Equipe de Estratégia Saúde da Família - Rio Negro, 2007. |
Ernande
Valentin do Prado
Tenho mais de vinte anos como Enfermeiro e, até
agora, não vi nada que possa motivar uma equipe, que não passe pelo vínculo
entre os companheiros de trabalho.
E como criar vínculos entre os colegas de trabalho
ou como criar uma equipe, coisa que hoje parece nunca ter acontecido ou ser uma
utopia?
Ao menos até onde consigo ver e saber de ouvir
falar, o trabalho multiprofissional já existe em toda parte e até já existia
antes do SUS. Não se trata de construir essa possibilidade e sim de saber o que
fazer com ela. Antes da criação do Núcleo Apoio à Saúde da Família (NASF), em
alguns lugares já existiam equipes estendidas, com mais profissionais do que o
mínimo preconizado: Agente Comunitário de Saúde (ACS), Agente de Endemias,
Assistente Social, Enfermeiro, Dentista, Farmacêutico, Médico, Nutricionista,
Profissional de Educação Física, entre outros que faziam e fazem a roda da
Atenção Básica girar. Eu mesmo já trabalhei em uma equipe assim.
Hoje as equipe cresceram mais ainda e é comum ver
categorias profissionais fazendo lobby para ser integrada a Atenção
Básica e à Estratégia Saúde da Família. Será realmente necessário, será que,
neste caso, vale o “quanto mais melhor?”
Quem foi que disse que ter uma penca de
profissionais trabalhando em um mesmo espaço e até em um mesmo horário, garante
melhoria na qualidade dos cuidados?
Com frequência vemos que pode até prejudicar.
Aliás, o Saúde da Família não foi pensando para ser uma equipe mínima que
pudesse conhecer todas as situações da família? Ou seja, desde sempre já se
sabia que a equipe não deveria ser grande, não é assim só por questões
financeiras, embora na época da Criação do PSF, os opositores tivessem esse
discurso.
Parece que na maioria das cidades brasileiras os
serviços de saúde não conseguiram constituir equipes, apenas amontoados de
profissionais que ficavam e ainda ficam restritos aos seus quadrados. E “cada
um no seu quadrado” não constitui-se em uma equipe.
Então, como constituir uma equipe de fato e não um
amontoado de estranhos familiares trabalhando em um mesmo serviço?
Não sei responder essa pergunta de uma forma que a
resposta seja válida para todos, em toda lugar, só sei dizer como aconteceu nas
diversas equipes por onde passei. E é isso que vou contar agora:
Primeira coisa: morar na área onde se trabalha,
sobretudo em cidade pequena, facilita demais a criação de vínculos. Em uma
dessas equipes eu trabalhava o dia todo com eles, depois frequentava a casa de
partes deles e também os recebia em minha casa. Além de sair para os bares,
frequentar festas, celebrações religiosas.
Em pouco tempo fui percebendo que essas pessoas,
com as quais eu convivia fora do expediente, estavam quase sempre motivadas e
dispostas para qualquer coisa no trabalho diário. E conclui que a relação que
existia fora do trabalho facilitava as relações profissionais.
Claro que isso também pode ser um fator de
complicações, de confusão, afinal, misturar amizade com profissionalismo, pode
resultar em confusão, em favorecimento da amizade em detrimento das obrigações.
Em minha experiência isso não aconteceu e eu mesmo sou o primeiro a achar
difícil acreditar nisso, mas é fato.
Ao perceber que a amizade facilitava o desempenho
das atividades programadas na ESF, passei a fazer, de modo deliberado e
sistemático, ações de confraternização fora do local de trabalho e, algumas
vezes, fora do expediente. A intenção era promover com todos a mesma integração
que existia de forma natural entres os trabalhadores que conviviam comigo nos
espaços sociais fora do horário de expediente.
