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26 fevereiro 2021

#67 Rita, a facada e outras violências contra as mulheres

Áudio do Podcast 

Nesta edição do música para pensar, vamos explicar porque Rita deu uma facada em Tierry e também vamos falar sobre Silvia, Letícia, Jéssica, Amélia e outras mulheres. Quer ouvir sobre essas violências cometidas contra as mulheres, só não desligar.

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Link para esta edição no Radio Tube: https://tinyurl.com/6h1d6jol

Link para todos os episódios no Radio Tube: https://bityli.com/bU8Qg

Deezer: https://bit.ly/3j1s9VF

Podbean: https://bit.ly/3r6U21d

Google Podcast: https://bityli.com/lqIYt

Referencias:

Documentário Feminicídio - A Realidade Brasileira: https://www.youtube.com/watch?v=UuLfMufHL0Y

Neaf Concurso – Feminicídio: https://www.youtube.com/watch?v=S7cPNjSlyZc

UNIMED FORTALEZA. Dicas para curar a Impotência Sexual // Viver Bem: https://www.youtube.com/watch?v=cmQZ16Pgo90


13 janeiro 2016

Um dia de Amélia


O meu prédio é um cinza, em uma rua curta. Recepção com malas e conversa com leite de arroz. Chaves sem fechaduras, testes. Chaves esquecidas, portas perdidas, caminhos por abrir. Segundo ela não tão heroína quanto pintam. Sono em cama de sonhos. Almoço vegetariano, histórias e atestados. Ida para a Nova Dique, caminhada no centro, compra de passagem de ônibus, siga-me por aqui, "esse caminho você não deve fazer sozinha", espera o ônibus "só dez-quinze minutos" *. Ônibus com ar condicionado, conversa, aponta na janela: "ali é a vila dique, o finalzinho". Histórias, vividas, vidas. Caminhos para a Unidade Básica, vidas no meio do caminho, conversas rápidas, carinhos. Vou conhecer a Unidade, no meio paramos para escovar os dentes, discussão sobre a reunião de equipe com a porta do banheiro aberta e com Amélia escovando os dentes. Ela sinaliza com a mão para esperar ela bochechar para responder, as pessoas entram e saem enquanto ela escova os dentes. "Amélia, que lindo isto aqui" (segurando o colar de pedra verde que está no pescoço da Amélia enquanto ela mexe o braço escovando os dentes**) ela diz: "Comprei aqui em Porto Alegre na Feira, coisa hippie". Conversa com a liderança da comunidade "só quinze minutos", intensos, desabafos, e sonhos. Pede paciência, vamos construir, fazer, criar. Pacientes, acima do peso, abaixo do peso, Vila Dique, mulheres emponderadas, meninas fazendo conversa sobre sexualidade, aviões de papel para distrair as crianças e a mãe poder conversar. Pequenas vitórias, cabelos cortados "igual ao da médica". Cumprimentos no corredor: "conheço quase todos os pacientes, inclusive os que não são meus". Intervalo para café, chá, pessoas, caminhos e a copeira que diz "Amélia é muito humilde, médica humilde, difícil de achar". Pãezinhos saborosos. Horário que estava em branco no papel, mas tinha gente esperando. Desculpas. Conversas, faladeiras. Conversa com a dentista:"enquanto você vê as crianças eu queria conversar e examinar mãe". Negociações, ajudas. Lutas, histórias doidas, agonias, e passagens, 2015 está passando "deu desse ano para ti né". Carinhos de novo. Conversa rápida para exame na sala de espera: "espero amanhã, certo?". Abraços, ela está linda, as coisas estão melhorando. Caminhos da volta. Na porta da Unidade luto de mãe, luta para viver. "Você tem que ir ver ela, ou eu enlouqueço". Passagem rápida para um abraço, "o que eu mais sinto falta é do abraço do meu filho" diz a mãe. "Venho ver a senhora amanhã" - diz Amélia, ela responde - "o seu abraço me lembra ele, ele sempre me abraçava, disso que sinto mais falta" . Carinhos, mudança de caminhos aqui fica a horta, ali as casinhas feitas de reciclagem. "Cadê ele?" pergunta Amélia ao passar na frente de uma casa. Resposta "está dentro, venha", conversa rápida com menino. Faixa de Gaza da comunidade, caminhos, casas, jovens grávidas "de novo". Espera do ônibus, acabou de sair, "não tem problema só dez-quinze minutos". Cara de chuva, tempo feio. Volta cheia de bocejos contagiantes. Caminhadas, mercado público, damascos. Apartamento, livros, conversas. Bauru vegano, para entregar logo: "tem de abobrinha e molho de tofu defumando?" - escuto o atendente pelo telefone, gesticulo interesse e ela diz - "esse mesmo, trás dois". Projetos, planos, sonhos e entraves. "Vou fazer isso hoje, pode deixar". Bauru atrasado, jantar apressado, cheio de poesia, ânimo refeito, cuidados e bananas-maça para levar para casa. "Cuidado para não esquecer de nada! Meu apartamento parece que engole as coisas e você não acha mais". "Pegou tudo?". Então vamos. Abraços, malas, carinhos e promessa de volta com mais tempo. Um dia de Amélia. 


*Acho que todos os ônibus da Amélia demoram "dez-quinze minutos". 
** Quase caótico, não fosse poético.


Voam abraços,
Mayara Floss

10 junho 2015

Série SUS - História e Making off



Vídeo Série SUS - Você já ouvi falar bem do SUS?

A ideia já era antiga. Mas as pessoas certas foram aparecendo, a vontade de escrever, as parcerias, as amizades. Inspirada pelos vídeos da RSA Animate comecei a imaginar vídeos que discutissem o nosso SUS. Vontade de espalhar a ideia e abrir uma discussão mais amadurecida, cansada de sempre ouvir sobre as filas nos hospitais, e quase nunca sobre as coisas boas. Apesar do sonho quando começamos a fazer o roteiro e fazer a história sair do papel, começamos a sentir os percalços do trabalho. A conversa começou dentro do hospital quando o editor/produtor e também idealizador estava doente e descobri enquanto cuidava dele que ele fazia os comerciais e a produção na Televisão de Manaus enquanto estudava na faculdade. Começamos a pensar sobre o projeto e amadurecer a ideia no roteiro, em algo que fosse possível desenhar.

