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05 setembro 2016

de morrer na rede.... com Sherezade [Julio Alberto Wong Un]


Getsemani.  Cartagena de Indiias. 



para Wellington Araújo 
que me contou esta história em 2013


Que seres estranhos somos nós que andamos falando das Mil e Uma Noites na manhã de quinta-feira em Benfica, a caminho da Fiocruz? Encontro casual no ônibus. Alegria. Nostalgia rememorada instantaneamente.

De alguma maneira chegamos a isso. Falando dos livros talvez. Do tempo curto para tanto mundo de livro. Das distrações. Quanto mais se trabalha menos tempo para a leitura, você disse.

Claro. É verdade.

Falamos da promoção da Livraria Cultura que perdi (a coleção das Mil e Uma Noites na Melhor Edição a um preço menor da metade do normal, etc.).

Eu: mesmo assim, sem tempo, tento ler a OPC do Mario Quintana (obra poética completa). Quintana para mim é Porto Alegre. E Porto é o lugar onde eu quero morar. Onde amigos queridos florescem. Onde cada lugar tem significado profundo para mim. Onde está a alma que me faz bonito. E aprendi a amar ser bonito. Gosto do que floresce desde mim quando estou bonito, eu disse. Isto foi semanas antes de eu sangrar. Nem imaginava. Humano demais eu.

E ai você, despreocupado, conta. E conta. E eu não tive mais opção do que seguir contando. Para que a vida não acabe. Ou não seja acabada. Como Sherezade era ameaçada. No fundo, aquele que diz intensamente renova essa postura: dizer para não morrer.

Mas ele - o Wellington e não o califa - disse: meu pai andou bem adoentado. Veio falecer. Dai eu fui ver ele meses antes da morte. Eu levei o livro um dessa edição que você não conseguiu comprar. Capa dura, folhas nobres, texto impecável, mágico, que prende e enfeitiça.

Faz sentido, eu pensei. Mil e Uma Noites e feitiço de sempre quero mais.

Dai meu pai andava fraquinho demais, pequenino, ele que foi enorme e forte como um touro. No interior do Piaui convenci ele a deitar na rede e ler para ele as histórias das mil e uma noites do meu livro. Uma a uma. Vagaroso. Repetindo para que ele escute bem. Para que fique.

Repetiçao. Mantra. Oração para repetição de carícia. Pensei nisso no instante.

Ele gostou. Ficavam horas na leitura.

Mas tudo avança - o tempo é lento para os que amam mas é surdo aos pedidos de imobilidade. No fim há o fim.

Mas essas tardes, você falou sem palavras, foram algo que me aproximou demais dele nessas última semanas da vida dele.

E de alguma forma, eu penso, a história continua, a próxima leitura se aproxima.

E eu ainda sinto a alma que me embeleza. Mesmo que o tempo não tenha perdoado minhas paralisias.

16 março 2015

Aniversários (Julio A Wong Un)




para muitos e
especialmente para os que me cuidaram
no hospital em casa e em vários consultórios
e ainda o fazem
e ainda sempre o farão



1.

Disseram-me recentemente que a pessoa pode nascer várias vezes sem completamente ter morrido.

Sou, assim, depois de ter aberto a cabeça, provavelmente, um renascido. Sem perfeição nem santidão, simples. Cheio de medos, confusões e esperanças. Sem ter morrido completamente.

Seja como seja eu não aceito a morte completa.

A vida fica. Plena. Principalmente na forma de um fazer-se poema do mundo, na lembrança e nos gestos dos outros queridos e amados. Seja no gesto invisível de acariciar o rosto daquela que se pensará para sempre. Seja no passar os dedos pelo cabelo liso e novo das três filhas - cada uma com seu tempo, seu caminho, seus desafios e sofreres, e com suas buscas inominadas por eternidades feitas de instantes. Plenitude de vida, mesmo na mistura inevitável com doença, finitude, morte, e  renascimentos.

É por isso que amar intensamente e  sentir que  esse "é" o amor da vida inteira (ou de várias vidas / embora a verdade absoluta da afirmação seja possível objeto de discussões sem final) ou se enxergar nos gestos e costumes nascentes (sempre novos) das filhas, é a forma prístina da imortalidade.

Não aquela eternidade terrível da solidão e da monotonia do "pra sempre" que "sempre acaba". Essa não existe. Essa é armadilha mental e de existência. Essa é a maldição dos deuses "eternos" e sem paixão.

Porque, no fundo, a sabedoria nos indica o instante como o verdadeiro perdurável. Fazer do amor e do abraço algo eterno, sem tempo, acima do chão e do mundo e dos relógios (mesmo que sejam de celular). E sentar-se ao lado do caminho, discreto, para assistir o espetáculo das jovens filhas desabrochar em vida sempre plena porque maravilhada e instantânea.

Ser transcendente no beijo longo que nunca sacia, no despertar suave juntos, com luz ténue e calor de pessoa adormecida em sorriso leve e satisfeito.

Paradoxo. Os instantes verdadeiros, que nos despertam e nos transformam, são verdadeiramente, "para sempres".

Outro paradoxo: viver e procurar os instantes eternos não nos exime do cotidiano, do planejar, do projetar-se. Eu tenho mais e mais esperanças, quero construir e percorrer trilhas, viajar, inventar, criar na conversa leve e bem humorada, no sabor inesperado de um doce, do desafio de uma indiada, de uma fruta espinhada como a tuna, do cacto como forma da paciência em tempos de secura. Quero tudo e mais. Renasci.

E foi essa imortalidade do instante que me fez ficar e voltar.

2.
Renascido, farei assim dois aniversários a cada ano. O primeiro amanhã a cada dia 17 de março. E o segundo dia 25 que é mais celebração da força da minha mãe do que meu próprio.

