Ernande Valentin do Prado
Ao sair da faculdade mergulhei na Estratégia
Saúde da Família (ESF). Sem nenhuma especialização, sem curso introdutório, só
com o que aprendi no Curso de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR), e ao contrário do que achava na época, esse curso foi muito
bom. Aprendi quase tudo que precisava saber para atuar em ESF.
Depois de um tempo tomando pé da situação sanitária do município, olhei um relatório para saber da situação do pré-natal e descobri que duas gestantes haviam começado o acompanhamento após o oitavo mês de gravidez.
Depois de um tempo tomando pé da situação sanitária do município, olhei um relatório para saber da situação do pré-natal e descobri que duas gestantes haviam começado o acompanhamento após o oitavo mês de gravidez.
Quase morri de
vergonha.
Fui atrás de
descobrir quem eram essas mulheres, onde moravam, quem era o Agente Comunitário
de Saúde (ACS) da microárea delas. Descobri que não moravam no município
até alguns dias e que foram as ACS quem as trouxe para fazer o pré-natal, mesmo
atrasado.
Mesmo assim
continuei com vergonha. No mesmo relatório descobri gestantes começando o
pré-natal na 14ª, 16ª, 25ª semanas, além dessas duas que estavam fora de
qualquer curva de anormalidade. Não era aceitável ter gestantes iniciando
pré-natal após a décima segunda semana, segundo o protocolo (confesso: gosto
dos protocolos, principalmente como ponto de partida).
Naquela semana, em
reunião com a equipe, apresentei a situação. Discutimos o problema, as falhas,
os acertos, estudamos as normas de funcionamento do pré-natal e começamos a
fazer correções. Nossa meta: em seis meses não ter nenhuma gestante iniciando
pré-natal após a 12ª semana de gestação.
Após quatro meses
fizemos um primeiro balanço e a descoberta foi surpreendente. Nenhuma gestante
iniciando o pré-natal depois da 12ª semana e três delas tinham começado o
pré-natal na oitava semana. Podem até dizer, mas isso é normal hoje em dia,
certo? Agora levem em conta que conseguimos isso bem antes da disponibilidade
de testes rápidos na atenção básica.
E qual foi a mágica:
Nenhuma, foi
trabalho simples de equipe mudando o processo de trabalho.
A principal
estratégia coube aos Agente de Saúde. Eles e elas passaram a conversar, em
todas as visitas domiciliares, sobre menstruação atrasada, o que dava mote para
descobrir gravidez, promover o exame de preventivo de câncer de colo de útero e
discutir a prevenção a gravidez sem planejamento, principalmente com as
adolescentes, entre outros situação.
Na conversa,
descobrindo que a mulher estava com a menstruação atrasada, já era ofertada a
oportunidade de consulta de enfermagem, muitas vezes no mesmo dia.
Na consulta,
havendo sinais sugestivos de gravidez, era solicitado imediatamente o exame
para confirmar e este era realizado no dia seguinte ou conforme a
disponibilidade da mulher. E, confirmada a gravidez, iniciava-se o pré-natal
imediatamente. Todo esse processo, em alguns casos, acontecia na mesma semana.
A segunda consulta e as demais eram sempre com dia e hora marcada. Tenho horror
em deixar as pessoas esperando (principalmente se for gestante).
A Estratégia Saúde
da Família sempre foi um desafio para maioria dos profissionais de saúde. Em
grande parte por desconhecimento, por desinteresse nas coisas que se deve fazer
nela e também por dificuldade em trabalhar numa área tão ampla e
mistificada. Para fazer saúde da família, seja qual for a profissão, exige-se
um conhecimento vasto que não se limita a clínica e, principalmente, a determinada
clínica. Em um dia no Saúde da Família tudo pode acontecer, inclusive nada (se
bem que o nada ainda não testemunhei).
Isso é desafiador e
quase sempre deixa o profissional inseguro. Trabalha-se no escuro quase o tempo
todo, situação com a qual grande parte dos profissionais não conseguem lidar
bem.
Enfrentar os
desafios é um risco que não tem atraído muita gente, pelo contrário, parece que
afasta. Com a escassez de pessoal capacitado, situação que se agrava pela quase
ausência de concursos públicos, acaba-se tendo que trabalhar com quem se
dispões, tendo esse alguém perfil ou não.
Por outro lado,
embora reconheça a complexidade de ser profissional de uma área tão vasta e
complexa, não dá para mistificar, como mostra a história contada no início. Por
mais que eu queria valorizar o que sei fazer, por mais que queria valorizar a
Atenção Primária à Saúde, não dá para se enganar: não é tão difícil assim, sei
disso por experiência própria, além de inúmeras vivências lidas.
No exemplo
apresentada neste texto, não foi feito uma longa e exaustiva análise dos
indicadores epidemiológico do município, partiu-se apenas de um
indicador: início de pré-natal até a décima segunda semana, situação
corriqueira e que todos poderiam visualizar e compreender. Foi só isso. É
tão difícil?
O profissional de
saúde que for incapaz de olhar para um indicador simples como esse e não
reconhecer o problema, talvez não devesse ter conseguido um diploma e o
registro no conselho de classe.
Ao reconhecer o
problema e levá-lo para reunião de equipe, envolveu-se e responsabilizou-se
todos e todas. Discutiu-se os problemas que existiam neste e em outros
programas. Houve, a partir do enfrentamento desse único indicador, mudança no
processo de trabalho de quase toda equipe, isso porque quase todos assumiram
que o problema era seu e que poderia ser resolvido. Essas mudanças e os
resultados estão detalhadas no artigo: “O cuidado à mulher como centro da Estratégia Saúde da
Família”, publicado na Revista de Atenção Primária à Saúde.
Ao iniciar as
mudanças no processo de pré-natal, observou-se que ao mesmo tempo poderia ser
estimulada a realização do preventivo de câncer de colo de útero e mama, a
organização da puericultura, a visita domiciliar programa para o recém-nascido,
o programa de saúde da criança, prevenção de gravidez na adolescência, entre
outros. Além disso, ao observar o resultado positivo em apenas 4 meses, a
equipe percebeu que poderia usar outros indicadores para pensar outros
programas. Ao mesmo tempo perceberam que foi o esforço de cada profissional que
deu resultado e não de um em particular.
Todas essas ações
desencadeada só foram possíveis, também, graças ao estabelecimento de Educação
Permanente. E foi uma educação permanente orgânica, feita na base do estudo de
grupo, cada um aprendendo e ensinando. Estudava-se coletivamente determinado
programa, fazia-se oficinas, pensava-se a logística e os programas eram
implantados, quase sempre sem a necessidade de intervenção externa da
Secretaria Estadual de Saúde ou de qualquer tipo de apoio, que não existia na
época.
As mudanças
começaram na ESF e rapidamente envolveu o laboratório de análises clínicas, a
farmácia, a clínica multiprofissional, a gestão e até o hospital municipal.
Será que é isso que se chama ordenar e coordenar os cuidados a partir da
Atenção Básica?
Então, será que é
tão difícil fazer a ESF funcionar?
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]