Trabalhando no frio. Foto: Fernanda Rosa

Também tentamos contactar alguns desenhistas, mas percebemos que ia acabar demorando muito, cheios de respostas vagas então usamos nossas próprias habilidades de desenho. O roteiro passou por várias alterações, primeiro a ideia era fazer um vídeo mais longo, mas com a pressa da humanidade atual decidimos fazer uma série de vídeos curtos, corta aqui, arruma ali, muda o texto. Isso com o apoio do Ernande e da Maria Amélia (também balseiros!). 

Depois veio a fase de construir as storylines, ir atrás de um espaço para desenhar, gravar o aúdio e muito, mas muito aprendizado. A storyline foi divertida: como desenhar "bom" ou "ruim"? Como se desenha um princípio? Como desenhar uma lei? A difícil tradução das palavras em desenhos. Também vieram outros questionamentos como: qual caneta fica melhor? Qual é a melhor sala? Iluminação? Didática? Como se posicionar para desenhar? Como distribuir no quadro? Como editar? Como improvisar um tripé? Como fazer a câmera deslizar suavamente em frente ao quadro? Reflexo no quadro, como fazer? - essas são só algumas das dúvidas...

Making off. Foto: Fernanda Rosa
Depois alguns erros de sequência, regravações, caminhos e percursos. Mas com muita alegria de ver o projeto ganhando forma. E com a expectativa dos desdobramentos. E claro já com as críticas que vieram antes de lançar o projeto. Críticas partidárias e políticas, quando na verdade o SUS não é de nenhum partido, é de todos os brasileiros. Mas claro, quem sabe pensarmos em uma discussão mais aprofundada e madura do SUS.

Making off do terceiro vídeo - Princípios do SUS

Desenhar por 7 horas seguidas em um quadro branco sem entrar no enquadramento da câmera foi pessoalmente bem desafiador. Aliás, sempre gostei de desenhar, mas tive poucas aulas de desenho, apesar de adorar fazer caricaturas dos meus colegas e professores no colégio, o processo foi lento, cansativo, mas também divertido. Por trás desses quatro minutos de vídeo tem muita história, dificuldades, desafios e alegrias. Obrigada a todos que ajudaram!

Datas dos próximos vídeos:
-  23/06/2015 - Porque o SUS hoje é assim?
- 07/07/2015 - Princípios do SUS

Vamos trabalhar Fernanda! Foto: Nigel Lima
Chimarrão para as horas cansativas de filmagem. Foto: Fernanda Rosa

 Equipe

Mayara Floss - Universidade Federal do Rio Grande - FURG
Nigel Lima - Universidade Federal do Maranhão - UFM
Fernanda Rosa - Universidade de Passo Fundo - UPF
Ernande Valentim do Prado - Universidade Federal da Paraíba - UFPB
Maria Amélia Mano - Grupo Hospitalar Conceição - GHC
Rafael Mota - Universidade Federal da Bahia - UFBA
Augusto Carvalho - Universidade Federal de Campina Grande - UFCG


Voam abraços,
Mayara Floss

27 janeiro 2015

MENINAS SEM FIM [Maria Amélia Medeiros Mano]


MENINAS SEM FIM

O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.
Mia Couto
Para Aninha e Raquel

          Venho de mundos libertos, mundos desertos, mundos repletos, onde os pés no chão são orgulho, marca de vida, heroísmo de fortes, pretensão dos que brincam soltos, brilham nas tardes em calçadas, alpendres, quintais, jardins, açudes e céus azuis. Joelhos esfolados. Pés cobertos de lama, de sal e feridos de alguma pedra de estrada, de alguma árvore subida. Os olhos curiosos espiam os cheios e os vazios em pequenas janelas abertas. Abertas as veredas, os portais nas matas, as fendas nas tábuas das portas de vizinhas dores, amores, sonhos ouvidos e inventados para dormir. Casa sem forro. Telhas no alto, insinuando o fio do dia que nasce. Cadeiras na calçada e riso que voa para o outro lado da rua. Pula corda. Bambolê. E dividimos histórias, invenções, esconderijos, segredos e quebra cabeças de peças que sobram, que faltam. Não importa... Pois esse que é divertimento de sentar, quietude não basta. O que encanta é a correria na rua, atrás da bola, do cão, da galinha, do céu da amarelinha, da chuva que começa em neblina fina. Esconde-esconde, passa-passará. Caminhão de lata. Comida de flores. Cidades de barro. Personagens de vassoura. E um oceano imenso no tanque de lavar roupa. Barcos conquistando mundos, carregando mundos, inventando mundos. Casa de vó: aventuras no pé de siriguela, sapoti e tamarindo. Passear no centro pra ver movimento, lojinha e sorvete. Varal, vento e cata-vento no alto, na mão, verde-amarelo. Feriado, dia da pátria, de pentear especial o cabelo, maria chiquinha amarrada de elástico de pular e de cós de saia, dia de bater forte o pé direito em marcha. Fila na escola. Merenda de bolacha maria com leite. Aprender a ler e a fazer verso: tia Cleine, Benedita, Irmã Marcela. É vaca, boi e cabritos nas ruas. Gira roda de bicicleta na rampa da estação do trem. Tesouros nos bolsos: botão, pedra bonita e anel de conta azul. Quadrilha, fogueira e cheiro de pólvora: “traque” nos pés. Fogueira e sombras de assombrações. Passeio no mercado de comprar manga. Passeio na feira de comprar pinto, pato e bolsinha de palha. Festa da padroeira. O bom é depois da missa. Bandeirinhas coloridas e música de dançar junto. Carrossel pros pequenos e roda gigante pros grandes. Praça, coreto, banco que se conhece cada nome e um desenho de coração. Medo da capital que diminui com caldo de cana e pastel. Mar, mar e mar. Violão da prima cantando “veja você, arco-íris já mudou de cor...” Olhos assustados. Mãos dadas. Meninos que assombram nas janelas dos ônibus: “olha a banana seca!”. Pega-pega. Chicote queimado. Pula-corda. Roda ciranda de marré deci. Cansaço de menina. Um doce sabor de dia que se vai e o profundo balanço da rede na noite de estrelas nuas. Balanço de corda e madeira onde se voa no vai e vem da tarde na praça. Balanço do pedal da máquina de costura da minha mãe, onde ainda deito minhas bonecas para dormir, nas minhas boas saudades de mim.