Dois aniversários, que não somam anos, mas que somam instantes de eternidade. E o lugar central da minha alma é hoje o lugar da gratidão. Pelos que me fizeram viver, ter esperança. Renascer perplexo e feliz, sem diminuir essa intensidade de vida louca, incompleta, aberta ao novo,  aos erros e às descobertas felizes e alquímicas.

E a elas e eles meu presente, muito  meditado, muito claro hoje: a maior forma da gratidão será seguir meu próprio caminho. Mesmo que pareça divergente do costumeiro e mesmo que gere algumas dores de ruptura e reorganização.

Aquele caminho que o coração indica com força renovada, aquele  que se chama cumplicidade de indiada e universo ténue e feito de infinitos "para sempres" fugazes.

Fugaz, por tanto, eterno.

A mim desejo novos renascimentos - que não sejam tão assustadores.

Aos que amo, agradeço e agradecerei sempre.

Me descobro no instante absoluto do pequeno poema, da foto, do cheiro de mulher, da visão do palácio de Maitreya dentro de mim.





[Julio Alberto Wong Un escreve na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]




12 fevereiro 2015

Do calar-se (julio alberto wong un)


No rumor imperceptível 
Da onda do sol da nuvem evanescente 
No acalanto do dia lento e bondoso 

Ao dizer que se faz me recomeço 
Ao respiro que toca escrevo percursos
Pela pele amada pela presença miuda

Sim. Sem algo menos a ser dito deixamos o mundo soar seu estrondo. 

Sim sim sim. 

Assim. Por baixo das estrelas me costuro em mim dentro do sabor dela que é eternidade dita em pele. Sempre sim. 

Fim de temporal. Fim de ventania. Fim do pouco que era para o todos que sou já sempre. 

A contemplação do mundo desde esse coração de proximidade se retorna se alheia se diz trapézio e corda solta

Porque voar é contigo bem-amada
Porque dizer é coisa de outros
O que é sacro se faz estalinho de lábios 
Desconto de dias e tempos nossos 
Recriação do primeiro dia do mundo
Acontecimentos deixados na areia
Aproximações descuidadas em desejo
Primeiros tempos primeiras histórias 
Desnudos temporais de vento e frio
Onde teu cheiro resumia o universo
E
Esse cabelo pensava sem palavra criava sem matéria 
Acordava sem ser sequer mas sendo lua e estrela juntas
E um pastel gigante de siri. 

O silêncio no tempo sem tempo do abraço 
O estrondo calado do mar no tempo dos bons ventos

Disse tanto sem dizer nada
Fosse tempo de flutuar nos tempos

Um expresso um doce de Portugal uma estrada completa no meio da areia 

E observar sem pensamento o raio que faz carinho na pele 

Até que a morte na sua risada absoluta
Renove o olhar profundo que nunca cessa. 

[Julio Alberto Wong Un escreve na Rua Balsa das 10 quando pode]. 





 

15 dezembro 2014

Moisés, Luis e surpreender-se assim assim dos acasos [Julio Alberto Wong Un

Para Renata e para Amelia. Para Eymard e para Ernande. Para Darlle e para Luciana. Para Marcia e para Vera Joana. Para Irai, Ingrid, Larissa e todos. Para Osvaldo e o Apanhador dos Sonhos. Para Aldenildo e os palhaços. Para os dias bons em João Pessoa 





1. O mar abre o peito coral. E Moisés acende as águas com seu báculo e destina um final de tempo com a flauta de cana. 

Eu dizia que acreditava em fortes verdades:

Que disco voador não pousa duas vezes no mesmo ombro de passarinho.
Estrada nova nunca leva a três lugares simultâneos, e que
O beijo da moça iria durar o tempo dele e não dela. Mas ela... (ah, a moça)

Mas o desejo o transforma (ah, o beijo) em tempo suspenso.
O infinito está em mim, as cascas das árvores viram livros e papéis inesperados
Dizer que uma porta ou uma mesa nos espera é coisa boba
Abrir o olho na distração dos sotaques é pecado perdoado ao perdido, ao renascido, ao pequeno.
Sim, perco o destino dos velhos ônibus cansados; sim
Farei de mim aquele que percorre e abre as peles. Farei de mim um pequeno verme impertinente. 

E
Assim
Ou assado em dia de calor com pele oculta e vermelha 
Serei o escondido, aquele que se lança ao espetáculo, aquele surpreso com os presentes invisíveis
Que já estavam lá, esperando ser e não ser, destinar e endereçar, cobrir as luas de estantes
Acorrentar o redondo da lua no sopro do mar quase africano.

Será que ao transpor lugares misturados de pizza massas mar e dois garotos sem idade
Que assomam a cabeça de índio de marés dos Andes, rios Esmeralda impossíveis, azuis d'Angola,
Eu serei o que ele era? Aquilo tocando duas estrelas de mar que saíram de Lima para se encontrar 20 anos depois?

Sei não. Sei sei. 

Me dizer que somos aquilo que sonhamos é óbvio. Na troca equilibrista das risadas,
Na lembrança imediata do tempo em que fomos músicos, na escuta festiva do dizer dos amores,
Nas trocas novas que nunca serão perdidas - uma mão que desliza tempo e amanhecer
Para que não passe, para que seja prece, para que vivamos sempre no verde calmo deste mar

Os estares são todos um.  Somos esos chicos de ojos grandes que tocaban sus instrumentos
Practicaban sus lunes y sus viernes y ensayaban a si mismos como si fuera siempre el tiempo de la canción. 

Y con eso venían los caminos e sus destinos mutantes. Y con eso nos perseguían ciertos amores centinelas, descubrimientos de nuevos sonidos, formas furtivas de besarse.

