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10 fevereiro 2020

1983 - O ANO DA MINHA DISPARADA



Estela Márcia Rondina Scandola

1983-84 foram anos de intensas mudanças nos rumos da minha vida... acho que eram os furdunços das lutas por democracia no Brasil que se juntavam nas minhas entranhas e eu, em crise permanente ia decidindo para onde caminhar.
No Serviço Social concursos nem pensar e os empregos só por indicação mesmo. Pelo menos era assim em Mato Grosso do Sul. Quando formava uma turma, as bacharéis continuavam nos seus empregos de outras profissões. Quando alguém conseguia um emprego na área era uma verdadeira festa. Eu não tinha ideia do que seria da minha vida.
Na coordenação da comissão de formatura a vida tinha voado em dezembro de 83. Além de baile (com direito a vestido e tudo), o casamento da Sola no dia seguinte, o retorno para o churrasco da turma e o Geraldo envolvido nisso tudo era bom mesmo! O moço bonito, olhos profundos, dançava guarânia  e polca como ninguém e me beijando sem parar me colocava acesa em todos os meus lados do viver.
Tudo me fez perder a entrevista de emprego na SEBEM que o tio Moa tinha agendado. E, para satisfação minha era a Profa. Iracy que ia me entrevistar. Enfim, fiquei maus na fita. O tio telefonou e perguntou como estava tudo. Chamou a atenção e disse se eu realmente queria o emprego. Reafirmei que sim. Era o máximo ter emprego logo depois de formada. Acho que era um diferencial de classe bem favorável a mim que não fui aluna brilhante. Tinha a indicação do tio vereador e era muito envolvida nas atividades da política de assistência social.
Remarquei pessoalmente a entrevista e a fiz de forma bem responsável. Tudo acertado. Eu trabalharia na gestão da Secretaria, salário razoável e eu ia ficar junto com as assistentes sociais de referência à época. A maioria já eram ligadas ao PMDB igual ao partido do meu tio. Eram consideradas bastante responsáveis junto aos serviços em Campo Grande.
Quando saí sentei no banco da praça da Cabeça de Boi e fiquei à espreita de aparecer alguma alegria, daquelas que aparecem quando algo bom acontece na vida. Era só um fio. Nada de avalanche. Havia um contentamento porque ia ter trabalho na área. Não sabia se ligava prás meninas prá falar ou se estava com vergonha. Cidoca, Ana, Joana, Vani... será que iam achar o que?
A falta de gritos de felicidade era também o lugar de trabalho – na gestão, planejamento. Quando o trem passou barulhento e em silêncio – era de carga – mirei nos vagões e lembrei das conversas de família que, quando o trem chega na estação, a gente sobe e segue o destino. Depois que ele vai, a oportunidade passou. Lembrei que, na verdade, ter um emprego na área, com ajuda do tio Moa iria ser uma notícia de alegramento na família. E eu poderia me sustentar com a profissão... seria um orgulho, uma passagem de fase. Até ali eu me sustentava trabalhando muito, mas não era na profissão.
Fui caminhando pela Barão e cheguei em um dos territórios dos meninos e meninas de rua. Ali era quase o lugar fixo deles. Peguei o papelão e sentamos em bando ali em frente onde seria a casa do estudante. Denis chegou: e aí, que tá pegando? Ele era uma lourice de amarelo claro nos cachos do cabelo que teimavam em aparecer mesmo ele cortando sempre com gilette. Olhos azuis, pele rosa e, assim como eu, sempre de jeans e camiseta larga.
Denis chegava sempre cedo de algum lugar que eu não sabia, passava o dia todo guardando carro, almoçava no GEMT. Não tinha parente na rua e geralmente não ficava em bando. Usava sempre um boné azul. Mesmo sendo, naquela época, a descida das Moreninhas e do Nova Lima em bando, a maioria não tinha mais informações dele. Vivia esquálido e só se abandava no momento da cola.
Conversei aqui e acolá, planejamos o passeio de sábado na lagoa do CEASA. Esqueci que tinha festejos de formatura... confundi tudo. Pensava, como ataque às ideias, no emprego. Deixo a rua? Que roupas vou poder vestir? Elas usavam tudo combinante... e eu vou fazer o que? E se eu não tiver tempo para a rua? Vou ficar só na rodoviária com as meninas? Aguento ir pelas madrugadas ao CEASA e durante o dia ir prá Secretaria?
