Ernande Valentin do Prado
Em uma segunda-feira
gelada, quando trabalhava em uma Equipe de Saúde da Família na Região
Metropolitana de Curitiba, fui chamado pela colega médica, que vamos chamar de
Lilian, para ajudá-la a decidir sobre o que fazer em relação às queixas de um
usuário, que pela terceira segunda-feira seguida se repetiam e eram muito
parecidas com desculpas de quem queria (ou precisava) de um atestado médico
para justificar a falta ao trabalho.
A
maioria dos profissionais médicos que conheço ou com os quais trabalhei, não
têm nenhum pudor em passar uma receita de psicotrópico, antibiótico ou de pedir
uma tomografia sem necessidade razoável, porém ficavam fazendo cu doce na hora
de dar um simples atestado para justificar a falta de uma pessoa ao trabalho.
Será
sua consciência de classe se manifestando sobre as necessidades do ser humano?
—
Certo, vamos conversar com ele.
Disse
eu e saí de minha sala, atravessei o corredor, cheio de gente e entrei no
consultório.
O
homem aparentava uns trinta anos. Branco, quase vermelho, pele queimada de sol,
cabelos loiros ressecados. Não era muito alto, mas parecia forte, apesar da
aparência abatida, que Lilian identificou como ressaca.
Estava
sentado na cadeira em frente à mesa, olhava para as mãos grossas e calejadas de
dedos entrelaçadas sobre as pernas. A colega, que já o conhecia, me apresentou
e explicou o porquê me chamou. Repetiu todos os sintomas, dando ênfase a ser a
terceira segunda-feira que ele estava no consultório com as mesmas queixas.
Arrastei
uma cadeira e sentei de frente para o homem, que vamos chamar de Inácio, em
homenagem ao meu tio Inácio, e disse:
—
Inácio (que ele nem era mais velho que eu) Me fale de seu trabalho.
Ele
contou.
Trabalhava
em uma Serraria há três anos, sem carteira assinada, sem férias. Quase todos os
dias era obrigado a fazer horas extras, que não eram remuneradas.
O
trabalho era pesado, mal remunerado, pouco mais de um salário mínimo mensal. O
chefe só falava com os empregados aos gritos, sempre os rebaixando. A palavra
menos deselegante que o sujeito dirigia aos empregados era “xucro”.
Inácio
era solteiro, morava sozinho, pensava em voltar a estudar, fazer um curso
profissionalizante qualquer, mudar de emprego, ter uma perspectiva de vida
melhor. No entanto o cansaço era muito grande. Saia de casa para o
trabalho bem cedo e voltava já de noite, todos os dias da semana. Não praticava
nenhum esporte, não frequentava a igreja, nem era de um movimento social. Sua
única diversão: dançar e beber no sábado. E a algum tempo bebia também no
domingo.
Admitia
que ultimamente estava passando dos limites e sentia-se mal para trabalhar na
segunda-feira (e também em ter que pedir atestado).
—
Mas não é fingimento.
Frisou
Inácio.
Lilian
ouviu toda a conversa sem falar nada, só observando e uma vez ou outra fazendo
gestos com a cabeça e modificando a expressão facial. Ela era o tipo de pessoas
que observava muito e dava espaço para opiniões diferentes das
suas.
Um
parêntese para falar sobre minha colega Lilian. Até hoje foi uma das poucas
médicas com quem trabalhei que tinha um profundo interesse em Saúde da Família.
Ela procurava envolver-me em seus atendimentos e sempre estava disposta a rever
as condutas, não era apenas tentativa de transferir responsabilidade. Além
disso, estava sempre disposta a fazer atividades coletivas, visitas
domiciliares e outras coisas. Pena que eu só percebi essas qualidades quando
não trabalhávamos mais juntos. Na época eu estava incomodado demais achando que
ela queria competir comigo nas minhas coisas, nas minhas ações de enfermeiro de
saúde da família.
Voltando
ao caso de Inácio, que é só mais um entre outros tantos que nem
chegamos a perceber no dia-a-dia do sistema de saúde, acredito que a questão
principal para nós profissionais e trabalhadores do Sistema Único de Saúde, não
é a questão clínica, nem a questão existencial ou social de Inácio. O que
precisamos nos perguntar, especialmente o médico, que tem o poder legal de
atestar, é:
—
Por que o trabalhador precisa inventar sintomas para conseguir um atestado?
Será
que a história contada por Inácio não era justificativa suficiente para o
atestado? Será tão difícil compreender o sofrimento que o trabalho (e o patrão)
impõe ao trabalhador?
O
atestado de dois ou três dias ou mesmo de um mês não iria realmente resolver o
problema deste homem, nem tão pouco medicá-lo com algum psicotrópico ou
aconselhá-lo a parar de beber. Então, por que não há pudor em medicar e
prescrever “parar de beber”?
Talvez
o primeiro dever do profissional de saúde, quando a cura não é possível e nem a
prevenção, seja aliviar a dor. E, neste caso e de muitos outros trabalhadores
que batem às nossas portas, o atestado médico parece aliviar a dor, ou estou
falando algo absurdo?
Por
trás de toda e qualquer queixa há um sofrimento real, mesmo que as queixas
sejam aparentemente inventadas, basta praticar uma clínica bem feito, não
acham?
Talvez
não seja possível aliviar as dores de todos, não se deve deixar-enganar, pois
pode aumentar o problema, uma vez que o trabalhador que abusar de atestado, com
ou sem queixas tangíveis, será demitido. Por outro lado, sempre é possível
abrir o jogo, dialogar com o trabalhador que bateu a sua porta e oferecer
ajuda, como aconteceu desta vez. E talvez isso seja o nosso possível e o que
Inácio precisava para mudar sua vida.
Ao
final da conversa Lilian disse:
—
Você entende que faltar ao trabalho toda segunda-feira parece fingimento?
—
Entendo…
—
Eu vou te dar três dias de atestado, mas isso não vai resolver o problema.
Mesmo cansado e sem forças, precisa dar um jeito de voltar a estudar, se é isso
que quer mesmo. Ou vai ficar a vida toda dependendo de atestado para descansar.
E eu não vou poder te ajudar para sempre.
Inácio
foi embora depois de apertar a mão de Lilian e essa foi a última vez que nos
vimos. Talvez ele tenha mudado sua vida ou talvez só tenha mudado de Unidade Básica de Saúde (UBS), não
sei, só acredito que naquele momento foi o nosso possível.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]