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Ernande Valentin do
Prado
Os soldados de plantão,
assim como os da guarda do batalhão, na hora do rancho, ou seja, de se
alimentar, formavam uma fila a parte. Plantão era a designação dos soldados
escalados para ficar de prontidão em determinados locais. Eram responsáveis por
resolver pendencias, manter a ordem e a limpeza da companhia, da oficina e de
outros ambientes internos as companhias.
Almoçar, sem ter que
entrar em formação com toda a companhia, era a única vantagem em estar de
plantão. Mas plantão, nunca foi rotina entre os soldados do PELOPES, que na
maioria das vezes eram escalados pelo sargenteante (sargento responsável por
fazer as escalas e cuidar da administração da companhia) para guarda do
quartel, armados com fuzil 762 com munição real.
Desta vez estava entre
soldados da segunda e terceira companhia, nenhum outro colega de pelotão. Como
na maioria dos dias, estava irritado com a situação, por estar fazendo algo que
não era de meu interesse, sendo subjugado pelas forças armadas do estado e até
da vida.
Desci primeiro, fiquei
em formação aguardando os outros soldados e o cabo, que era do PELOPES, mas
cabo não é colega, é o superior imediato (tão subalterno quanto qualquer
soldado, com a desvantagem de ser odiado por todos e a vantagem de não fazer
faxina – isso ouvi de um sargento). Esse em especial era abominado por muita
gente, pois se achava o Rambo e gostava de humilhar os sodados.
Outros plantões iam
chegando e entrando em formação na fila. De última hora, quando até mesmo o
cabo só esperava a ordem de avançar, chegou um último soldado, Aries, alto,
magro, com cara de malvado. Entrou em minha frente.
- Endoidou, eu cheguei
primeiro.
- Ele olhou com aquela
cara de cretino do mau, como quem diz, vai fazer o quê, tá sozinho hoje, seu
embusteiro do caralho.
Havia uma tensão
nervosa entre os soldados do Pelotão de Operações Especiais (PELOPES) e os
demais soldados do batalhão. Isso pela farda diferenciada, pelas insígnias no
ombro e no gorro, mas sobretudo pela postura dos soldados, que se achavam
realmente superiores (como se isso existisse, como se soldado pudesse ser
superior a algum outro milico). Somado a isso, certa indisposição comigo, por
não me confessar voluntário como todos os outros e expressar abertamente isso,
o que, algumas vezes rendia problemas até para quem estava por perto.
Empurrei Aires, sem
paciência, ele esbarrou no cabo, que estava de costas para nós.
O cabo, irritado com o
esbarrão, comandou:
- Plantão em fila,
sentido!
Aries se aproveitou da
intervenção do cabo e manteve-se posicionado em primeiro na frente da formação
dos soldados de plantão, embora tenha sido o último a chegar. O cabo, comandou:
- Soldados: sentido! Em
frente: marche!
Quando levantei a
perna, para dar o primeiro passo, imediatamente, sem pensar nas consequências e
nem tendo planejado, mas muito indignado, coloquei toda minha força na perna
direita e chutei. Sem esperar, Aires tropeçou e, para não cair, apoiou-se no
cabo, que irritado gritou:
- Aires, mocorongo, para o final da fila.
Ele passou por mim, com
aquela cara de mau (e cretino), mas sem expressar surpresa e ocupou seu lugar
no fim da fila, mas disse:
- Vai ter troco.
Duas semanas depois,
num domingo muito frio, a situação se inverteu. Aires estava numa guarda
montada majoritariamente com soldados do PELOPES. No meio da tarde, os soldados
que esperavam sua hora de ir para o posto de guarda, reuniam-se atrás do
alojamento (também conhecido como portão das almas). Todos se queixavam de dor
nos lábios, rachados pelo frio. Ninguém tinha manteiga de cacau, usada para
aliviar as dores, ou melhor, apenas Aires tinha, mas com a costumeira cara de
cretino, disse que não emprestaria para ninguém.
Ugo, talvez o mais
forte e destemido soldado do PELOPES, um pelotão cheio de soldado que hoje
seriam descritos como marrentos, ainda de bom humor disse:
- Se a gente quiser te
toma essa manteiga de cacau, usa e enfia o resto no seu cu e você não vai poder
fazer nada.
Ugo não ri, nem pisca,
apesar de sempre estar com uma cara bem humorada. Entre outros talentos, ele
era o imitador oficial, sempre parodiando os superiores. Ninguém imitava melhor
que ele o capitão da Primeira Companhia, o coronel, nem os sargentos e cabos.
Alinda consigo lembrar de Ugo, com a mão estendida, os dedos muito unidos,
exagerando os movimentos do Sargento Mendonça, dizendo:
- Todo mundo, pente
fino aqui, rápido, pente fino. Pente fino era como se referia a uma limpeza de
folhas e detritos pelo chão, feita por vários soldados ao mesmo tempo. O
Sargento Mendonça era famoso por comandar, nas horas mais estranhas, um pente
fino. Não podia ver ninguém sem fazer nada, já ia falando:
- Pente fino, pente
fino. E Ugo imitava a voz, os trejeitos, tudo, igualzinho.
- Pente fino, pente
fino.
Alves, outro soldado do
PELOPES, baixo, mas muito forte e com músculos até no pescoço, chegou por traz
de Aires e disse:
- Hoje é você que tá
sozinho aqui, notou?