Encontrei o Moisés como um descuido meu. Mas ele estava lá. E as meninas o mostraram. Com seu sotaque tão distinto é tão próximo do meu. Com seu compartilhar discreto. 

.......

O Moisés ficou assim, pensativo, quando fui embora, nas nostalgias crianças. Foi destinado a mim um sorriso de portal de tempo. E um dizer de futuro.
Uma promessa um cartão e saber-se quase destinado a encontrar-se. 

Encontrar-se. Como fazemos sempre que o por acaso nos empurra à esquerda ou à direita. A ficar embevecido ou a mexer o mindinho e tocar de leve outra mão. Destino outro, escolha banal, reinvenção de mundos.

O menino da cidade imperial e dos campos de São João de Lurigancho riu e pensou e trouxe o tempo como pião ou escada a terceiros andares.  Y yo me fui quedando en mis propios recuerdos, mareado de tiendas, comensales, y seres raros que hablan el portugués. 

El día siguió con sus calles, sus soles, sus brisas de final de continente, de casi comienzo del África. Los tres queridos que en ese día éramos descubridores, convertidos e entregados, volvimos a las veredas esperadas, pero yo pensaba quietamente, como un poeta abriendo el "Sonetos de Shakespeare" por vez primera: qué será lo que tiene el mundo?

"Sopro e cheiro de mar", respondemos juntos. Sal na pele e voz amante ao ouvido. 

A promessa, sei eu, é o que ficou. Deep in the heart. Forever two young compadres. 

Hermano Moisés. Tu crees en dios ?. me dirías. Yo la verdad no mucho, retrucaría veloz. Pero a cada cierto tiempo el compadre Taita Dios  me hace ese tipo de chistes. Que se le hace? Habrá que reírse con él nomás. 


2. O mar abre o peito laranja/camarão. E o Luis me abraça Latino e reencontrado

Digo que reencontrei o Luis porque acho que eu o sonhei antes. Trinta anos antes. 1984. Ou talvez ele me ajudou a subir em algum ônibus de fronteira nos anos 80 antes de virmos os dois por separado ao continente brasileiro - cego / surdo / e mudo para tudo aquilo que o circunda na América Latina. E também nos encontramos nos comeres de camarão que foi João Pessoa. 

Eu vim e gostei daqui, ele nos contava, com seus mitos de hombre del Sur del Sur Sur, porque eso es el final sur de Chile, con sus bosques prehistóricos de árboles gigantes, de calladas madrugadas hasta que los pájaros invaden la humedad austral de Chile. Eu morreria aqui, disse ele. Eu moraria aqui, dissemos os dois.

Yo le dije, en perfecto portuñol: usted me diría Luis donde nació Neruda? Porque no me acuerdo. Donde habrá nacido me dijo. En el sur. Valparaíso? Más al sur. No me acuerdo ni quien es ese Neruda. Poeta no? Salí muy joven y poco he regresado. Todo en Chile es sur.

Oh tiempo escrito en Temuco, donde el fin del continente se afina y se retrae
Oh cuerpo perfecto de musgo y madera que se pudre para nacer de ella la vida por lado todo.
Oh amada de madera. Tus ojos son araucarias nodosas que transform en besos largos.
La estrella primera del frío es tu distancia, cuando no estas conmigo
Oh mujer de polos y cercanías, desnuda me apareces como el cuerpo que me inventa
Como el final de los valles que me llama. Como la risa de los pájaros cuando la lluvia es buena.

Assim eu fui brincando de Neruda e ria sozinho, no meio dos camarões e das cebolas,  tudo a ver com o glutão de Temuco. Mas era hora das partidas. E eu já andava com o peito esburacado de ausências iminentes, de despertares azuis quando queria as cores do cheiro e os aromas dos barros da fronteira. E eu disse tchau.  Tchau seu Luis do Sul do Chile. 

Yo lo busco de nuevo Don Luis que fue gerente y ahora no puede ir así tan fácil a la propia tierra, al final del tiempo que son los bosques de araucarias. 

Os pulos quânticos são corriqueiros. A surpresa pula quântica e balsâmica.

Digo que termino porque apenas começo. I say love songs in the sunset, pedra de responsa.



Nota: explicação de poema: explicação estraga tudo, em especial poema. mas só dizer que isto aqui nasceu de 2 encontros com um peruano e um chileno em restaurantes de João Pessoa. Em Dezembro de 2014.







[Julio Alberto Wong Un escreve na Balsa das 10 às segundas]











13 outubro 2014

De 2 graus de olhar [Julio Alberto Wong Un]


para amiga Márcia Azevedo
para a mestre e amiga Janaína de Oliveira Pinto.



1.

Nas últimas semanas a vida tomou um rumo algo diverso.

Minto. Vamos re-escrever. Nas últimas semanas minha mente tomou um rumo diverso. Imperceptível para outros, fundamental para mim: o horizonte ficou mais longe, mais amplo... mais meu. Uma mudança de direção de poucos graus que penso irá se refletir positivamente em novas paisagens espirituais e estéticas nestes tempos de me recompor.

Vai parecer livro de auto-ajuda mas passei de pensar nas minhas limitações como fronteiras finais que me modelam e definem a experimentar elas como desafios e mestres que irão me ensinar por longo tempo. Amigas com as que estou aprendendo a dialogar. Meninas brincalhonas que dizem sem dizer, rindo do nosso esforço por entender.

Limitações são pacientes e teimosas. Sabem que vieram com alguma mensagem oculta. Que o eleito terá que decifrar ou morrer.

Porque se morre, acima de tudo, em vida. Quando perdemos a utopia do sorriso, do fazer, do criar, do beijo, da transa inesquecível que nunca se repetirá a mesma, exata. Se morre quando tudo se repete, veloz e impiedoso, dia trás dia. A metáfora do morto vivo se aplica naquele que abre mão da chama, do fogo amoroso da criação do universo. Fogo que a humanidade cuida desde que o louco do Prometeu o roubou dos deuses, frios e vingativos.