Almocei em casa engolindo. Quando eu chegava da rua só lavava as mãos e, no máximo, o rosto. Nunca me sentia suja depois da rua.
À tarde, encontrei a   Dáugima nas Americanas (era um programa quase shopping) e fui logo falando do emprego certo, da rua, dos meninos... das frestras de alegria possíveis. O que farei em 84 que já vinha chegando? Minha colega de pastoral do menor concordava que a SEBEM era segura e a rua bem insegura e nem era emprego. Havia a importância e o status de estar no planejamento... fomos juntas pro Auxiliadora.
Ir. Neide me ouviu, olhou, acolheu e só dizia: veja o que é melhor... Lá pelas tantas me informou que havia a possibilidade de uma bolsa de um salário mínimo para o meu trabalho no período noturno. Havia uma lufada de alegria naquela proposta. Tinha alegria mas não tinha dinheiro. Tinha gentes, rua, violências, correria, brigas, sopão, noites sem dormir... e eu olhava na outra proposta e tinha papeis, secretárias, roupas ajeitadas e até perfume... cabelos arrumados...
E tinha um outro ponto: meu pai tinha sonhado que eu ia ser doutora e eu trabalhando em gabinete, talvez fosse mais próximo do que esperava ele de mim. E a secretária que eu iria ter para datilografar os projetos, os ofícios... (assistente social importante jamais datilografava seus documentos. Isso era não respeitar o valor da profissão, o seu status profissional). Não decidi nada e fui saindo de volta prá casa.
Na saída do Auxiliadora eu poderia ter ido pela Mato Grosso, mas fiz a curva e desci pela Maracaju. Encontrei uma turma num beco antes da Rui Barbosa. A cola rolava solta e riam muito. O tempo tinha fechado prá eles porque tinham chegado muito chapados no GEMT. Sem almoço e com a promessa de pão com mortadela a tarde aguardavam.
Cadê o Denis? O Marciano respondeu que tinha ido almoçar e não voltou. Que tava esquisito e que tinha ficado no GEMT. Tinha uma dor na barriga, que tinha ido pela manhã e não tinha voltado mais. Mas estava com cara de doente? Sei lá, era só esquisito. Nem veio prá roda.
Dei tchau e lá veio, vestido, sapato, emprego, discurso na formatura... churrasco, papai que não vinha, tio Bim vinha... enfim, formatura... com tensão e decisões. Ir a Itaporã, ser madrinha de casamento, datilografar trabalhos, receber os dinheiros, responder às propostas de trabalho... e ir atrás do Denis. Essa foi a prioridade.
Su e Sonia quase que me abraçaram de felicidade quando cheguei. Temos uma situação que é sua cara. E eu: minha? O Denis tá com problemas? Su olhou e disse: Denis menstruou. Só isso! E não quer conversar com ninguém.
Entrei feito furacão procurando a pessoa. Nem tive tempo de pensar no tamanho do desafio. Denis olhava pro chão sentado na cama. Não me olhou, não se mexeu... Agachei, estendi a mão e ele a segurou. Eu: como eu lhe chamo? Ele: Do jeito que você quiser. Ficamos quietos. Pisquei prá pessoa da porta e levantei o queixo. Entenderam e saíram...
Pessoa, eu menstruo. E, agora você vai menstruar sempre. Ele fez muxoxo com a boca. Sentei ao lado na cama. Ficamos de mãos dadas. Não saberia lembrar se foi muito tempo. -Deram modess prá você colocar? Fez que sim com a cabeça. – Se quiser podemos rir da cara do povo... rimos, rimos muito... nem sabia se estávamos rindo da mesma coisa. Eu era de nervoso mesmo. Não tinha aprendido como lidar com a realidade.
Com quem vamos conversar sobre isso? – Não sei. E onde vamos ficar assim, até acostumar com a ideia? Rimos muito e ele chorava ao mesmo tempo. E para onde vamos hoje? – prá minha casa. Aí soube que Denis  tinha família e, portanto, não tinha direito ao abrigo. Lá na sua casa a novidade vai ser conhecida? Não! Silêncios, gritos insanos me chamavam pro chão... a quietude me enlouquecia... e agora?
Você quer que eu vá junto? E o Denis: não. Então vou providenciar outros modess prá você... e ele: dá não... não vai dar prá chegar em casa com essas coisas. E eu: como faremos?
