PAISAGEM DA JANELA
Para Clarice
Solta a mão do tempo
De ti desamarra
Enxuga, muda o lamento
Faz do teu relógio vento...
De ti desamarra
Enxuga, muda o lamento
Faz do teu relógio vento...
Cavaleiros Marginais
Costumo presentear amigos, no fim do ano, com pequenos sacos de lentilha. Não é pra trazer dinheiro como a tradição fala. Lentilha é semente e toda semente é um potencial de vida, de começo, de germinação, broto, planta e mais e mais sementes. Lentilhinhas é o diminutivo de lentilhas. Lentilinhas, por sua vez, não existe. É a mistura de lentilhas pequenas e linhas pequenas... A ideia dessa série de escritos é trazer pequenas passagens, pequenas linhas faladas ou vividas com ou por amigos. Conversas de mesa de bar, de ônibus ou mesmo durante alguma boa caminhada, algum bom café de fim de tarde. Partilhas: partilhinhas... Partilinhas: palavra inventada... parte pequena de um cotidiano que, em segundos, se torna mágico, linhas partilhadas.
Ela me conta que foi no dia em que a filha mais nova saiu de casa. Era um momento esperado, até desejado. Criara filhos para o mundo, para seguirem seus rumos, para desbravarem caminhos próprios. No entanto, o vazio é inevitável, como é inevitável a terna saudade dos tempos em que a ideia de ir embora era presente somente nas histórias contadas. Um futuro que chegou tão rápido quanto o branco de alguns fios e os aprendizados de idas e vindas: a sabedoria do tempo.
Chega na Unidade de Saúde para mais um dia de trabalho. Uma agente comunitária traz a filhinha recém-nascida para a consulta. A jovem mãe desengonçada despe a criança e se atrapalha mais ainda com a fralda suja e com a fralda limpa que não sabe onde colocou. E a mão sem jeito de limpar. E a pequena chora e se move o tempo todo. Mais uma menina chegando ao mundo, para o mundo, com o mundo. E o tempo volta...
Conta, então, que naquele dia, deu alguma saudade distante, Ela ajudou a jovem mãe e a pequena de bundinha suja. Ajudou a trocar e limpar. Justamente naquele dia. O dia em que se olha pela janela do tempo e se sente feliz, de alguma forma recompensada, pela destreza das mãos que ainda, e sempre, sabem cuidar. Ela, então, coloca a bebê nos braços e, já bem limpinha e acarinhada, a pequena para de chorar e se acalma no ninar dos seus braços e suas mãos. A jovem mãe agradece.
Quando íamos imaginar tamanha magia! A pequena menina, sendo acolhida, abraçada e acarinhada, também acolhia, abraçava e acarinhava, sem saber... Em um pequeno instante sem palavras, cheio de mistérios, vazio de explicações, repleto de significados, alguém ilumina, alguém se ilumina e renasce. Desde cedo, pequenas nas nossas mais sutis e corriqueiras maneiras de viver, de começar a viver, de aprender a viver, jamais sabemos quando fazemos sorrir, quando fazemos chorar. O quanto um simples espernear pode fazer mais sentido do que um simples espernear.
Ela, então, no fim do turno, me conta, caminhando enquanto vamos pegar, juntas, o ônibus pra casa. Faz um gesto com os braços como se embalasse, me mostrando como foi... Já no ônibus em movimento, olho pela janela as crianças brincando. O sol do fim de tarde ainda forte traz as últimas imagens do dia. Queria uma cortina de enfeitar esse embalo, esse movimento, esse ninar. Queria cortina de tempo parado. Cortina de proteger do sol. Cortina de voar no vento. Cortina leve de noite nascendo, de menina nascendo, renascendo. Cortina rosa de flores brancas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?