Como os livros de auto-ajuda insistem: é muito mais o nosso ser/olhar do que o mundo que nos condiciona. E é.

Por isso, por desencanto se morre vivo. Amargurados, mediocres, egoístas, avarentos. Mortos sem brilho poético no olhar.

Porém há os mortos que não morrem. E eles sempre nos acalantam. Todos sabemos.

Tem tardes em que os meus mortos amados me ninam. Eles decifraram o dizer calado das limitações, das sequelas, do contornar e não poder atravessar pelo meio, direto, atalho. Um deles dizia, desde a cadeira de rodas: o caminho mais longo é o mais gostoso.

São memória, acalanto, consolo, ironia e dureza no momento certo. Somos feitos deles e, ao mesmo tempo, os fazemos novos e grandes, os mortos mais belos do mundo, como escreveu o Gabo.

2.
E tem, finalmente, os vivos-vivos, que procuram(os) o brilho, o sorriso no cinza das horas, o estalo do fogo no meio do mar. E esses somos os que fomos também escolhidos pelas limitações e pelos desafios. As dores e incertezas que, ao cruzar os dedos, transformam-se em piscadela, paradinha para renovar fôlego e continuar a brincadeira, a busca constante pela leveza. Porque do olhar/ser-no-mundo é que tudo é criado. E da postura desde onde vemos/vivemos é que se define tal ou qual figura.

Os vivos-vivos, mesmo doentes, mesmo sofredores, mesmo frágeis, mesmo sem poder planejar a médio ou longo prazo... vivem(os) a experiência da força amorosa que surge de toda a biografia em conjunto. Uma história de bem refletida em gestos, situações, olhares, formas da abóbada celeste que se expressam em carinhos práticos, saídas, pulos quânticos, encontros com o improvável.

Dai saímos distintos, mais próximos do centro do centro. Somos objeto da graça.









[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]

06 outubro 2014

Gratidão prece sacrifício e luas [Julio Alberto Wong Un]





Ensolarado o tempo
Campos dentro de si mesmos
Formas suaves do vento. Carícias pulsam. 
Tecidos, escadas, bichinhos de pelúcia vigilantes
Lista de listas. Sangue de sangue. 
Desconheço o verniz do tempo. Ou melhor, 
Descarto-o
Feito luz como se fosse um caramujo apaixonado. 
O pulsar do poema incrustado nas unhas
A carência das certezas deslocada de tudo 
Digo a ninguém 
Espalho espelhos e rochedos pífios
Calço com novas mãos velhos sapatos
A areia de distantes praias nos veste os dedos
Em mim sou outro. Em mim se faz oco. 
Nuvens mais poderosas que o sol.
Hálito mais rude que os pássaros de rapina que cuidam da minha morte. 
Onde descobrir a certeza? 
Qual o tempo em que renasço?
Névoa diz-se tristeza. Que imagem idiota da cultura da praia. 
Aconchegado recolhido silente
Espero. 

29 setembro 2014

O que dizer? A propósito de umas aulas por vir [Julio A. Wong Un]

Criciuma - em espaço/tempo amado

escrito no celular
no aeroporto

escrito para o amigo Eymard Vasconcelos

escrito também para Ivia e Lenita, cúmplices, parceiras.

agradeço muito a Ernande, Amélia, Vera Joana, Janaína e Renata.

1.

O porvir é ignoto. Sabemos pouco dele embora confiemos. Realizamos aquele parêntese ou suspensão temporária da incerteza e nos comprometemos a acreditar no jogo, na peça, na forma com que a realidade é mostrada a nós, pessoas de fé inevitável.Vivemos.

Nas próximas semanas terei uma alegria acalentada: voltar a ministrar aulas. Voltar a pôr em marcha o pensamento. O meu, que creio controlar ainda um pouco. E, de forma esperançada, o de alguns estudantes, neste caso de mestrado. Será temporário, teste, vontade de ser mais. De ir além de certas prisões benignas que o próprio corpo e suas mazelas criaram.

Alegria que testará as concordâncias entre o corpo e o espírito - o meu que tropeça, otimista em geral; e o meu que voa, louco em geral.

Movimentar por fora o que já se movimenta tanto ao longo destes meses. A harmonia sonhada entre corpo e mente. A dualidade provavelmente inexistente.

Eu, que ainda atravesso mares em barcaça frágil e rebelde, declaro com altura e som: viver pede uma energia extraordinária. Pensar, rir, encontrar o fio de criação alegre que todo pensamento perdurável demanda, é tarefa extraordinária. A forma como nosso cérebro se harmoniza silencioso e invisível com força, movimento, equilibro, sensibilidade, consciência do espaço, do peso, da velocidade, da força exata para que - inocentes - executemos o simples, é verdadeiro milagre.

Ao distanciarmo-nos do simples por alguma razão - seja lesão do corpo ou de outro tipo - acordamos à consciência da extraordinária complexidade de todo o viver. Desde o roçar dos corpos, a carícia, o abraço, até o idealizar novas formas para os sonhos, os futuros, as esperanças, exercícios e acrobacias mentais - e existenciais também.

O simples encerra níveis de complexidade que não imaginamos.

Pegar um copo, lavar um prato, fritar um ovo, acariciar a cabeça da filha pequena, subir e descer degraus... tudo... Escrever e digitar: coisa hiper complexa... no simples... no banal. Dar forma ao pensamento.

Mário Benedetti dizia que nada há mais complexo e desafiador do que construir / criar um poema simples. 

