na cama
do acompanhante. Não acordou e nem achei necessário acordá-la.
Dona Isaura respirava lentamente e sem esforço, em
paz. Dava para ver a vida se esvaindo. Segurei sua mão por um tempo, em pé ao
lado da cama. Quase certo de que seria nosso último encontro, depois de outros
natais, páscoas e dias comuns vividos juntos.
Sentiria saudades, no entanto sabia que já era hora
dela ir.
ESTAGIÁRIO
Entrei na enfermaria com os pratos do almoço e fui
distribuindo um para cada pessoa, sobrou até para os acompanhantes.
Por mais que a direção do hospital proibisse, não conseguia respeitar. Como
deixar essas pessoas sem comer?
— Ninguém fica doente sozinho, não é mesmo?
Era a justificativa, caso alguém questionasse e
viesse com aquela conversa de novo:
— A comida é só para os doentes...
Na cama do fundo, sem acompanhante, Mário não pegou o seu prato. Ficou apenas observando.
— Não vai comer?
Perguntei.
— Não consigo comer sozinho e estou sem
acompanhante.
Disse ele, conformado.
Destampei o prato, peguei o garfo, pronto para lhe
alimentar.
Sinceramente, não gosto de fazer isso, dar comida
na boca. Mas não dá para escolher fazer apenas o que se gosta, tem que fazer o
que o outro precisa e pronto.
— Pode usar uma colher, tenho medo de me
machucar...
Disse Mário, que sofria de uma doença que lhe
causava tremores aleatórios. Por isso não podia comer só e nem ser alimentado
com garfo.
— Posso, claro.
SAÚDE DA FAMÍLIA
— Você é o enfermeiro?
Disse o homem de mais ou menos um metro e setenta e
cinco, barba sem fazer há uns dias, que lhe dava uma aparência cansada. Os
olhas eram tristes. Segurava uma receita com anotações.
— Sou eu...
respondi estendendo a mão.
— A moça da recepção disse que eu deveria falar com
o senhor...
Seu Carlos entregou a ficha de acompanhamento com
as anotações da Pressão Arterial descompensada. Valores alteradíssimos. Depois
mostrou várias receitas com diferentes medicações. Algumas receitas com poucos
dias de diferença uma da outra.
Ele contou sua história, quer dizer, contou a
história da doença. Detalhou a escalada dos valores da pressão, cada vez mais
alta e descontrolada. Falou de todos os remédios que estava tomando, de todos
os exames que já tinha feito, de todos os médicos de família que já tinha
consultado, dos diferentes especialistas, das várias medicações e diferentes
doses que já tinha experimentado.
— É só isso, seu Carlos?
Disse eu, esperando que falasse o que realmente
queria. Porém ele não respondeu de imediato. Levou um tempo, que não deve ter
sido tão longo, mas que sempre parece mais constrangedor do que realmente é.
Então insisti.
— ...não tem mais nada, Seu Carlos?
— É só isso...
disse o homem, olhando para o chão.
— Talvez não tenha nada que possa me contar agora,
Seu Carlos, mas se veio falar comigo, depois de todos esses exames, médicos e
remédios que já experimentou, deve ter alguma coisa que não contou para
ninguém, antes, não tem?
Ele não respondeu de imediato. E eu esperei, dando
tempo para que o homem pudesse finalmente falar (e entender) o que realmente
fazia sua pressão se alterar. Finalmente ele levantou a cabeça e disse:
— eu era caminhoneiro...
e quando terminou de contar sua história, depois de
uns trinta minutos, eu apenas fiz uma perguntei.
— Agora o senhor compreende porque a pressão não
quer baixar?
— Compreendo,
respondeu Seu Carlos, agora de cabeça erguida.
— Posso fazer mais alguma coisa?
— Hoje não precisa...
— Então vamos medir novamente a pressão e na semana
que vem, ou antes, se precisa, o senhor volta para gente conversar mais um
pouco e medir a pressão, pode ser?
PRONTO SOCORRO
O estômago roncava, já passava das 13 horas e não conseguira comer ainda. Dois colegas a menos no setor e todos os demônios soltos. Era um caso atrás do outro e nenhum podia esperar.
Tem dia que é assim, faz parte. Conformei-me enquanto descia a escada correndo em direção ao refeitório.
A coisa estava tão desesperadora que até a cozinha abriu exceção, geralmente era proibido comer fora do horário das refeições. Já estavam lavando a louça do almoço e se preparando para o lanche da tarde. As cozinheiras, tal qual as enfermeiras, nunca param, nunca.
- Não tem mais nada, só pão...
disse a cozinheira, do outro lado do balcão, cortando duas grossas fatias do pão caseiro, feito pelas freiras da instituição.
- ...pode ser?
- Vai.
- Tem um resto de sopa também...
- Sopa não, pelo amor de Deus… só pão está ótimo,
disse eu, tão rápido que fiquei com medo dela achar que estava sendo mal agradecido.
- ...só pão e café está ótimo.
O pão era quase a melhor parte do dia. Sempre delicioso.
Os serventes já estavam limpando o chão. Num canto uma mesa estava separada:
- senta ali...
e quando fui sentar a sirene tocou. Era a emergência de novo. Dei uma golada na xícara de café, embrulhei o pão, coloquei no bolso e corri. Na sala de emergência uma moça, talvez vinte e tantos anos, convulsionava.
- 30 comprimidos de uma vez...
disse a colega, enquanto tentava estabilizar o braço esquerdo para puncionar a veia.
- ...nunca vi, devia morrer de uma vez, assim deixava a gente ao menos almoçar, não acha?
- Acho que o problema dela deve ser maior do que o nosso...
respondi, colocando a luva na mão esquerda, depois na direita. Evitei olhar para colega:
- deixa, eu faço isso. Pode preparar o carvão ativado?
[Ernande Valentin do
Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]