[Maria Amélia escreve no Rua balsa das 10 às terças feiras]


06 janeiro 2015

BE SOMEONE [Maria Amélia Mano]


BE SOMEONE

Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia.
Manoel de Barros

                Era 1987. Eu tinha 15 anos, lia tudo da biblioteca e anotava as melhores frases em um caderno grosso que tinha vindo como “brinde” de uma máquina de escrever antiga, Olivetti. Estamos nós três, irmãs, recém chegadas a nossa nova casa ainda em construção na zona rural do interior do Ceará. Em um quarto com as paredes “no preto”, somente com reboco, insistíamos em um contato com um “mundo moderno” lá fora a partir da sintonia difícil e custosa do rádio FM. Escutar, de repente, Tracy Chapman cantando Fast Car era um sinal de que podíamos alcançar este mundo distante, mesmo que por breves minutos. Podíamos também ouvir as mesmas músicas que as meninas de 15 anos da cidade, “da capital”, ouviam. Quantas coisas ainda nos aconteceriam? Quantas mudanças!

                Era 1997 e estava na faculdade de medicina, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Havia comprado com a bolsa do CNPQ um pequeno rádio gravador com CD em 12 prestações de 10 reais, na época! Daí já sintonizava bem na FM local e gravava as músicas que gostava em fitas K7. Elas ficavam meio “sem início” e às vezes eram interrompidas. Quando as fitas estavam prontas eu as decorava – a capinha de plástico - com uma paisagem ou uma ilustração e mais uma frase, um poema tirado do cadernão da Olivetti que era meu companheiro. Imagem e palavras, algo que tivesse a ver com aquelas músicas gravadas ou com como eu me sentia naquele momento. Ainda pedia emprestado os CDs de uma amiga e passava gravando as músicas que amava. Ela tinha Tracy Chapman e gravei!

                Em 2000 comprei meu primeiro computador. Em 2007 já morava em Porto Alegre. Médica, já tinha meu canto alugado e um emprego estável. 20 anos se passaram desde aquelas noites em busca de sintonia, conexões com o mundo que não conhecíamos, que ansiávamos, que nos desafiava em tempo, espaço, inocência e esperanças. Agora, também, tenho o CD da Tracy Chapman e posso assisti-la no youtube cantando para Nelson Mandela, no aniversário dele de 70 anos, em 1988. Já buscava muitos mundos, mas sem me preocupar se eram vistos ou ouvidos por alguém distante, mais “moderno” que eu. Mas se, sim, eu os conseguia identificar e valorizar em meio aos ruídos dos tempos, das pressas, das dores, dos acontecimentos, das distâncias, dos desafios, das despedidas, dos reencontros...

                Em 2013 reencontrei amigos de adolescência, no Ceará. Dançamos juntos como se tivéssemos 15 anos e de fato, tínhamos. Mais velhos, mais histórias, mas mais coisas reais e válidas com que pudéssemos partilhar um tempo que ainda nos convida a brincar com a vida e recomeçar. Encontro-os no facebook e vejo seus filhos e alguns, até, netos. Oportunidades ímpares de encontros que nos tornam conectados com a história que fizemos, os caminhos que trilhamos, as pessoas que dividimos momentos. Mas os 15 anos se foram para todos nós. Mandela também se foi. Muitos poetas, os que copiei poemas no cadernão Olivetti, também já se despediram. Outros surgiram e ainda encantam. Meu rádio gravador com CD, valioso, se quebrou, mas já tenho um cantinho pra chamar de meu.

                Começamos 2015. Ainda leio com um lápis na mão para marcar as frases e passagens que me tocam. Meu novo lápis é listrado e meu sobrinho de 7 anos chama de lápis-pijama. Agora, nós três, irmãs, nos encontramos com música compartilhada e dançada com os filhos delas. Seleciono canções para minha mana do meio ouvir quando dirige, mesmo sabendo que pode usar qualquer tecnologia melhor que CD. Minha mana caçula prefere baixar músicas pela internet. Mas CD dá para colocar figuras e frases na capa... Ainda manias... Sim, manias, o cadernão Olivetti ainda existe e é referência de frases e textos lidos, mas já precisei de outro. Ainda tenho as fitas guardadas, todas. Meu novo aparelho de som tem K7. Ainda danço sozinha na minha salinha Talkin' Bout A Revolution em algum sábado e rio. Ainda boba, achando graça de alguma revolução sempre por nascer...






23 dezembro 2014

MARIA E JOSÉ [Maria Amélia Mano]




MARIA E JOSÉ

Há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto

            Maria estava com amigas quando José ligou para a irmã. Ele, distante. A irmã ao lado. A irmã disse que ele conhecia Maria ou, ao menos, a irmã de Maria que morava no mesmo bairro. A irmã de José deu o telefone para Maria para que se falassem. Ela gostou da voz. Ele gostou da conversa. Maria permitiu que dessem seu telefone a José. E, daí em diante, todos os dias eles se falavam. José mandou foto pelo celular e Maria, muito insegura, mandou também. Gostaram do que viram.

            José estava preso. Diz que se envolveu com mulher usuária de drogas, mas que a amava muito. Ela tinha algumas "amizades do crime". Ele quis dar vida melhor para todos e se aliou aos amigos da então namorada e tentou assaltar um banco. Foi pego em flagrante. Depois descobriu que ela estava com o melhor amigo. Confessou que tinha medo de se envolver. Sofreu muito. Nove anos na prisão. Nunca casou, não teve filhos. Saiu, uma vez, no natal e resolveu não voltar para a prisão. Foi pego e preso novamente e sua pena aumentou.

            Maria foi casada com um “homem ruim” que vivia dizendo o quanto era feia, gorda e desajeitada. Quando se separaram, ele a deixou sem ajuda para criar os dois filhos. Ela não foi atrás dos “seus direitos”, isso significava encontros e incomodações e era melhor ficar distante de alguém que a fazia tão mal. Sua autoestima piorou quando fez uma cirurgia de emergência para a retirada da vesícula. A cicatriz na barriga ficou grande e agora, ela aguarda a cirurgia plástica.

            Maria falou para José do ex companheiro, da cicatriz, do trabalho para criar os filhos sozinha. Falou de seus medos. José falou de sua situação no presídio, de seus crimes e seu amor perdido. Falou ainda que não tinha muito contato com a família, nem muitas visitas, se sentia só e triste. Resolveram se encontrar. José disse que o presídio em que estava não era um qualquer, mas o de segurança máxima, em cidade vizinha. Isso significava uma viagem e uma revista mais demorada. Ela aceitou. Foi. E quando se viram, ela confessa que gostou dele desde o primeiro instante. Começou a gostar cada vez mais das ligações e sentir falta quando não conseguiam se falar.