E, pelo contrário, nada mais fácil - para alguém habilidoso e preparado - do que exercer a erudição e a elaboração de textos densos e difíceis - que, de muitas maneiras, são formas de mostrar o próprio poder daquele que os escreveu.

O simples não. Ou cai no lugar comum e fica na superfície das coisas - sendo condenado, com justiça ou não, à mediocridade - ou atinge processos desconhecidos e potencializa ou inicia mudanças tanto no próprio artesão como nos seus possíveis leitores.

No simples se valoriza um certo ideal de Ser: o mínimo de poder e o máximo (dependendo de cada qual) de sabedoria, como diziam os sábios chineses taoistas. Eu acrescentaria: o máximo de sensibilidade poética e artística. E a habilidade construída de manter esses sentidos todos antenados, vigilantes, tingidos de maravilha. Isso que é o verdadeiro desafio. O caminho que se faz ao pensar e deixar de se pensar. O saber biológico entranhado (Bateson dizia). A propriedade de ser pedra e criar musgo: traste (proposta Manoelziana).

Enfim. Os temas das aulas me permitirão um re-encontro e quem sabe uma síntese parcial e temporária (como todas)porque ando enchido de espírito. Ando presenteado pelas vidas e pelos amores. Doce, felino, desejo aprazível que se acorda mutuamente nas madrugadas... admiração constante pelo milagre assistido... e de criação compartilhada.

Vale então refletir sobre as faces do dodecaedro chamado fé ou religiosidade, ou vínculo com (e procura do) o invisível... temas que sempre amei mas com freqüência deixei largados, abandonados por desleixo.

E, ainda, hoje reconheço, o objetivo principal (nada claro, nada coisa alheia, nada norteador e iluminado) do viver em busca da maravilha do simples: a imaginação e as artes.

4 aulas, 2 temas meus. Meus porque amados. Meus mas que deixo voar. Meus mas que espero escutar dos outros suas invenções.

Serão então, tempos de espelho e de portais. Tempo de escutar a voz e o silêncio - meus, das amigas, dos estudantes. Porque não tenho certezas dos comos e dos por quês, mas sou chama que persistiu. 


2.

Tenho sido um mal exemplo de convalescente. E ainda o serei. Brincadeiras com os riscos, as prudências, as leis que nos rotulam como doentes definitivos e mutilados. Tenho mexido com os limites, as advertências, as condições e rótulos. Tenho me testado e em geral tem dado certo. Mas tenho pagado alguns preços. Não se pode ter tudo. Alma cheia, corpo doído, ou chumbado.

Mas nesses anseios de ser mais e mais humano, mais e mais além, tenho arrastado pessoas queridas. Elas todas me apoiaram, cada uma com seu jeito. Agradeço com profundeza de alma. Com gratidão oriental - essa que não corresponde a favores ou a coisificar os atos amorosos. Gratidão que é simples sorriso ao universo.

Agradeço e continuo dando passos leves.

Elas sabem quem são. Espero que sorriam comigo.

Faz 1 semana fiz 6 meses do renascimento. E ando bem por aqui.








18 agosto 2014

Una mujer joven descansa en el suelo del centro cultural Garcia Márquez


Una mujer
Tiene la forma de una cometa
Papalote, ala de viento, palabra encontrada. 

Ella descansa de ojos cerrados y
Sonrisa suave y dibujada

El sol de la tarde de Bogotá la esta volviendo dorada
Y el tiempo está estático y hecho de retornos

A su lado una mochila de los indios de la Sierra Nevada de Santa Marta evidencia
Su complicidad conmigo, el escribano. 

En algún momento yo no paraba de decir y decir
Antes que uno mismo se congelara para después soñar en recuperarse

Pero no
Pero si

Todo eso es poco importante 
Si no tal vez la tarde de Bogotá
Cuando ella se dora y sueña
Y alguien como yo, pasajero, imagina entrar silencioso en ese sueño

Como un relato inconcluso del Gabo
O una canción rara de Maria Mercedes Carranza. 



[Julio Wong Un escribe en la Calle Balsa de las diez los lunes]

12 agosto 2014

O MEU Robin Williams [julio wong]







Para Paula, confiando que um dia aprenda que 
a liberdade se luta a cada segundo. E sempre com humor e graça. 
Como Robin.

Hoje estou longe pra caramba do meu cotidiano. De alguma forma me encontro e descubro nos gestos, vozes e olhares de pessoas inesperadas a milhares de quilômetros dos meus lares afetivos. No norte da América do Sul, refugiado em Boyaca, eu me emociono como quem vê o filho andar pela primeira vez; ou sobreviver a uma cirurgia longa e muito arriscada. Comovido e algo choroso.

Hoje se faz duro digitar. E, como fazia há mais de vinte e cinco anos, criar para mim era digitar. Tive o meu primeiro PC ainda estudante de medicina em 1985. Fazia poemas que guardava em grandes discos flexíveis. Os achava poéticos e mágicos. 

Hoje, depois dos sismos de 2014, é duro digitar. Mas. 

Mas o Robin Williams se foi e então eu devo e quero escrever. Mesmo que seja com os polegares. Sim, sei que soa dramático. Mas não o é tanto. É só força de costume e manias de quem valoriza demais o criar. Ato inusitado. Sempre espantoso. Arranjos de espírito e corpo que recentemente perderam esse conforto, essa harmonia. 

Robin. 

Em 1992 eu voltava de morar em Cuzco. Contra a minha vontade sai de lá. Amava minha vida lá. Meus amigos. As paisagens. A mistura de Inca e espanhol que encontrava em cada parede da cidade. 1991 foi ano único, singular e singelo. Mas, burro de mim, não fui capaz de argumentar que não queria. Que estava nem aí para a idéia de sair e estudar. Calei e fui embora. Só queria a alegria e a tranqüilidade dos outros. 

