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11 outubro 2020

EM JARDIM NOS LAMBUZAMOS DE BOURBON



Vô Dale me chamou prá ir comer um docinho lá no bar do Gringo. Coloquei o conga com a ajuda dele e fomos de mãos dadas. Ah, era a certeza do pé de moleque ou da paçoca. No mínimo teria geleia de mocotó. Ele conversaria com os homens e eu ficaria na cadeira ao lado. Uma cerveja e voltaríamos prá casa a menos de duzentos metros. Na volta senti que segurava mais forte a minha mão e eu olhei prá ele. Fazia muxoxo com a boca... os olhos estavam meio vermelhos. E ele disse: você vai ter duas casas. Uma aqui em Itaporã e outra em Jardim.

- Jardim? O que é Jardim?

- É uma cidade onde o seu pai vai sempre levar madeira. Eu e sua avó vamos morar lá prá vender madeira.

Eu não entendi nada. Seria um Jardim? À noite, sentados à mesa embaixo do lampião, sem jogar pega-varetas nem dominó, papai começou a fazer as contas do “corte de casa”. Dois quartos, uma sala com cozinha separadas por cortina, um banheiro na área do fundo, uma varanda na frente. Pronto aí a conta é composta por tábuas, caibros, vigas 8x12 e 12x16 e ripas. Papai tinha as contas na cabeça. Escrevia em um papel e os outros três falavam do tamanho dos cômodos e o Berto fazia as contas. Piso de vermelhão e telhas romanas. Quanto tempo? Dois a três meses e a casa estava pronta. Mudariam logo em seguida.

Eu não tinha a ideia real da separação das quatro pessoas que mais me amavam. Dois casais em que eu era a prioridade em tudo. Talvez tenha sido essa avalanche de amor por quase 14 anos que me fez nunca mais aceitar amor menor. Sempre quero tudo inteiro. É o formato que me deram de amor: inteiro, intenso, imenso!

- Fica longe o Jardim?

- Não, Lili... papai vai de caminhão de madrugada e chega à noite de volta. Não é longe e nem é perto.

Seria o Jardim igual ao da mamãe, cheio de rosas? Teria cheiro de flores? Esperei com muitas perguntas a ida ao Jardim. Só sei que no dia que o volinho e a volinha foram morar em Jardim eu tinha ido passar o dia em alguma tia (os quatro que me amavam armavam menos sofrimento para mim, sempre!). Quando cheguei já tinham ido pro Jardim. Tinha de cinco prá seis anos. Não entendi direito a mudança. Esperei que voltassem na próxima viagem do papai, em algum dia à noite.

Numa sexta-feira, quando cheguei do jardim da infância, vinha de mãos dadas com alguém (não lembro quem me trazia), o caminhão estava carregado e íamos pro Jardim e só voltaríamos no domingo – papai, mamãe e eu. Nossa! Imaginação em polvorosa.

A boleia do caminhão era das mais legais. Música de Moacir Franco com suas montanhas azuis...  até a rádia sair do ar. Como era o período da tarde, a AM Rádio Clube de Dourados pegava longe. Tinha o programa do Velho Tatá... mas aí era Lio e Léo, Milionário e Zé Rico, mas o mais melhor mesmo era Cascatinha e Iñana... Ia até perto do mata-burro depois de Maracaju. Depois era mamãe e papai que cantavam. Mamãe ouvia a rádio Tupi e tinha mania de copiar letras de músicas, acho que tinha até um caderno. A última era uma música do Roberto Carlos que de tanto ouvir ela cantava já sem letra escrita. Mesmo assim, tirou o papelzinho e foi lendo e depois ela e nós cantávamos durante a viagem. E nós três encenávamos ao final cantando... “como é grande o meu amor por você”...



Naquela viagem não tinha atoleiro no Carumbé e meu pai ficou contente. Nos períodos da chuva podia se levar mais de dia com o caminhão encravado. Chegaríamos em quatro a cinco horas. Era muito menos que 200 km. Mamãe levou pão com mortadela, limonada e banana. Eu dormia e acordava a todo momento... cadê o Jardim?

Passamos numas ruas que se via parte de Maracaju e depois paramos para comer chipa e tomar café no Polaco. Tudo era muito bonito e eu perguntava o tempo todo. Quando chegou a serra de Maracaju eu olhava os buracos e os montes. Ficava maravilhada e amedrontada. Nunca tinha visto aquilo. A maior subida de Itaporã era na pedreira indo prá Dourados. O restante era tudo plano. Como era isso de tantos morros e tantos buracos fundos?