- Dá essa manteiga aí,
Aires... eu disse.
- Paga dez, que te dou,
diz o soldado, que não perdeu a cara de mau, apesar da desvantagem.
- Não vai pagar nada,
disse Alves.
Ugo ficou em pé, como
se pressentido alguma reação.
- Pago, disse eu, acho
até melhor, assim não fico te devendo favor para filho-da-puta.
Jogo-me no chão e pago
as 10 flexões. Levanto-me e estendo a mão para pegar a manteiga. A cara de mau
some da face do soldado, que transforma-se em uma criança de quatro anos e
começou a repetir:
- Fiz o Prado pagar 10,
fiz o Prado pagar 10, fiz o Prado pagar 10. E sai correndo sem entregar a
manteiga.
- Eu paguei por essa
manteiga, agora me dá.
- Fiz o Prado pagar 10,
repete mais uma vez Aires e diz: não vou te dar nada.
- Não vai dar mesmo, eu
paguei por ela, e num golpe tirei o gorro de sua cabeça.
Ele rapidamente olhou
assustado para ver se o cabo ou o sargento da guarda não o estava vendo sem
cobertura, falta idiota que podia resultar em punição.
- Dá meu gorro! Desespera-se
ele.
- Dá minha manteiga.
Novamente com cara de
mau, de assassino degenerado, ele estende o recipiente com a manteiga. Pegui,
passei nos lábios e entreguei para Ugo, que usou e passou ao Alves e assim
todos os soldados da guarda usaram a manteiga de cacau.
- Agora dá meu gorro,
falou baixo, mas claramente exaltando e com a mão estendida.
- Pode pegar, disse e,
quando ele estende a mão para pegar, soltei o boné.
Uma vez mais ele me
olha com cara de “vai ter troco, ou como quem diz: você não sabe com quem tá
mexendo. Abaixou-se para pegar a peça e quando estendeu a mão, antes de
alcançar, chutei o gorro para bem longe, do outro lado da parede, onde o
sargento poderia lhe ver sem cobertura.
De verdade, meu
instinto era chutar-lhe a cara, arrebentar-lhe os dentes, quebrar o nariz de
assassino e desfigurar seu rosto de cretino malvado, ver o sangue escorrer pelo
chão de cimento, pelas paredes verdes do alojamento da guarda, até espirar nos
colegas de pelotão, sentados no banco de nosso lado. Chutei o gorro, talvez não
porque a ofensa do soldado fosse tão grande, nem por me fazer de mais homem que
ele, coisa que não era, só estava melhor acompanhado. Hoje sinto que minha
reação exagerada era pelo ódio que sentia pelo exército, por estar ali contra
minha vontade, tirando guarda em um domingo gelado. Quis descontar naquela
pobre alma, mas de fato, mesmo com desejos violentos, nunca conseguir machucar
ninguém, nem em sonhos conseguia machucar ninguém, ao menos fisicamente.
Aires olhou o gorro que
fora tirado de suas mãos pelo pontapé, talvez ainda lembrando o chute que
levara na bunda durante o plantão, reagiu da única maneira possível, pois não
poderia perder a fama de mau. Jogou-se sobre mim com violência, tentando pegar
meu pescoço. Os soldados no banco se levantam agitados, uma briga na guarda não
terminaria bem para ninguém. Era pequeno, magro, fraco, um dos três menores e
fisicamente insignificante soldado do PELOPES. Dou um passo para trás,
simplesmente. Alves, com agilidade comum e força descomunal, jogou-se sobre
Aires e o segurou no ar, antes que me alcançasse. Ugo, com altivez, autoridade
natural, não apenas por seu tamanho, mas pela legitimidade e liderança que
tinha entre os soldados, não apenas do pelotão, mas de toda companhia, deu um
passo na direção de Alves e Aires e disse, baixo para não chamar atenção dos
superiores:
- Segura ele, Alves.
Com cara de deboche,
mas desta vez com voz firme que não permitia dúvidas quanto sua autoridade,
apontou o enorme dedo indicador na cara de Aires e disse:
- Você tá errado. Fica
quieto, se o sargento vier aqui vamos jogar a culpe em você.
- Ele chutou meu gorro.
Ainda exaltou-se, porém
estava preso pelos braços por Alves, de uma forma quase impossível de se
livrar.
- Você fez o Prado
pagar 10 pra você e não entregou a manteiga. No lugar dele tinha chutado sua
cara e não o gorro.
Aires não respondeu.
Alves apertou os braços dele ainda mais, provocando lhe dor propositalmente. Os
outros soldados, alvoroçados, mas em silencio, assistiam calados, sem saber o
que fazer, inclusive eu, neste momento.
- Deixa eu quebrar a
cara dele, Ugo?
Disse Alves.
- Assim ele aprende a
ser homem.
- Hoje não, se eu ficar
preso mais uma vez minha namorada vai me deixar. Pode soltar.
Disse Ugo.
- Mas olhe bem...
Ainda com o dedo na cara
de Aires.
- Essa história morre
aqui ou vamos lembrar o que você fez no plantão. Fica na sua o resto da guarda.
Vá sentar longe da gente se não eu mesmo vou quebrar sua cara.
- Deixa eu dar ao menos
um soco na orelha dele, Ugo?
Ainda insistiu Alves.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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