Este texto é
parte de uma série que pretendo escrever a partir de eventos do cotidiano do
serviço em Atenção Primária à Saúde. Todos os nomes são inventados, mas as
histórias serão reproduzidas tão fielmente quanto me lembro de ter acontecido.
Começo com este de 2007.
17 de agosto de 2007
Ontem, sexta-feira, chegou uma senhora por volta das 10h30
da manhã para fazer o preventivo de câncer de colo de útero. Entrou na Unidade
no mesmo instante em que desmontava todo o aparato que monto pela manhã para
receber as mulheres. Geralmente começo às 7 horas, não é necessário agendar,
atendo todas as mulheres que chegam sem burocracia e não pergunto de que lugar
é, nem de que cidade. Chegou, atendo.
Disse a ela que nosso preventivo era pela manhã, que
toda sala já estava desmontada e que iria começar outra atividade, o que não
era necessariamente verdade. Eu ia fazer alguns relatórios – o meu sentimento
era de frustração, afinal de contas estava acabando de desmontar a sala.
Ela respondeu que não tinha problema, que voltaria na
próxima sexta-feira. Antes que ela saisse, perguntei-lhe de onde era. Não
respondeu, mas disse que não tinha vindo pela manhã porque trabalha justamente
neste período. Respondi-lhe que não havia problema, que lhe daria uma
declaração para apresentar aos patrões.
Ao falar isso, percebi o quanto isso é irrelevante em
uma cidade do interior, principalmente para uma diarista. Se ela tiver que
perder o dia para ir ao serviço de saúde, vai perder o dinheiro da diária,
tendo ou não declaração ou atestado.
Esmeralda ainda acrescentou que sentia dores no “pé
da barriga” e que fazia tempo que não repetia o preventivo.
Ela já ia saindo, enquanto a preguiça me acusava.
Fazer um exame preventivo exige muita coragem. Parece coisa simples quando a
gente fala, mas entrar em uma sala com um profissional de saúde, sendo do sexo
feminino ou masculino, e abrir as pernas para que olhe e introduza “coisas” não
é simples, tem que ter coragem mesmo e tenho certeza que esse momento é adiado
o quanto pode. Por 30 segundo pensei e, antes dela sair da sala ,superei toda
minha resistência e disse:
- Dona Esmeralda, peça para recepcionista seu
prontuário enquanto monto a sala de novo.
Pela manhã, outra mulher já havia “me escapado” após
pedir-lhe para esperar enquanto preparava a sala. Ela queria antecipar o exame
e acho que não me fiz entender bem ou ela perdeu a coragem enquanto esperava.
O preventivo é marcado para às 8 horas. Primeiro é
realizado uma reunião com as mulheres e conversado sobre o procedimento, as consequência
de não fazer, os cuidados, etc. Nessa reunião ela pode se expressar, falar
sobre o momento ou qualquer outra coisa. Após esse momento coletivo, é realizada
a coleta, mas quando dei por mim ela já tinha ido embora.
Fazer o exame preventivo é um procedimento complicado
para mulher, exige que se dispa de muitos sentimentos e pudores e, às vezes,
até que faça escondido do marido. Mais cedo, acho que não soube perceber essas
dificuldades da mulher que queria antecipar, mas agora não podia perder.
Arrumamos a sala e fizemos todo o procedimento, que
não demoraria mais que 10 minutos, se não houvesse o cuidado de conversar antes
e depois do procedimento.
Dona Esmeralda é o tipo de pessoa que demanda poucos
cuidados. Na verdade nem a conhecia, pois era moradora de outra área e
normalmente frequentava outra unidade de saúde. Viera neste dia por ouvir de
outas mulheres que aqui se fazia o exame às sextas-feiras e esse era o dia da
semana que terminava seu trabalho mais cedo.
O que mais chamava atenção em Dona Esmeralda, além de
sua aparência de mulher forte, porém sofrida, eram os chinelos de dedo, já bem
surrados. Ela estava com os pés sujos, pois vieram caminhando da zona rural,
onde morava, até a cidade.
Seus pés sujos lembraram-me de um tempo em que os
profissionais de saúde recusavam-se a atender pessoas com higiene precária. Já
vi inclusive pessoas serem posta para fora do consultório para ir tomar banho e
voltar depois, já vi também colegas avisando pessoas para tomarem banho e
limparem a casa para receber visita domiciliar.
Revisão: Cecília Mano
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