Passei usar qualquer desculpa para reunir-se,
confraternizar e comemorar. Se a campanha de vacinação era um sucesso, fazia-se
uma festa para comemorar, e antes de iniciar a campanha já faziamos uma
confraternização para marcar o início dos trabalhos. Se era necessário fazer
uma atividade de Educação Permanente sobre alimentação saudável, a coisa já
virava um piquenique em algum balneário, um café da manhã ou um almoço.
O dia “D” da vacinação, por exemplo, tinha
uma extensa programação de atividades lúdicas envolvendo trabalhadores e
usuários. Quase sempre a equipe acreditava que fazíamos aquilo para as crianças
(e não deixava de ser), porém quem mais se divertia, até porque passava o dia
brincando (sem deixar de trabalhar) era a equipe: corrida do saco, dança das
cadeiras, corrida do ovo na colher, pintura (no papel e no rosto), concurso
Miss SUS e, claro, um bom almoço coletivo (no qual até o Secretário de Saúde e,
uma vez até o prefeito compareciam).
Além de tudo isso, no final do dia ainda tinha a
confraternização formal, que dependendo do orçamento, poderia ser só sorvetes
ou pizza.
E, esse tipo de programação que misturava o
calendário de ações com a comunidade e confraternizações entre os
trabalhadores, estendia-se para o dia da mulher, dias específicos de cada
profissão, feriados religiosos, dia da criança, dia da consciência negra e
outros.
Todas as atividades, por menores que fossem, eram
planejadas em reuniões de equipe e outras reuniões extras, conforme o caso.
Envolvia-se a maioria das pessoas, desde técnicos, passando pela faxineira, o
motorista e até o almoxarife. Tudo fotografado, descrito e destacados os
envolvidos.
Com o tempo, nesse circuito de confraternizações,
passou a entrar festas de aniversários, casamentos, chá de fralda e outras
agendas mais pessoais.
E, apesar de antipatias naturais (que não dá para
amar todo mundo o tempo todo), funcionava bem e o trabalho fluia sem
dificuldades, mesmo com as condições de trabalho e renda da equipe não tendo se
alterado em nada.
Um dos indicadores de que as coisas funcionavam bem
e que éramos realmente uma equipe, era, sem dúvida os resultados alcançados:
número de pessoas participando das ações, número de gestantes acompanhadas,
números de crianças no programa de puericultura, número de mulheres fazendo o
exame preventivo de câncer de colo de útero, número de pessoas com diabetes e
hipertensão participando do programa de acompanhamento, e outros, como em
qualquer equipe, mas principalmente o número de trabalhadores que se ofereciam
para trabalhar nos fins de semana, no horário noturno e em datas
especiais.
Na equipe era muito raro ter profissional chegando
atrasado, atendendo mal a população, recusando-se a fazer visitas ou atividades
coletivas e, conflitos pessoais, eram tão raros que nem vale registrar. E, mais
incrível ainda, quase sempre toda a equipe queria participar de tudo, mesmo não
tirando as folgas com as quais eram recompensados ao longo dos meses.
Para minha pesquisa de especialização, entrevistei
os funcionário e um deles disse:
[...] antigamente era: agente de saúde fazia seu
trabalho, auxiliar fazia o seu, enfermeiro o seu, médico o seu... Apesar que...
A gente, com essa equipe toda, a gente trabalha bastante... aumentou o nosso
serviço, mas pelo menos a gente é bastante reconhecido (P2).
Essa forma de trabalhar não conseguiu mobilizar cem
por cento dos profissionais, como já deve ter imaginado, mas apenas a maioria.
Mesmo assim, e mesmo aceitando todos os argumentos que enfatizam as
dificuldades do cotidiano dos serviços de saúde, não tenho como achar difícil
constituir uma equipe e conduzir de forma coletiva o trabalho.
Referência:
PRADO,
Ernande Valentin; SALES, Cibele; NOMIYAMA, Seiko. Eu vivi, ninguém me contou:
Educação Popular em estratégia Saúde da Família na beira do Pantanal, Mato
Grosso do Sul, Brasil. Interface Comunicação, Saúde, Educação. 2014; 18 Supl
2:1441-1452
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das
10 às 6tas-feiras]