            Desde então, dois anos se passaram. Todas as semanas se falam. Sempre que possível Maria visita José no presídio. Não é fácil pelas revistas na entrada e saída e pelo constrangimento da “visita íntima” que é anunciada aos quatro cantos das celas e todos ficam observando as mulheres passarem. Leva comida, agrados e ainda, conseguiu pagar um advogado para José. Maria trabalha com limpeza e fez empréstimo no banco. Acha que ele merece pois diz que quis roubar de rico, dono de banco. José diz que jamais seria traficante pois isso significa tirar dinheiro de família, de pobre. Ela fala isso com orgulho.

            Maria, agora, está ansiosa. Conversa comigo e lhe pergunto o que há. O advogado que contratou fez bom trabalho. José vai para o regime semiaberto na semana do natal. Vai ser solto. Era o que queria, mas, agora, me diz ela: “ele não precisará mais de mim”. Teme que ele volte para o crime, teme que ele não a queira mais. Terá outras opções. Estará livre durante o dia. Vai procurar trabalho e tentar resgatar o tempo perdido. Ele quer passar o natal e o ano novo com ela. Depois de 9 anos, o primeiro natal livre.

            E lembro das mães que atendo e que visitam os filhos nas prisões. E lembro das esposas e do natal, tempo de saídas, pausas em família, liberdades temporárias, tempo de indultos, de perdões e reencontros, vidas novas, vidas antigas se refazendo ou se desfazendo em continuidades de tristezas, culpas e reincidências. Novas despedidas ou novas fugas. Mundo sempre entre grades. Mesmo antes das sentenças, das celas, da segurança máxima. Mundo sempre entre ausências. Mesmo antes do isolamento, do abandono, da vergonha, da culpa, da pena. Mundos que tentam viver o mundo em que vivemos, com estrela, árvore e noite de natal.

            E lembro de tantas prisões que nos impomos, em tempos, horários, obrigações e tarefas que não acreditamos. Mundos que se fingem libertos. Mundos que simulam alegrias e presenças. Mundos solitários, encarcerados. E penso: podemos fugir, podemos não mais voltar, podemos nos presentear com a liberdade de sermos o que queremos ser, sem medo dos julgamentos e sentenças que virão de olhares e palavras: sempre os piores castigos e mágoas.

            Só vou reencontrar Maria no ano que vem e daí vou saber das festas, da liberdade, do amor de José. Vou saber do resultado das ligações clandestinas de celulares ilegais em prisões de segurança máxima que permitem o tráfico, a morte e os amores nem sempre certos, nem sempre abertos, nem sempre livres. E que de um mundo escuro e sem colorido, possa nascer, enfim, uma esperança, um dia e um ano melhor, com medos e incertezas, mas com o afago de quem acredita em nós, apesar dos nossos “crimes”.

            Este tempo de dezembro é tempo como outro, pois todo dia pode ser confraternizado, pode ser festejado como fim de um ciclo, tempo de nova chance. Mais do que pelo nascimento de Jesus, acontecido em outro calendário, vamos brindar também e sem julgamentos, pelas famílias que se refazem em um dia, pelas esposas e mães com seus filhos e esposos presentes, por Maria e José, por nós e pelas chances sempre novas que temos de nos reparar, nos reconstruir, nos libertar, nos recomeçar e amar sem medo.


[Maria Amélia publica na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]

18 novembro 2014

QUANDO UM POETA MORRE [Maria Amélia Medeiros Mano]

QUANDO UM POETA MORRE

                É quarta-feira e saio para mais uma visita domiciliar com a agente comunitária de saúde. Mãe e filha me esperam com bolo de abacaxi com calda de chocolate. A mãe é muito idosa e tem sequela de acidente vascular cerebral. Não consegue se locomover, mas está sempre bem e de bom humor. A filha, Luísa, 50 anos, cuida sozinha da mãe e faz flores para complementar a renda. A mesa tem um arranjo grande de flores feito por ela.  Luísa reza muito e sempre que vamos na casa dela, o que mais pede é um abraço. De tanto cuidar, Luísa pouco se cuida. Abraço é alívio e cuidado. O principal objetivo da nossa visita, sabemos, é o abraço para Luísa.

                É quinta-feira e um poeta morre. Atendo seu João, 65 anos, que gosta de conversar e falar do passado, das coisas de antes. Pergunto o que ele diria a si mesmo aos 20 anos; que conselho daria ao jovem João. Ele me disse que aos 20 não fazia besteiras, não precisava de conselhos. Aos 30 anos, sim. Diria a si mesmo: trabalhe menos e abrace seus filhos.  Afirma que se esforçou muito no trabalho e sempre que chegava em casa, pensava: “amanhã abraço” e quando viu, estavam adultos e fora de casa. O amanhã chega em um piscar de olhos, o tempo passa rápido demais, me diz ele, e temos que fazer as coisas mais importantes hoje, não amanhã.