Fui atrás de conseguir carro, absorvente (não existia essa palavra... tudo era modess até surgir o sempre livre!). Menino menstruado e eu... sem conversar nada direito, sem tempo e eu sem emprego certo. E ainda tinha a formatura chegando e o Geraldo gostosão... Pessoa, vamos prá onde? E ele: prá minha vó lá na favela Dona Neta.  Lá veio o motorista, o carro e rumamos. Nunca tinha visto uma Kombi chegar tão rápido. Era prá se livrarem do problema ou era mesmo preocupação mesmo? Acho que era um misto.
A avó saiu do barraco abriu os braços e acolheu a Denise. Olhei prá avó, pisquei e disse que alguém voltaria no dia seguinte prá pegar a Denise. Denis olhou feio por baixo do boné: era bom vim você. Aiaiaiaiai e a formatura, o casamento da Sola, o churrasco da turma... e eu: vou tentar, mas acho que vai dar.
Cheguei em casa mais de 10 da noite. Comi um pouco de polenta, um pedaço de linguiça e me larguei no sofá. Volinha e Dale vieram perguntar como eu estava... e o trabalho? Falei que tinha duas propostas... uma com mais dinheiro e outra com mais ventos alegres... Volinha saiu quieta e Dale falou que depois eu falasse o que eu tinha decidido.
No dia seguinte amanheci na SEBEM e propus que eu fosse contratada como assistente social no GEMT. Não foi aceito e ainda me disseram: você é sobrinha de vereador, não fica bem um lugar assim. Temos um bom lugar prá você. Vamos começar na primeira semana de janeiro e você já vai estar aqui. Sem falta! Agora você cuida da formatura e depois das festas de fim de ano vem aqui.
Já tinha esquecido até do natal e ano novo. Muito difícil a realidade da família que queria recolocar meu pai de novo na convivência. Mas era difícil... nem na formatura não viria, embora desse a vaca para o churrasco.
Fui cuidar da formatura e ia todos os dias na casa da vó da Denise até que o Denis voltou prá rua.
Além da agenda imensa de coisas a fazer, das festas a curtir... ainda planejamos a viagem prá Machu Pichu... Vani deu a ideia e fizemos o grupo com Ana e Celina. Tudo caminhando. Não voltei prá falar que não ia prá SEBEM, até porque acho que nem pensei que eu estava desistindo. Essa falta de respeito com as assistentes sociais e com o meu tio marcou minha vida profissionalmente e correu o rastrilho da notícia. Eu esqueci e, sem ninguém prá me lembrar insistentemente, nunca mais compareci lá. Hoje sei que não se sai pela porta dos fundos sem necessidade.
Quando chegamos da viagem ao Peru, lá pelo final de janeiro, passei a ganhar um salário mínimo na forma de bolsa e aumentei a quantidade de trabalhos datilografados. Assim me sustentava e dobrava tudo o que podia prá ajudar financeiramente o movimento. Em 1984, ah... esse foi o das Diretas Já, da ANAS, do movimento de meninos e meninas de rua! E eu estava lá...
Fiquei sem pensar nisso até 2018 quando fui providenciar meu tempo de serviço no INSS... cadê os anos de contribuição entre 1981-1986?
Não foi o Denis, Ir. Neide, Marciano que me fizeram tomar essas decisões profissionais... Foi a necessidade que o meu trabalho tivesse fios de alegria e, mesmo que em meio à enxurrada de desgraceira, eu veja a luz de possibilidades... é também disso que se trata quando decidimos na profissão. Nem todo mundo podia decidir pelo menos dinheiro. Eu era uma privilegiada em poder fazer isso...
Não afrontei diretamente a cada um da família, mas é certo que, no conjunto, muitos se sentiram agredidos por eu não querer o mais reto, o mais certo prá vida de futuro garantido. Eles tinham razão em muitas coisas: eu dancei financeiramente e na seguridade individual, mas muitos se salvaram exatamente no rastro das lutas em que estive.  
É verdade que histórias não pagam as abóboras necessárias para matar todas as fomes, mas é também mais certo ainda, que é das histórias de gente que plantou tâmaras que as gerações vivem na expectativa do saboreio...


Estela Márcia Rondina Scandola
57 anos na inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

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