Sábado agora foi 7 de setembro. Dormia ainda quando minha mãe ligou do Peru. Ela, de 81 anos, sempre alegre e animada. Ela disse: liguei para você porque um menino filho de chineses mas nascido aqui no Peru faz anos hoje. Eu, meio dormido, nem sabia se era dia ou era noite. Que chinezinho?, eu disse. Seu pai, ora, disse ela. Acoooorda. Acordei um pouco.
Dai fui lembrando do meu pai. Que eu quase não conheci. Conheci de alguns encontros ao longo da vida. Encontros mediados pelo silêncio, pela culpa, pela pressa ou pela ausência na presença. O paradoxo é que o tempo em que mais conheci ele, foi o tempo em que passou em coma, na CTI do Hospital da Seguridade Social de Tacna, cidade onde nasci e onde ele morou mais de 50 anos.
Meu pai foi médico. Um médico amado. Mas isso eu não sabia ou não queria saber. Só via a pessoa distante que não conversava, que cozinhava comida gostosa e ficava olhando como nós, os filhos pequenos e estranhos, comíamos com alegria. E que, quando passei no vestibular de medicina, inundou a casa de livros, enviados pelo correio, em caixas pesadas... já que quase nunca moramos juntos e mais de 1500 km nos separavam.
O meu pai era o cara que viajava e passeava pelo mundo e que não mandava mensalidade. Ou que mandava magros cheques que eu, com a raiva colossal de um garoto de 13 anos, comecei a devolver pelo correio. A cada mês, até que ele deixou de enviar.
A cidade de Lima é úmida e fria. Propícia para a tristeza e a nostalgia. A névoa cobre a cidade; e casas e prédios se tingem do cinza da poeira. Assim cresci. De alguma forma a garoa, o frio e os curtos verões foram esculpindo minhas sensibilidades e necedades.
Tacna - a cidade no deserto de Atacama onde nascemos eu e os meus irmãos e onde meu pai morou até sua morte em 2011 - era o oposto. Um oásis. Quem já conheceu oásis de verdade sabe da secura, da pouca vegetação e do calor de deserto mesmo com algo de brisa. Mas as férias eram viajar de ônibus por 26 horas e chegar ao deserto seco e sobrenatural. E entrar nas rotinas tão diferentes do meu pai e sua companheira, dona Teresa.
Cheios de rituais. Eu observava tudo. O comer, o pão, as comidas chilenas (ela é chilena), o falar mal dos índios - que eram, ao mesmo tempo, seus clientes no consultório e no hospital - e o sonhar em voz alta com as viagens anuais ou bi-anuais para Las Vegas. Em 2005 visitei ele de forma inesperada (algo saiu do fundo de mim e peguei o ônibus pouco antes de ter que voltar ao Brasil). Os mesmos rituais. A ternura deles que quase ninguém entendia (já que o lado mesquinho, conservador e até racista ou fascista, aparecia mais). Caminhar vagarosamente pela cidade fria e de luzes feita. Ir aos Bingos e apostar um dinheirinho de nada. Só para lembrar Las Vegas.
Assim foi que passei a vida na distância e quase nenhuma proximidade com meu pai. Até a CTI. Isso mudou tanta coisa.
Fui a Lima correndo. Descobriram um hipernefroma na minha mãe que, curioso, era quem nos animava. Tinham que operar rapidíssimo. Sorte nossa. Encapsulado. Milagre. A descoberta foi por acaso em promoção de ultra-som. Coisas da informalidade do Peru. Rimos muito. Mesmo assim choramos e nos preocupamos muito.
Segundo dia do Pós-operatório. Eu comentando com meu irmão Carlos - que raramente diminui o ritmo mas nesse dia sentou comigo no sofá e conversamos como irmãos queridos que sempre seremos - que não sabia se ia ver meu pai. Já está velho, eu disse. Vou ver. A mãe está muito frágil.
Nesse instante ligam ao celular do meu irmão. Tacna? O pai na CTI. Parada cárdio-respiratória.... merda dupla. Karma. Destino. Magia. Acaso. Sei lá.
Voamos os dois para Tacna. Despedida da mãe que nos enviou meio abençoados.
CTI novinha. Hospital novo. Não aquele onde meu pai trabalhou mais de 30 anos. O Chefe da CTI me recebe afetuoso. O senhor é aquele que é médico e pesquisa no Brasil? disse simpático e cordial. Eu meio sem jeito disse, sou. E ele explica tudo... bobagem médica.
Impregnação por digitálicos, cardiotoxicidade, uso inadequado da droga... etcétera. O amigo cardiologista tinha receitado pílulas mínimas para a fraqueza - que era tristeza e, depois soubemos, volta do linfoma que ele mal tratou anos atrás. Meu pai tinha tomado mais da conta. Usual em idosos. Usual em médicos. Usual em solitários. Usual em distraídos.
Mas o usual dói igual. E o silêncio de ver ele desacordado intubado monitorado e magrinho e bem velho não era para sair imune ou indiferente. Carlos inventou de ir à academia e me deixou o dia todo sentado do lado de fora, com a mulher dele, nada amigável, cheia de preconceitos e lições sobre sucesso e bem viver.... enfim.
Nessa espera conheci meu pai. Foram 6 dias a fio. De 8:30 da manhã a 20:30 da noite.
Da massa de seres que povoam o hospital foram surgindo pessoas de todo tipo puxando conversa. Contando histórias desse estranho, desse silencioso, desse ausente. Era faxineira, era enfermeira, era amigo do Lions Club, era ex-paciente que perguntava, era médico assim e assado. Um deles, filho de índios, cardiologista e rico, ficou todo interessado no meu pai. Ele me atendeu de criança, me disse. Mas aproveitou para me pedir ajuda na compra de equipamentos caros no Brasil - negócios. A alma do povo aymará é o comércio.
Assim, nessa semana, me senti abençoado por alguém que estava partindo. Porque do jeito que a gente sente (como médico, como filho, como ser espiritualizado) eu sabia que ele não se livraria disso. Problema social, eu disse ao Carlos. Eles são muito idosos e isolados, teimosos, cheios de rituais. A esposa não vai deixar que essa rotina mude.
Dito e feito. Ele voltou do coma no sábado - uma hora antes do nosso voo de volta a Lima. Conversamos quase nada. Abraçamos. Tiramos fotos. Lugares comuns. Valiosos. Eu já conhecia outro pai. Os outros me contaram. Ele nunca diria. Nem saberia como dizer. Só viveu. Contraditório. Feliz ao jeito dele. Viajante. Dançando mambo enquanto cozinhava. Navegando até as madrugadas na internet. Apostando dinheiro nos Bingos. Lembrando o grande médico que eu poderia ser e não queria ser.... meu pai foi-se um mês depois, depois de 4 dias de alta. E se foi no dia do aniversário do Carlos, meu irmão viajante, aquele que persegue a vivência intensa. Aquele que pensa em viver tudo o que a vida tem a oferecer - mesmo que isso tenha alto custo de viver e sofrer.
7 de setembro. Minha mãe foi me acordando. Lembrando do ex-marido morto que para ela sempre será essa criança filha de chineses. Um chinezinho peruano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?