                O dia segue. Um menino sem mãe e sem pai é atendido por um colega, por um ferimento grande na perna, provocado pela trave em um jogo de futebol. Tia usuária de crack, atrapalhada. Prima e irmã cuidando das vidas confusas, sem tempo. O colega se oferece para leva-lo até o hospital para fazer a sutura e o curativo. Ele que já esteve abrigado em instituição e não quer voltar, se recusa a ir. Sabe que chamarão o conselho tutelar. Os amigos do futebol permanecem junto com ele. Meninos suados e unidos na frente da unidade de saúde e uma bola de futebol.  Jura que virá no dia seguinte. Só 10 anos e tantas decisões.
                É sexta-feira e converso com Ana, 37 anos, triste pelo esposo etilista. Diz que a infelicidade é sina de família. A mãe não é feliz. Ela mesma é feliz por poucos momentos. Faço a mesma pergunta que fiz a seu João. Ana de 37 deve aconselhar a Ana de 20 anos: o que deve dizer? Ana ri e se lembra dos 20 anos. Diz que “fervia” nos bailes do Centro de Tradições Gaúchas no interior, na zona rural. Conta do primeiro baile que foi sem os pais, com a irmã mais nova. As duas vestidas de prenda, a pé pela estrada escura, de mãos dadas quase abraçadas, com medo pelo desafio. Ana diz para irmã que até poderia ter uma alma penada atrás delas e na mesma hora um cavalo relincha e as duas se apavoram e saem correndo segurando as saias longas. Ela ri com olhar leve, lembrando da cena. Não me diz o que diria a si mesma, mas não importa tanto. O que importa é que aquele foi mais um raro momento de felicidade na vida de Ana.
                O dia segue. O menino do ferimento na perna não veio. Tomo um café com dona Dora, que faz a limpeza da unidade. Diz que o que vive hoje, aos 52 anos, é lucro, que já fez tudo na vida e aproveitou bem. O que lhe faltava na vida era a filha caçula ser mãe e isso já aconteceu. Diz que é feliz. Criou 4 filhos, dois são vigilantes, um é motorista e essa filha que se tornou mãe faz um curso técnico de administração. O genro não é bom, mas decidiram que iriam morar juntas sem ele e vivem em um pequeno apartamento junto com o neto recém-nascido. Em 7 anos se tudo der certo, se aposenta e, quem sabe, volta a morar no interior, na terra natal. Gosta de cuidar da limpeza e dos outros e diz que cuida de todos na unidade de saúde quando deixa tudo limpinho e faz seu melhor café. Verdade. Nas minhas viagens, pede pedrinhas. Gosta de envernizar e pintar o nome do lugar de onde veio. Jeitos de viajar.

                Fim do dia, fim da semana. Descanso com olhar no tempo que foi, no tempo que vem, consumido de sonhos, idas e vindas. Termina a semana em que o poeta-passarinho nos deixou. Poeta das pessoas e coisas desimportantes, das pequenas velocidades, da descoberta da insignificância, da profundidade sobre o nada, dos recantos, dos desvãos, da poesia fora da asa. Foi o poeta que quis ser outros, ser muitos porque não se bastava ser um. Carregou água na peneira, encheu vazios com peraltagens e quis ser amado pelos despropósitos. Quis crescer para se tornar criança.  E se tornou estrela do céu, pequena, de olhar com olho apertado e nem chorar, só brilhar o olho em espalhamento de lágrima pelo cristalino da alma.

              Manoel, feito do barro do João de Barro, pássaro que constrói ninho na ponta do bico. Feito do barro que fica entre os dedos dos pés do menino abandonado que corre na lama e cai e se machuca. Barro nos pés dos outros meninos que acolhem. Manoel feito da flor artificial de Luísa e do pequeno sorriso que esconde no abraço que dou. O abraço que o menino sem mãe e sem pai não tem. O abraço que seu João não deu no filho menino e sonha em dar no filho homem. O abraço que as duas irmãs dividem na terra batida da noite escura do primeiro baile. O sorriso da lembrança que produz um instante feliz. O cuidado no simples de limpar uma mesa ou passar um café: dona Dora e suas pedrinhas envernizadas.  O segredo de ser feliz.

             Quando um poeta de barro, de asa e instante morre, o mundo fica mais descolorido. Mas se a gente inspirar a poesia simples do cotidiano, vai ver o barro, o Manoel, o passarinho em cada detalhe desprezado e escondido da vida. Vida essa que se faz de café passado, lembrança, susto, perda, pedrinha, nascimento e principalmente, de abraços. Que abraços sentidos criam asas e asas ajudam a ganhar mundos. Não os mundos grandes vistos de longe, de cima. Mas os mundos pequenos, vistos de pertinho, do lado, de dentro, de casa, de alma, de poesia e dessa lama que insiste em ficar no meio dos pés do menino, esperando o colo, na minha lembrança, esperando que ele venha e que, por instantes, ele se sinta criança, como Ana se sentiu feliz. Poeta, Manoel, que já voa em asa-abraço-poesia, se encontrar o menino sem pai e sem mãe, sopra uma brisa no ouvido dele e faz ele vir na segunda. Por favor!
               
                
[Maria Amélia Medeiros Mano escreve na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]



28 outubro 2014

EU SOU COMO UM ANJO QUE VARRE A CIDADE [Maria Amélia Medeiros Mano]


Eu sou como um anjo que varre a cidade...

Labucci escreveu Caminhar, uma revolução - livrinho pequeno que devorei nas minhas viagens de ônibus de ida e volta ao trabalho. Entendo que o verdadeiro caminhante é como o autor descreve, não caminha para chegar logo, mas para se ter sentidos despertos, para contemplar o mundo encontrado, para se ter experiência de vida. Para os apressados dias de hoje, conforme o livro, caminhar é quase um ato de insubordinação, um ato revolucionário porque caminhar vai contra a velocidade. E a pressa, essa eterna produtora de tensão, de doença, de falta do olhar para a beleza da estrada é a ordem do dia.

O autor defende que as coisas boas e importantes devem ser preparadas, atingidas, alcançadas a pé, para que o tempo passe sua energia, para que as flores se abram como os pensamentos e possamos ver o mover das pétalas, tanto quanto o balanço das palavras e das ideias. Ainda diz que caminhar é um triplo movimento: não ter pressa, acolher o mundo, a estrada e não nos esquecer de nós mesmos no caminho. Sim, estamos presentes em nossos pés, nos fazendo humildes como todo caminhante. E o livro lembra que a palavra humildade tem relação direta com o húmus, a terra...

Passos, rastros... As páginas lidas definem o andarilho, o nômade, o errante, a rua, a estrada, a vereda, as buscas, os ires, os retornos, os detalhes, os riscos, os cansaços, as pausas, os descansos, as perdas, os vazios, as angústias, os encontros, as descobertas de quem opta em ter surpresas, habitar asas e sentir o chão. Assim, penso e tento caminhar sem esquecer de mim, sem esquecer do sol que seca as poças que, depois da chuva, refletem o céu, margeiam meus passos em curva e dança esperançosa e curiosa, buscando o mistério de cada dia.

Saio, na manhã, em mais uma caminhada leve, com destino e hora marcados. Na minha frente um casal de mãos dadas. Ela, com o uniforme azul do SAMU escrito técnica de enfermagem. Ele com um uniforme camuflado que parecia ser de algum batalhão do exército. Ambos uniformizados e, de alguma forma, preparados para uma espécie de guerra. Sim, eles convivem e convivemos todos com a violência cotidiana das ruas que passa por nós nem sempre percebida, às vezes banalizada, mais cruel assim. Mas eles seguem pelas ruas de mãos dadas. 