Cheguei a Lima fragilizado. E, numa noite de Miraflores, assisti The Fisher King, um filme do ex-Monty Python Terry Gillian. Com Robin de protagonista. Eu, pouco proclive a prantos, chorei demais ao longo de toda a projeção. 

E foi no cinema com uma amiga canadense, Anne Hajer, que passava por Lima de volta a Toronto. Não foi na TV. Depois pedi desculpas. Mas chorei é muito. Fazia 30 anos e era ainda uma criança. 

Dai para frente eu tive em Williams um refúgio. A fala rápida, a imitação de vozes, o repetitivo e outros trejeitos não me importavam. Eu tinha uma versão do Robin que me consolava. Que me dava esperança de algum dia aprender, dentro de mim mesmo, a dizer o que morava no coração e não o que os outros achavam o melhor para mim. Demorou muito. Demora. 

Quando Victor Valla faleceu eu escrevi que cada um de nós tinha seu Valla particular. Cada um de nós acaba inventando um próprio Valla. É o que acontece com os homens que são transcendentes. Só conseguimos ver e entender partes. Por isso podem aparecer contraditórios. 

O importante é que o Humano nega o catecismo, rejeita a simplificação e a conversão do contraditório e do continente de fraquezas e heroísmos em panfleto, consigna, política nacional de controle mental pela mediocridade. Em mera reprodução e não em criação. 

Por isso ainda acalanto no peito o meu Robin Williams. Meu. Aquele que citava Whitman com empolgação. Que esqueceu que foi o Pan para depois renascer. O que desvirava robô em filme ruim, o que pulou no mundo dos tormentos para encontrar o amor que se foi, suicidado, de impossível redenção. Aquele que fez o Patch, herói de muitos dos meus alunos da UFF. 


Hoje a roda da vida avançou. Novos dilemas, novos aprendizados, alguns arrependimentos inúteis... E repetições com cheiro de karma em pessoas baixinhas, pessoas que amo. Que são de mim. Mas mais são do mundo. 

Por isso vale lembrar o seize the day de Robin em Dead Poets Society. Caaaaaarpe. 

Eu confio. Porque nada há como o poema. Como o canto selvagem no meio da ordem mais férrea. 

Gracias Robin. 


[Julio Alberto Wong-Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das]

02 junho 2014

Blues (Julio Wong Un)


Desenho de Robert Crumb, óbvio. 


Conheci o blues de maneira curiosa. Em 1991 andava pelas ruas de Puno. A única cidade de todas que andei alguma vez nesta vida onde nunca me acostumei à altura de mais de 4.000 msnm. Fui pelo menos 8 vezes mas nunca o meu corpo se adaptou. Além do frio e da dureza dos aymaras que de alguma forma me rejeitaram sempre. Povo guerreiro e distante. 

Era noite. Atrás de uma grande igreja colonial, no camelô, comprei seis fitas cassete da coleção Crossroads do Clapton. Na época só sabia que ele tocou com os Beatles, ficou com a esposa do George Harrison e fez uma música linda para ela (Layla). 

As fitas eram piratas. As capas eram un Xerox em preto e branco. Mas o vendedor, un índio misterioso, me disse: blues! É perigoso. Vai se amarrar

Eu ri. Inocente. E perdido. Sem salvação. Porque ouvir o poder da guitarra, e do ecossistema que o blues criava com Clapton se divertindo foram fulminantes. 

Meses depois, já trabalhando em Cusco, houve um incidente providencial. Um garoto desses cara de pau - que tem aos montes  - tinha pedido umas fitas de blues para uma menina, que viria ser uma grande amiga. Ela ia para os Estados Unidos. Aliás, morava no mesmo prédio onde morava Woody Allen, com vista ao Central Park, fato que fazia dela um ser sobrenatural. Mas ela não ligava. Gostava de simplicidade extrema. 

No mês em que a menina passou fora de Cuzco, visitando a família rica em New York, o menino fez muita bobagem na casa dela e acabou sumindo. 

Quando a menina chegou as fitas ficaram órfãs. Eu adotei prontamente. 

Era ainda época do Walkman, embora eu já tinha uns poucos CDs esperando ter no futuro um aparelho. E comecei a escutar as fitas. E virou feitiço.

BB King, Muddy Waters e Howlin Wolf. As fitas se repetiam e revessavam no aparelho portátil. 

Resultado: 23 anos depois ainda me emociono totalmente quando qualquer blues começa. 

Foi assim que o blues me encontrou. 

E eu curto discreto, agradecido, pedindo secretamente para não me perder dele. 

[julio Alberto wong un escreve na Rua Balsa das 10 às segundas]





10 março 2014

O sono e o beijo

Pelotas - 2013


descubro, aprendo, em tempos de sonolência, que o amor nos acorda
que a saúde vem do amar
que andar as ruas em sorte de beijo é deixar atrás mal-estares
que o corpo pode estar invadido
mas as luzes do verão limpam o estagnado
em cinco ou seis horas eu sinto a luz dentro de mim
as mesmas ruas viram outras
os passos repetidos despertam a carícia oportuna

assim, a receita não é viver bem para ser sadio
mas encher-se de saúde-amor para viver bem
mas isto é oferenda, presente inesperado, sempre

a força exagerada que vem do encontro
é o verdadeiro milagre

é sutil o toque ou o beijo
é aberto o tempo do sol elevar-se e dizer
é eterno o abraço dos corpos de todos os amantes
e luz que vem do olhar da criança
a missanga que é oferecida como brinquedo ou promessa

eu, bichado, em espera de utopia boa, celebro jubiloso o dizer dos amores
sou mais do que me limita, sou mais do que me descreve

te dizer, te confirmar, te saber, te mergulhar, te espaço e luz de tarde

a cada casa o sono vira beijo, a cada metro o tempo vira esperança




[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]

02 fevereiro 2014

Tankas irresponsáveis (1)

Queridas e queridos: como alguns sabem estou com alguns probleminhas de saúde. E terei, por mais alguns dias ou semanas. Torço para voltar "à ativa" rápido. A Vida me chama demais. 

