Ernande Valentin do
Prado
Fui a bicicletaria hoje. O bicicleteiro já me conhece
bem por que a cada três dias o pneu murcha e passo lá. Como não gosto de
incomodar ninguém, eu mesmo encho o pneu e, às vezes, sujo a mão de graxa (acho
isso um horror). Desta vez ele estava sem fazer nada e ficamos conversando.
Bicicletaria é um lugar diferente de outras oficinas.
Lá sempre tem um monte de bicicletas velhas, pedaços ou boas bicicletas que
ainda funcionam, mas os donos meio que esquecem ou pensam na oficina como um
cemitério sem morte, um lugar onde largar o que se amou muito, mas não tem mais
utilidade – nem nos afetos. Não sei qual o mistério, mas é assim em toda
bicicletaria que conheci.
Perguntei-lhe porque não usa peças de uma para montar
outra e se livrar de tantos entulhos. (estava pensando no combate a dengue –
epidemia nesta época, mas também na “judiaria” de gente precisado de uma
bicicleta)
- Não compensa, ele disse.
- Compensa sim, disse eu. O Natal está
chegando, monta e dá de presente ou vende a preço simbólico para uma criança
que não pode comprar.
E sabe por que eu pensei nisto?
Quando era criança, todo ano meu pai
prometia uma bicicleta. Era no meu aniversário, depois no dia das crianças,
depois se eu passasse de ano e por fim no Natal. Mas em todas as datas marcadas
ela não vinha. Muitos colegas tinham bicicleta e eu só aprendi a pedalar na
bicicleta deles. Muitas vezes fiquei de fora das brincadeiras por não ter meu
próprio veiculo de duas rodas.
Com o tempo, percebi que não ia conseguir
uma bicicleta. Sem revolta, sem mágoa, pois via perfeitamente as condições
financeiras de meu pai (isso é uma coisa que sempre me doeu, ver as coisas
desde pequeno). Na boa parei de contar as datas e o dia de receber minha
bicicleta. (talvez isso de entender as dificuldades financeiras de minha
família tenha a ver com o fato de aos três ou quatro anos ter ficado revoltado
com Papai Noel ou com o fato de, aos cinco anos, ter descoberto que papai Noel
não existia.), mas conto outro dia.
Enfim, consegui uma bicicleta aos 16
anos. Velha, de terceira mão (comprada de um piá com a alcunha de farinha, de
tão branco que era). Era muito ruim e feia, mas era minha primeira bicicleta.
Conseguida com a grana de um de meus muitos trabalhos na adolescência. Aqueles,
sem carteira assinada e sem nenhuma garantia de nada (igualzinho aos que
consigo hoje, como enfermeiro).
Fiquei empolgado e usei a bicicleta
por uns três meses. Depois, perdi a graça e a deixei encostada por um longo
tempo. Os pneus murchando sob o sol a e chuva.
Acho que eu nem gostava de bicicleta
ou a minha estação de bicicleta havia passado – sobre isso ver: Os meninos
crescem, de Domingos Pelegrini – o livro de contos de que mais gostei na vida
Um dia, cheguei do trabalho e minha
mãe disse, com a maior naturalidade, que havia um garoto da vizinhança querendo
comprar minha bicicleta.
Fiquei indignado com aquela ousadia,
mas não falei nada. Imagina, vender o que eu levara anos para conseguir
comprar. A concretização de meus maiores sonhos da infância.
No dia seguinte antes de sair para
trabalhar, ela perguntou quanto eu queria, pois teria que dar o preço para o
garoto.
Fiz as contas de quanto havia gasto
na bicicleta, quanto já havia investido e quanto ela valia. Cheguei a um custo
que não sei mais dizer qual é (era um tempo de inflação galopante) e disse um
valor.
Quando cheguei do trabalho ela
disse:
- Ele só tem tanto. (uma quantia que
não dava nem um terço do valor que eu pedia), mas disse que te paga em
prestações.
Era o fim da picada, imagina, queria
minha bicicleta e nem tinha dinheiro para pagar.
Nem respondi, mas fiquei com aquilo
na cabeça.
O garoto deveria ter uns 12 anos (eu
o via na redondeza sempre fazendo uma coisa ou outra, juntado ferro velho para
vender, limpando quintais e coisa assim). De verdade via nele o mesmo desejo de
ter uma bicicleta que tive um dia. E pensei comigo: se eu só pude satisfazer
esse desejo aos 16 anos quando a bicicleta nada mais significava para mim, (não
o que significaria na infância), por que exigir o mesmo de um garoto se eu
podia realizar (meu) sonho com ele?
- Pode falar para ele vir buscar a bicicleta amanhã. Ele
dá o que tiver e quando pude, e se puder, paga o resto.
Na primeira vez em que ele veio
pagar a prestação, (eu mesmo nunca falei com ele, sempre foi minha mãe quem
resolveu tudo), disse que não precisava mais, que aproveitasse a bicicleta bem
e que passasse para frente quanto pudesse comprar uma melhor. Nunca mais pensei
nisso, até hoje.
(Escrita em 2006 – Rio Negro, Mato
Grosso do Sul)
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Foto: Julio Wong Un |
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