Observo a insistência do passo a dois, a conversa solta. Torço para que as mãos dadas sejam um antídoto para a desumanização frente ao dia a dia, que o esforço dos dois em permanecerem juntos, seja também expandido e contamine suas ações. Que as ações sejam impregnadas dessa luta pela ternura, apesar dos uniformes duros. Que não sejamos dois seres tão separados, o de casa e o do trabalho, o das mãos dadas e o da palavra de desalento, da atitude que machuca e mata. Que a gente possa ser o melhor e levar o melhor do que somos para os espaços, sejam eles os mais difíceis de serem vividos.

O casal some em uma esquina e sigo esperançosa, caminhando. Penso, ainda, antes da eleição, nos nossos então candidatos a governantes. Na batalha de palavras que trocam e saem, violentas, com mais facilidade que a necessidade de provar o quanto são dignos. Nas redes sociais, a briga continuava, a intolerância em relação ao diferente, ao contrário. No território onde trabalho, a luta pelo poder do tráfico faz vítimas semanais entre os jovens que se vão, entre as mães que sofrem, entre a comunidade que dorme sobressaltada com o ruído das balas na madrugada...

Violências de ontem e hoje. Tempo que passa e passou. Caminho e a eleição termina e a semana começa na busca pela arte e pelo sorriso. Música que anima meu andar, andar. Encontro e me encontro na embolada do poeta-palhaço andarilho que assobia, percorrendo ruas de pedra. Alceu Valença em rima e rota, rumo, tempo em frente e verso, avesso e direito. A beleza nas palavras que, desarrumadas, arrumam as ideias e o coração, porque ditas em canção e caminhada, refazem o andar como um “grito aflito na rua do sossego” de “um anjo que varre a cidade”.

Varrendo a cidade, assobio torcendo pelo casal de farda. Canto esperando por dias menos zangados, menos tristes, mais ternos. Caminho, em revolução e resistência esperançosa, com mais respeito aos errantes que observam os ventos, tormentas e brisas. Sigo, sem pressa, acolhendo o mundo em volta e o mundo em mim. Sei que as pedras do chão tanto quanto a vida, se faz e se sente, na mágica aventura de persistir, de prosseguir, enquanto pés que se descalçam, enquanto mãos que se desarmam, acarinham, semeiam e colhem flores brancas com cheiro de poesia andarilha de paz.

https://www.youtube.com/watch?v=ueiB5NGD7Qk
https://www.youtube.com/watch?v=ArVskTctdfw
https://www.youtube.com/watch?v=Fz2NML0YXPA
https://www.youtube.com/watch?v=dV7K8MVWh4E
https://www.youtube.com/watch?v=7jFxgxtHDGs

[Maria Amélia publica no Rua Balsa das 10 às terças]




07 outubro 2014

QUIMERAS, UTOPIAS, DEVANEIOS E ANDORINHAS [Maria Amélia Medeiros Mano]

QUIMERAS, UTOPIAS, DEVANEIOS E ANDORINHAS

Ai tanta coisa não devia se fazer
Tantas vezes a gente chora
Por deixar seu bem querer
Minha cabocla foi-se embora do sertão
Fez que nem as andorinhas
Foi buscar outro verão.
Breno Ferreira

            Minha mãe cantava canções para nos fazer dormir ou na lida do dia, varrendo a casa. Muitas delas, dizíamos, “não existem!” porque nunca tínhamos ouvido na vida. Assim é que fomos crescendo e entre uma descoberta e outra, uma rádio e outra, fomos aos poucos reconhecendo as músicas “inexistentes”. Uma vez gravei um CD para minha mana com as canções inexistentes da mãe. A “pior delas” era a tal da Andorinha Preta que ela cantava só uma frase repetidas vezes. Lembro da gente rindo e dizendo que era invenção, que não existia música assim, tão tola.
            O mesmo acontecia com o pai, só que com as palavras. Volta e meia ele trazia palavras rebuscadas de um tempo distante. Lembro quando disse “lupanar” com ar de satisfação. Ria com a nossa desconfiança e com nossas buscas constantes ao dicionário. Ficava triunfante quando encontrávamos a palavra exótica que jurávamos não existir. Essa e outras tão estranhas ou mais, ele só usava pra impressionar. Mas algumas, de uso mais restrito à escrita, ele tinha e ainda tem certa afeição e repete com frequência até hoje.
            Pai e mãe. Nenhum dos dois é diverso e parecido em gosto de música e leitura. A mãe gosta de samba de raiz e lê livros espiritualistas, otimistas ou de autoajuda. O pai já é mais romântico, adorador de Roberto Carlos e de romances regionais e crônicas em geral. Leu quase toda a obra de José Lins do Rego e relê Fernando Sabino devagar “para não terminar logo o livro”. Diferentes e donos de músicas e palavras inexistentes, esses dois, um dia, resolveram caminhar juntos e no meio de tantas diferenças, nos fizeram, nos criaram e, de forma engraçada, somos as três irmãs mais diferentes que conheço.
            Mas e as palavras que ficaram! As principais que permanecem e que o pai usa com são tamanho gosto são: quimera, utopia e devaneio... Se a fala pudesse expressar as reticências elas estariam ao fim de cada uma delas Pronuncia todas com tom distante, às vezes, até misterioso. Às vezes melancólico. Às vezes como se estivesse em algum lugar que, tal qual as músicas da mãe, na infância, desconhecemos. E, de alguma forma, como as canções, com os anos, com a vida, as palavras vão se achegando em seus mais profundos significados, aos poucos..
            Quimera é de origem grega e se refere a um ser monstruoso, mistura de homem e animal que solta fogo pelas narinas. Figurativamente, em linguagem popular, significa qualquer fantasia, algo que é produto de imaginação, sonho. Utopia traz a ideia da civilização ideal, fictícia, um lugar inexistente onde há bondade e igualdade, lugar de sonho. Devaneio é fantasia visionária, o sonho do homem acordado. Assim, essas três palavras que ele usa com tamanho ar de importância são todas parentas e de uma forma ou de outra podem ser usadas com a mesma ideia: sonho.
            O pai cria histórias para dormir. Às vezes se anima tanto com o que inventa que chega a querer dormir logo para seguir em mais um capítulo da sua aventura. Às vezes me diz o que imagina e de forma perigosa, em muitas ocasiões também, quase chega a planejar e esperar pelo que sonha à noite, sem prestar atenção em muitos elementos reais que juntos dizem do absurdo que é buscar esse caminho. Enquanto isso, a mãe gosta de cochilar na frente da televisão e quando acorda, é como se dia fosse e segue puxando conversa e contando coisas.
            A mãe ainda canta Andorinha Preta. O pai segue com suas quimeras e utopias e suas palavras de devaneios. Uma manhã perguntei a ele qual era a história que estava inventando agora. Ele me respondeu imediatamente, sem vacilar: uma casa na árvore. Disse que segue noites e noites construindo, mas não consegue resolver a questão do vento que desestabiliza e balança “sua” morada. Diz que chega nesse ponto e acaba dormindo e, na noite seguinte, persegue a mesma ideia e a mesma pergunta.
            Então, sorrio e me alegro de ser feita de matérias tão diversas, coloridas, sonoras, sentidas, cantadas e sonhadas. Andarilha como meu pai, cumpro algumas migrações tal qual a andorinha que fugiu da gaiola na música tola mais bela. Faço meu ninho pequeno e protegido da chuva e nem tenho a pretensão de cantar tão terno quanto a mãe. Mas em voos próximos e distantes, em aventuras e ventos de verão, também pouso levemente nos galhos de uma árvore frondosa e de aroma doce onde lá em cima, no galho mais forte, vejo um menino, vitorioso, terminando de construir uma casa que não balança com o vento.