Assim, criação direta fica fora de cogitação. Decidi enviar alguns posts de Tankas que escrevo desde Outubro de 2013. 

Por que irresponsáveis? Gosto de entrar nessa condição de liberdade. De leveza. Idade e estrada permitem. Os Tankas tinham uma estrutura de versos fixa. 5-7-5-7-7 sílabas ou poema de 31 sílabas. Se consideram antecessores dos Hai-kai. Os meus não. 

Não vou explicar os Tankas. Isso seria pecado. 

Só direi que tenho mais umas 5 postagens como esta. 

Como gosto também do gradual e do crescendo - como no Amor e no Sexo - enviarei aos poucos. 

Abraços.

Julio



[Julio Wong escreve no Rua Balsa das 10 às segundas-feiras]

20 janeiro 2014

De como nos enxergam e do que somos...



Trapiche Gamboa (Zona Portuária do Rio de Janeiro)
Charlie Parker e Carmen Miranda - Misturas

para o amigo Ernande do Prado, que migra adoidado.


Ser migrante, translated man, pessoa traduzida, expressão cunhada pelo Edward Said, é desafio permanente. Mas, fora as poucas agruras que isso me trouxe, mesmo antes de vir ao Brasil, é algo fascinante. E esta longa experiência brasileira é gostosa, alimentadora de reflexões e sensações, de emoções e transformações.

Sou testemunha a tempo integral de culturas misturadas, em movimento, se fazendo e refazendo, se imaginando de jeitos diferentes a como são vistas por "olhares estrangeiros" e que me entusiasmam o tempo todo. Culturas, enfim, da pós-modernidade. Múltiplas, fragmentadas, mas, talvez também por isso, deliciosas.

Sendo tão misturado - chinês de Macau, Cantão, e mais um lugar que acho que era Hunan; índio quíchua de Ancash no norte do Peru; espanhol de Castilha, ao sul de Madri; e quem sabe mais o que... é difícil, penso, me classificar. Mas aqui é fácil demais. Sou dono de pastelaria (com seu "bem asiático" caldo de cana e pastel fritado). Ou dono de restaurante. Ou mafioso chinês cheio da grana. Ou alguma coisa asiática sem muita clareza. Nunca professor, nunca médico, nunca peruano, nunca poeta. Olhares me simplificam e classificam. Taxonomia do senso comum. Adoro. Curto e me divirto incorporando personagens.

Só em algumas fases da minha vida renascida aqui neste Brasil eu me incomodei com isso. Nunca sofri bullying - embora sei de outros que sim, especialmente na zona norte carioca. Nunca me destrataram ou preteriram. Quando fui ofendido, na Polícia Federal da Praça Mauá, foi igual que os outros migrantes estrangeiros e portugueses que por lá tínhamos que renovar vistos e resolver pendências. Nada demais.

Um evento especial aconteceu anos atrás na periferia de João Pessoa. Nessa época tinha a ambição tola de morar lá e fazer a vida perto do amigo Eymard Vasconcelos, balseiro também aqui no blog. Não deu certo. Mas no processo eu fui e voltei várias vezes. Uma dessas idas eu teimei em ir do aeroporto até a cidade de ônibus. Errei de linha, o que para mim é raro. Erro proposital, ri depois de mim mesmo.

Acabei em lugar que não lembro o nome, no meio de várias culturas e lavouras. Numa mini aldeia no meio da Paraíba. Instruído carinhosamente pelos passageiros e cobrador desci para esperar o ônibus da linha XXX, o certo. De mala e cuia, eles pensariam que eu era desses migrantes chineses escassos que tem no nordeste e que vendem tênis e relógios xing ling. Infelizmente não era.

Sentadinho na banquinha, na sombra de uma árvore magrinha, eu matutava meu tempo, pensando talvez em Guimarães Rosa - quando se viu chinês pensar em Sagarana? Um psiu me acordou. Psiu baixinho, de longe.

Eram umas 5 crianças de uns 9 a 12 anos. Cabelo bem curto, corpos de arame, olhar intenso. Pensei, crianças arretadas para ter essa energia de brincar, curiosear o mundo e o chinês-peruano aqui.

Uma delas, João, a mais ousada, veio me procurar, e disse: "você luta kung fu?" e me tocou. Assim que me tocou saiu correndo, disparada. E, ao chegar à turminha que o esperava, disse triunfante: "ele é de verdade"!!!!!

E repetiram, ansiosos: você luta kung fu? eu assenti sério e misterioso. Eles foram ao delírio e começaram a brincar de luta entre eles. Onde será que eles vêm esses filmes que no Sudeste nem passam pela TV?

Depois, soube, o comércio de filmes piratas - obra indireta também dos meus distantes parentes chineses - leva toda oferta de filmes, shows e claro, filmes de pancadaria.

Assim, estava entendida minha popularidade. E, no ato de me tocar, eu percebi que nessa região nunca houve um chinês bochechudo. Ainda espero que médicos chineses (ou quase chineses, como eu) invadam também esses mundos. Que os médicos que amam atender, conversar, brincar com crianças, participar da vida da comunidade, se espalhem pelo planeta.

Ser traduzido, migrante, carregador de tantas tradições e sensibilidades, para mim é uma benção. E é também uma responsabilidade. Quando falam mal dos médicos estrangeiros fico meio zangado. Embora saiba que alguns só vieram pelo dinheiro e que uns outros farão trabalho ruim, sei que todos somos misturados e que essa mistura cultural também é valiosa e algo que quero para o mundo da saúde. E que para muitas populações ter um médico interessado neles, seja qual for a nacionalidade, é bom demais. Nunca teve antes.