Papai falava dos perigos e mostrava as cruzes à beira da estrada. Somente muito tempo depois que soube que não havia os corpos ali. Eu olhava com curiosidade e não enxergava os montes de terra indicando que alguém estava enterrado. Teria assombração à noite com as cruzes? Papai contava os acidentes, quantos tinham morrido, como tinha sido... um horror prás imaginações. Acho que era uma forma dele me fazer parar de perguntar. Ou era porque, naquela situação de viagem ele era a autoridade da história. Hoje eu diria que ele era a testemunha ocular de muitas mortes. De outras era o re-contador de histórias. Acho que todos os caminhoneiros são assim mesmo, contam as histórias e não as deixam ficar nas cruzes. Elas andam pelas estradas.

Quando entramos em Guia Lopes da Laguna meu pai falou da grandeza do Rio Miranda que dividia os dois municípios – do outro lado já era Jardim. Entendi que não era um jardim, era Jardim. Falou do Guia Lopes, da guerra do Paraguay, mas não lembro... só lembro da travessia do rio.

Entramos naquela ponte bonita, feita em arcos, como em desenhos que eu via. Meu pai a tudo narrava. Era como um guia. Falou das arraias que tinha no Miranda, das sucuris, da prainha que iríamos no sábado. O Rio Miranda entrou na minha vida para sempre. Tudo nele passou a me interessar. Iríamos a uma praia de rio... será que era igual do mar que papai contava?

Jardim tinha várias ruas logo na entrada e fomos à primeiro de maio. A carga do caminhão rangia em descer da rua central prá rua lateral. Minha mãe logo falou: Berto, eu acho que você trouxe carga a mais dessa vez, não trouxe?

Papai só olhou e me falou que já estávamos na rua do Depósito de Madeiras São João. Tudo na família se chamava São João. Quando vi a placa (eu não sabia ler) minha mãe apontou e já fomos entrando no portão grande. O caminhão estacionado, desci pelo colo do papai e Vô Dale e Vó Stela vieram e me abraçaram de uma vez só.

Caía a noite e fui apresentada à minha cadeirinha. Tinha balanço e eu estava sem me aguentar de alegria. O sol descia vermelhão e volinha disse que no outro dia seria muito calor.

Fui chamada aos fundos da casa que tantas madeiras mandavam cheiros bons e fortes. Só um era ruim, o da peroba. Forte que cortava o fôlego.

Volinho levou a minha cadeira para o fundo porque eu me recusava a sair dela. E, aí, como numa aparição, trouxe uma bacia com três mangas Bourbon. Eu não sabia do seu cheiro nem do seu gosto. Porque em Itaporã não tinha manga Bourbon? Vai saber... elas eram verdes escuras, pintadas de preto onde parecia que a casca apodrecia. Quando mais pintas pretas mais doce seria... Os meus amores ao meu lado, iam abrindo a casca com as mãos. Nada de facas. E eu ia comendo nas partes descascadas e eles riam de contentamento. Escorria pelos braços, pelo pescoço, as bochechas adoçadas de amarelo meio escuro. A Bourbon não tinha fiaaaaaaapo! Que maravilha.

Minha mãe estava meio inquieta com aquela lambuzeira danada e meus amados só riam. Comi que à noite a polenta ficou demais. Eles quatro adultos comiam a distinta com frango ao molho e eu só comi mesmo o fígado e a moela cortada ao meio (a outra metade sempre foi do papai).

Não queria escovar dente e nem tomar banho. Mas não me livrei. Tudo em nome de tirar o grude da manga.

Até hoje adoro jantar manga... E ainda sinto o riso dos que me amavam profundamente e me deixavam lambuzar de Bourbon.  E, Jardim continua a ser um jardim... de mangueiras por todas as partes e tipos.

Às crianças deveriam proibir outras formas de chupar manga que não fosse tirando a casca com a mão e ir se lambuzando. E, aos adultos, quando estivessem embaixo dos pés de manga não disporem do direito à faca. Tudo na mão, lambuzenta.

Deixar-se lambuzar as mãos, os braços, os fiapos nos dentes, o rosto amarelado poderia fazer das pessoas gente mais gente, com menos asco diante da vida... e em muitas áreas do viver... principalmente naquelas que precisamos nos lambuzar de vida, de gente, de prazeres!

Ai que delícia seria!

 

Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

 

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