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17 janeiro 2020

PSICOTRÓPICO, ANTIBIÓTICO E ATESTADO MÉDICO

Ernande Valentin do Prado


Em uma segunda-feira gelada, quando trabalhava em uma Equipe de Saúde da Família na Região Metropolitana de Curitiba, fui chamado pela colega médica, que vamos chamar de Lilian, para ajudá-la a decidir sobre o que fazer em relação às queixas de um usuário, que pela terceira segunda-feira seguida se repetiam e eram muito parecidas com desculpas de quem queria (ou precisava) de um atestado médico para justificar a falta ao trabalho.
A maioria dos profissionais médicos que conheço ou com os quais trabalhei, não têm nenhum pudor em passar uma receita de psicotrópico, antibiótico ou de pedir uma tomografia sem necessidade razoável, porém ficavam fazendo cu doce na hora de dar um simples atestado para justificar a falta de uma pessoa ao trabalho.
Será sua consciência de classe se manifestando sobre as necessidades do ser humano?
— Certo, vamos conversar com ele.
Disse eu e saí de minha sala, atravessei o corredor, cheio de gente e entrei no consultório.
O homem aparentava uns trinta anos. Branco, quase vermelho, pele queimada de sol, cabelos loiros ressecados. Não era muito alto, mas parecia forte, apesar da aparência abatida, que Lilian identificou como ressaca.
Estava sentado na cadeira em frente à mesa, olhava para as mãos grossas e calejadas de dedos entrelaçadas sobre as pernas. A colega, que já o conhecia, me apresentou e explicou o porquê me chamou. Repetiu todos os sintomas, dando ênfase a ser a terceira segunda-feira que ele estava no consultório com as mesmas queixas.
Arrastei uma cadeira e sentei de frente para o homem, que vamos chamar de Inácio, em homenagem ao meu tio Inácio, e disse:
— Inácio (que ele nem era mais velho que eu) Me fale de seu trabalho.
Ele contou.
Trabalhava em uma Serraria há três anos, sem carteira assinada, sem férias. Quase todos os dias era obrigado a fazer horas extras, que não eram remuneradas.
O trabalho era pesado, mal remunerado, pouco mais de um salário mínimo mensal. O chefe só falava com os empregados aos gritos, sempre os rebaixando. A palavra menos deselegante que o sujeito dirigia aos empregados era “xucro”.
Inácio era solteiro, morava sozinho, pensava em voltar a estudar, fazer um curso profissionalizante qualquer, mudar de emprego, ter uma perspectiva de vida melhor.  No entanto o cansaço era muito grande. Saia de casa para o trabalho bem cedo e voltava já de noite, todos os dias da semana. Não praticava nenhum esporte, não frequentava a igreja, nem era de um movimento social. Sua única diversão: dançar e beber no sábado. E a algum tempo bebia também no domingo. 
Admitia que ultimamente estava passando dos limites e sentia-se mal para trabalhar na segunda-feira (e também em ter que pedir atestado).
— Mas não é fingimento.
Frisou Inácio.
Lilian ouviu toda a conversa sem falar nada, só observando e uma vez ou outra fazendo gestos com a cabeça e modificando a expressão facial. Ela era o tipo de pessoas que observava muito e dava espaço para opiniões diferentes das suas.  
Um parêntese para falar sobre minha colega Lilian. Até hoje foi uma das poucas médicas com quem trabalhei que tinha um profundo interesse em Saúde da Família. Ela procurava envolver-me em seus atendimentos e sempre estava disposta a rever as condutas, não era apenas tentativa de transferir responsabilidade. Além disso, estava sempre disposta a fazer atividades coletivas, visitas domiciliares e outras coisas. Pena que eu só percebi essas qualidades quando não trabalhávamos mais juntos. Na época eu estava incomodado demais achando que ela queria competir comigo nas minhas coisas, nas minhas ações de enfermeiro de saúde da família.
 Voltando ao caso de Inácio, que é  só mais um entre outros tantos que nem chegamos a perceber no dia-a-dia do sistema de saúde, acredito que a questão principal para nós profissionais e trabalhadores do Sistema Único de Saúde, não é a questão clínica, nem a questão existencial ou social de Inácio. O que precisamos nos perguntar, especialmente o médico, que tem o poder legal de atestar, é:
 — Por que o trabalhador precisa inventar sintomas para conseguir um atestado?
Será que a história contada por Inácio não era justificativa suficiente para o atestado? Será tão difícil compreender o sofrimento que o trabalho (e o patrão) impõe ao trabalhador?
O atestado de dois ou três dias ou mesmo de um mês não iria realmente resolver o problema deste homem, nem tão pouco medicá-lo com algum psicotrópico ou aconselhá-lo a parar de beber. Então, por que não há pudor em medicar e prescrever “parar de beber”?
Talvez o primeiro dever do profissional de saúde, quando a cura não é possível e nem a prevenção, seja aliviar a dor. E, neste caso e de muitos outros trabalhadores que batem às nossas portas, o atestado médico parece aliviar a dor, ou estou falando algo absurdo?
Por trás de toda e qualquer queixa há um sofrimento real, mesmo que as queixas sejam aparentemente inventadas, basta praticar uma clínica bem feito, não acham?
Talvez não seja possível aliviar as dores de todos, não se deve deixar-enganar, pois pode aumentar o problema, uma vez que o trabalhador que abusar de atestado, com ou sem queixas tangíveis, será demitido. Por outro lado, sempre é possível abrir o jogo, dialogar com o trabalhador que bateu a sua porta e oferecer ajuda, como aconteceu desta vez. E talvez isso seja o nosso possível e o que Inácio precisava para mudar sua vida.
Ao final da conversa Lilian disse:
— Você entende que faltar ao trabalho toda segunda-feira parece fingimento?
— Entendo…
— Eu vou te dar três dias de atestado, mas isso não vai resolver o problema. Mesmo cansado e sem forças, precisa dar um jeito de voltar a estudar, se é isso que quer mesmo. Ou vai ficar a vida toda dependendo de atestado para descansar. E eu não vou poder te ajudar para sempre.
Inácio foi embora depois de apertar a mão de Lilian e essa foi a última vez que nos vimos. Talvez ele tenha mudado sua vida ou talvez só tenha mudado de Unidade Básica de Saúde (UBS), não sei, só acredito que naquele momento foi o nosso possível.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




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