Décadas atrás lutei kung fu, adolescente. Lutava mal. Espírito guerreiro fraco. Mas o kung fu me fez entender meu lado chinês. Pobre, camponês, marginal, migrante ferrado. Mas digno, belo, saboroso, e que me traz orgulho até hoje.

Assim é ser como sou neste país estranho e gostoso que se imagina único sendo tão diverso. Que tenta homogenizar sem conseguir. Que obedece às corporações sem perceber. Que vive ao ritmo de ilusões sendo tão real. 

Quem sabe o gigante realmente continue acordando. Ou talvez a história seja um cochilo intermitente e interminável. Nela, mergulho, misturado, traduzido, estereotipado, singular, social, único, legião.






[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]

18 janeiro 2014

Francisco predica a las aves (un poema de 1990)


Miraflores, Lima, Peru, 2012





Francisco predica a las aves
a Luz Alva







Chala. 1216. alrededor tuyo, cuarenta niños como pájaros
en esta pampa verde donde alguien dejará una escuela.
en este lugar verde con el rostro barbado en el cerro y otros árboles que no conozco
te sientas con el cabello libre en trenza y los ojos rodeándolo todo. te sientas cruzando las piernas
igual que los niños  - acaso otro niño y otra vocecita esperando los juegos - sobre la hierba
el color claro de la madera clareada
la boca dejando amor al aire: lo que importa es que se sientan bien
que crean en algo  que ese algo no los utilice. esta pampita de Chala
te esperará ochocientos años a que vuelvas
y a que yo trace estas memorias de futuro  cuando te conozca  dulzura
en esta escuela que no existe todavía
en este barro que espera ser una casa  y en esos niños que esperan ser aves
para escucharte




día de San Pablo, Asís 1216.














[Julio Alberto Wong Un publica na Rua Balsa das 10 às 2das-feiras]
[Chala é uma comunidade camponesa nas alturas do distrito de Bambamarca, Cajamarca, norte do Peru]

13 janeiro 2014

eolo y las fuentes (un poema de 1986)



para C.T.T.

1.
Eolo, viejo dios de los navíos, hace nuestra hora en su soplido
Entonces, cada vez más oscuro, el deseo de los espacios infinitos te va llamando
Eterna en tu inicio. Islas cansadas, todas las imágenes de la poesía,
En tu rostro son repetidas con bello canto y arpegio de guitarra
Y espero, tocando en temblores apacibles las hojas del bambú de los antiguos monjes,
Revisando contigo tu caligrafía de madrugadas.
Viene la cercanía, y la paz de los patios está por lo menos escrita en las horas
Nada ha de cambiarse, bello cuadro que recuerdo.
Viejo Eolo   /   largo viento que hoy me besas

2
la paz de las fuentes señala el sol que salta entre las aguas
allí, entumecido y feliz, me guardo para las glorias de setiembre
he contado años en tus cuadernos
asombrando mis milenios / dejando aparte la muerte de las ilusiones
y recojo entre la hierba extensa
pequeños mensajes
que te van queriendo



Olimpo, Agosto de 1986





[Julio Alberto Wong Un escreve na Rua Balsa das 10 às segundas-feiras]

05 janeiro 2014

A espiritualidade de terno e gravata. E a espiritualidade do rio.

para Eymard e Amélia.

Ideias 1
ando confuso, confesso. gostei do Bergoglio. pareceu-me gente boa. embora sei que é imagem pública - melhorar a imagem da firma. jogo de espelhos como outros. mas gostei. tem que continuar gostando. se não, andamos só pelo dark side. e a vida se torna algo ridículo. confuso e sem sentido.

mas quando ele faz as missas no coração do vaticano fico estranhando. império? edificações grandiosas para conter possíveis dúvidas e dissidências. dourados que impõem castas. não a glória do deus e seus santos. mas a glória dos que decidem, mandam, lucram, e ostentam.

os poucos anos do papado serão poucos mesmo. e depois do menino argentino de 76 anos, o que virá?

Ideias 2
vejo os médicos, colegas (colegas?) gordos, barbudos, inchados de poderes nímios, em evento sobre Espiritualidade Saúde e tal. A abertura é feita por um dos tais. terno, gravata, barriga de cobiça sempre faminta, citando estudos, pesquisas, e comprovações para convencimento da utilidade - sim, utilidade - dessa dimensão.

os acadêmicos e gestores da saúde - e talvez estudantes e profissionais da ponta também - perguntam da utilidade das coisas do espiritual. lado escuro, desconhecido, ridículo, superstição, droga opiácea, sabe-se lá o que mais.

quem sabe as formalidades apaguem o poder da visão? os ternos, vestidos longos, o olhar poderoso desses médicos nos cargos. não os que admiro - que realmente se importam e constroem junto com os doentes e familiares, criam trilhas de espanto, dor, raiva, revolta, e redenção.

Idéias 3
e, acabando o caos pessoal que me inquieta, leio contos do Mia Couto, biólogo moçambicano - especialista em meio ambiente - que nunca deixou de trabalhar na área biológica apesar da fama crescente e as viagens e tal.

em um dos contos iniciais do Mia, um jovem pastor morre ao pisar uma mina terrestre, dessas semeadas pelos exércitos e pelos bandos de bandidos. o final, esperado, é a morte e a redenção.

a morte do menino Azarias é um voo, é flutuar, é a descida à terra do pássaro mítico de fogo, Ndlati.

esse espírito é o que seguirei. porque hoje, apesar dos poderes, é possível tecer e desenhar sendas próprias. e sonhar e viver.




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