https://www.youtube.com/watch?v=DN6N-HzB5Sc

30 setembro 2014

QUANDO HÁ CIGARRA [Maria Amélia Medeiros Mano]


QUANDO HÁ CIGARRA

Cigarra canta pra se libertar
Eu canto pra não mais chorar
Esquecer a dor de viver
Descansar no zoinho docê
Naruna Costa

            Era uma escola de música antiga no interior do nordeste do Brasil. Prédio doado. Janelas sempre abertas. Cadernos comuns de espiral com riscos, notas, palavras, desenhos e técnicas. Professores voluntários. Instrumentos de baixo custo ou doados. Alunos e alunas, crianças carentes que não poderiam pagar por aulas de música. Mas não só...

            Seu José* tem pouco mais de 60 anos. É Maestro Zé. Foi da primeira turma da faculdade de música do estado. É aposentado e há 20 anos, passa seus dias na escola de música. Fala de um aluno brilhante que começou ali, junto com outras crianças pobres e, hoje, está em uma orquestra sinfônica. Orgulho de todos. Mostra os encartes de notícias nos jornais falando da escola e toca Carinhoso de Pixinguinha.

            Maria tem pouco mais de 10 anos. Toca flauta doce e, ao ser convidada, sem timidez, com orgulho, toca o comecinho de Asa Branca de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Maestro Zé me pede para eu observar a agilidade dos pequenos dedos. Diz que tal habilidade é disciplina, é esforço, é arte.

            Seu João tem pouco mais de 50 anos. Sofreu um acidente vascular cerebral há uns 5 anos e como sequela maior: a perda da memória. Era músico. Esqueceu seu nome e o saber ler partituras, bem como a habilidade de tocar seu instrumento: o violão. Com o apoio de amigos e familiares, foi lembrando, voltando. Na escola de música, conseguiu um espaço para reaprender a música lida, a música tocada.

            Seu Tonho tem pouco mais de 80 anos. Não sabem de onde veio, mas sabem que ele não tem paradeiro. Ele não lembra de muita coisa. Não fala muito. Diz-se até que não tem família e vive só. Gosta de vir para a escola e mexer na gaita tentando ler a partitura do método Mário Mascarenhas, a cartilha dos gaiteiros iniciantes. Maestro Zé diz que ele abre e fecha o fole e fica feliz porque entende que está tocando uma música. Passa a manhã assim e tem até nome artístico: Tonho do Acordeon.

            Lugar de aprender música. Lugar de acolher quem ainda tem tempo e desejo de ensinar: magia no olhar quando fala do ofício, dos alunos... Lugar de acolher sonhos de jovens, resgates dos que querem achar novo caminho, carinho aos que precisam de um sentido, a ideia de tirar a música da vida, lida em partitura da alma.

            Lugar de cuidar assim deve ser. Maestro Zé nem percebe. É cuidador e quem sabe, na simplicidade da flauta doce e na beleza do olhar de menino, cura a dor do coração, ajuda a erguer o olhar para um novo ciclo, diminui a lágrima do abandono, faz florescer esperança em asas brancas e carinhosas, produz cigarras em música que abre as janelas, atravessa as ruas e ladeiras e faz as formiguinhas caminhantes, trabalhadores, operários, vendedores e turistas, dançarem e serem mais felizes.

            Lugar de cuidar assim deve ser. Maestro Zé nem percebe. Lugar que contamina de esperança, que espalha canção, que injeta alegria. Lugar de chegar e sentar ou ficar de pé, requebrar. Lugar de se reinventar e de inventar uma nova nota. Lugar em que se cura da estrada, se liberta, lugar de vida cantada, encantada, reencantada.

            E começa a festa! Estrelando: Maestro Zé e Maria na flauta doce, João no violão, Tonho do Acordeon na gaita e, na percussão, o bater dos nossos corações. Então, a música vai começar! A hora de cuidar da vida é de um jeito assim que a gente nem pensa, nem percebe, que nem Maestro Zé. É de um jeito assim que a gente só olha e sente vontade grande de estar junto e comemorar a descoberta emocionada de um amor sem partitura, de um carinho sem nota musical. Vamos dançar?

