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Imagem capturada na internet. 2018. |
Ernande
Valentin do Prado
Ontem, uma senhora na fila do pão perguntou:
— O pão está quente?
Não foi exatamente uma pergunta, ela parecia só querer puxar
conversa. E eu só consegui responder como se fosse realmente uma pergunta, uma
solicitação de informação, como quando um estranho que não conhece o Google Maps, lhe
pergunta um endereço na rua.
— Está.
Ao mesmo tempo fiquei achando estranha.
Mas o que é estranho? Afinal era só uma pessoa puxando conversa na
fila do pão. O que isso pode ter de estranho?
Na hora eu senti como quando uma pessoa, ao falar contigo,
aproxima-se tanto a ponto de invade seu espaço pessoal, causando mal-estar.
Embora ela não tenha feito isso e nem nada parecido.
— Pão quente é muito bom... quer dizer, não é muito bom, a gente
come demais e engorda.
Continuou falando a mulher...
— É verdade.
Respondi, sem saber o que estava falando, apenas reagindo a fala
dela e querendo encerrar o assunto. Só que nem tinha assunto. Eu não deixei o
assunto acontecer, não é?
Peguei meu pão quente, comprei queijo e fui para a fila do caixa.
Ela continuou no balcão conversando com o atendente.
Conversa mais besta, não é?
Coisa sem propósito, corriqueira demais para alguém se importar em
escrever. E olha que quem está falando isso sou eu, ou seja, um quase
especialista em escrever coisas corriqueiras, sem importância nenhuma para vida
de ninguém. Um texto meu pode não ser escrito ou não ser lido, sem que ninguém
sinta falta, a não ser eu. É mais ou menos como ver um filme de super-herói da Marvel Studios.
Então por que caminhei até em casa pensando nisto e, agora, me dei
ao trabalho de relatar?
Talvez seja pura nostalgia de outro tempo, talvez seja pela
constatação de que sou mais condicionado por esse nosso tempo, esse nosso modo
de vida, do que imaginava e gostaria. Acho que isso me aterrorizou.
Talvez não seja nada disso, talvez seja só falta de assunto e
vontade escrever.
Minha irmã, desde criança, foi o tipo de pessoa que puxava
conversa com estranhos na rua. Não sei se ainda faz isso, mas fazia e por conta
disso deve ter conhecido muita gente interessante, gente que talvez nem eu e
nem você vá conhecer.
— Será?
Sinto que está cada vez mais difícil estabelecer contato com as
pessoas e não só porque “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos”, como
disse a raposa para o Pequeno Príncipe, mas sobretudo porque temos medo.
Medo de invadir o espaço do outro, medo de ser rejeitado em nossos
propósitos, medo de não agradar... e até medo de sofrer uma violência qualquer.
— Afinal de contas é no outro que mora a violência, não é?
É cada vez mais raro alguém andar a pé pelas ruas, mesmo às do
bairro. Dificilmente se caminha até a igreja ou a padaria. Em filas
inevitáveis, ou no ponto de ônibus, quase sempre se fala apenas com o celular,
vigiando, de rabo de olho, o sujeito onde mora a violência. Vigia-se, quem
sabe, para tentar fugir de um furto, um assalto e até de ter que conversar.
Acho que foi um pouco de tudo isso que me deixou perplexo e
paralisado quando a senhora puxou conversa na fila do pão quente. (E uso o
perplexo nesta frase, só porque é uma palavra linda, sonora e que quase nunca
encontro espaço para usar ou talvez não, talvez seja perplexidade mesmo).
— Você faria diferente? Então me conta, qual foi a última vez que
puxou conversa com um estranho?
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua
Balsa das 10 às 6tas-feiras]