*nomes modificados



23 setembro 2014

TRILHOS [Maria Amélia Medeiros Mano]


Trilhos

Para Cecília, Tia Gládis e Tio Paulo

E assim, chegar e partir
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida

Milton Nascimento

            Trilhamos. Caminhamos fora e dentro de trilhos, entre e com as utopias cotidianas. Passos fora das nossas casas, das nossas lidas e vidas com os nossos familiares, amigos, amores... Levamos da partilha, da história nossa, nossos saberes, nossos ideais e sonhos que nos tornam mais inteiros. O que produzimos de inteireza nas nossas cozinhas, quintais e jardins é semeadura da rua, das andanças próximas e distantes dos portões das nossas infâncias.
            Somos um pouco meninos desbravando caminhos, puxando seus caminhõezinhos de madeira, carregados de vontades, curiosidades e medos. Brincadeira da vida por subidas, descidas, atalhos, pontes e muros. Obstáculos e belas paisagens.
            Movimento de andar, chegar e partir de casa, de fora, e voltar, também de dentro de nós. Viagem eterna. Também trazemos presentes nas malas de retorno e novas paisagens nos ajudam a re-compor o que fomos, o que somos, o que nos importa. Reencontros com o que é nosso e a cada retorno, uma cor diferente, porque somos outros. Assim é que nos damos conta de que as grandes descobertas estão sempre próximas, do nosso lado.
            Passei parte da infância ouvindo sobre a infância e juventude da minha mãe, Cecília, filha de ferroviário. Ela ainda conta com olhar de carinho e aventura, a vida de uma menina que cresceu entre trens, trilhos, estações, partidas, chegadas e esperas. Lugares distantes que tinham como a maior atração, o trem. Nada disso era novidade até que eu me envolvesse com um projeto de memória de uma comunidade. Apurei os sentidos e mudei o olhar.
            Assim, em um dia de primavera, convidei a mãe para retornar a uma casa de infância que sempre citava, na beira dos trilhos. Mais de 50 anos depois e estávamos nas ruas movimentadas de uma cidade nova. Ela reconheceu pouco dos lugares de menina e moça: a possível casa de seu primeiro namorado, o cinema em que todos da família iam, barulhentos e animados. Mas o principal era retornar à estação de trem. E voltamos...
            A estação se transformou em museu com reformas e modificações e, próximo à plataforma, mantiveram um pedaço de trilho de trem que, solto no solo, acompanhava o prédio, somente. No entanto, o entorno estava em péssimas condições. Havia ruínas de prédios antigos. Algumas casas não existiam mais. A casa que foi da minha mãe, seus irmãos e meus avós, se transformou em parede, somente, envolvendo um matagal. Na presumível entrada, solto, o pequeno portão de ferro.
            Observei os passos dela nas ruínas da casa e na plataforma vazia da estação. O trilho que ia do nada a lugar nenhum e o portão da casa que se abria para o relento não a impediram de revisitar as brincadeiras, as festas de esperas e chegadas. Sorriu, lembrando dos dois viralatas da família que correram atrás de um padre, com batina e tudo. “Isso tinha tanta vida...” me disse a mãe.
            Então, penso nas estações de trilhos fantasmas e nos portões soltos no ar. Penso na forma displicente com que se lida com os lugares de vida comum, simples. Lugares que se tornam ruína, seja pelo obsoleto, seja pelo fracasso, seja pela tragédia ou pela ganância de outros movimentos que expulsam. Lugares de “tanta vida” não devem ser abandonados. Será que as casas de vida vivida também não são memória, patrimônio, tanto quanto a estação de trem?
            Recentemente fui a uma exposição em que se mostravam os pedacinhos do reboco da casa de infância. Cada qual com uma cor, eram identificados pela artista: quarto, sala, alpendre... Soltos assim, já eram especiais. Imaginei a história que cada um desses pedacinhos desbotados contava. Daí, sim, viraram mágicos. Mas esse tempo que desbota as paredes, também ressignifica e redimensiona as experiências.
            Tempos depois, eu e a mãe, fomos, juntas, a um show do Milton Nascimento. Ela levantou da cadeira ao ouvir “encontros e despedidas”. Cantou a canção. Um trem antigo de menina apareceu soltando fumaça e apitando. Moças arrumadas esperando. Meninos barulhentos brincando. Surpresa e reencontro sempre. Porque em corações mais ternos, não há ruínas, portões soltos, trilhos sem sentido ou paredes solitárias.
            Pedacinhos desbotados de história sempre renascem. Ganham cores fortes e vivas. Serão sempre mágicos e contarão aventuras de um tempo que nunca vira abandono e tristeza. Tempo sempre contado aos pulos entre trilhos, amarelinhas, cordas, canções e cães viralatas. São as lições dos meus, de quem amo, que sempre me convidam a aprender, a sorrir e a voltar pra casa.










16 setembro 2014

DO OLHAR [Maria Amélia Medeiros Mano]

DO OLHAR

                Consulto há mais de 10 anos com a mesma pessoa que me mede os defeitos da retina, troca as lentes e me faz ver melhor. Cuidadora dos meus olhares, uma vez me mandou uma lente de contato pelo correio, a meu pedido, pois a tinha perdido em uma trilha em Parati, buscando a praia deserta e de águas frias. Ela entendeu minha necessidade de descobrir, minha certa irresponsabilidade, meu descuido... E não deixou de me brindar com o melhor olhar possível.
                Há dois anos, ela, a menina dos meus olhos, me disse que estava doente, muito doente. Sorriu e falou que, apesar das poucas chances, ia lutar, ia seguir. No ano seguinte, estremeço quando ligo para marcar a consulta. Mas fico feliz em saber que ela continuava lá, firme. Neste ano, o mesmo. Entro no consultório já feliz pela presença dela que tanto entende da minha miopia, do meu astigmatismo e agora, da vida.
                Ela continua. Segue, como prometeu fazer pela família, por si mesma e pelos seus sonhos. Sorri, radiante, e diz que vai passar alguns meses fora, estudando, realizando um sonho de anos. Família vai junto. Sim, tem a chance da doença voltar, mas ela insiste em dizer que tem que ter foco na vida, nos planos, nos sonhos e o que tiver de vir virá. E saio com a certeza de que a verei ano que vem, quando minha lente cansar, quando meus olhos pedirem.
                E o dia segue. O tempo segue. O taxista que me leva ao destino, no fim da tarde, ajusta a lente do celular para registrar um pôr de sol. Mostra todas as imagens que já fez de milhares de sóis se pondo, em cada lugar da cidade onde estava, de passagem, trabalhando, levando pessoas por caminhos alheios. Mas onde dava para ver o sol se pondo, ele insistia em ver, registrar. Olhares passageiros.
                Maneno, o ceramista, constrói, do barro, com técnica e sensibilidade as imagens de uma terra distante, de um tempo de pais e avós que, de mão em mão, de geração em geração, deram a ele o gosto pela arte do fundo da terra, da lama. E da alma da terra, a peça cheia de graça que ele desenha com o traço predileto, a figura predileta: olhos. Não sabe bem porque, mas gosta de desenhar olhos, olhares. Olhares de barro escuro, cor de pele, cor de origem.
                É festa no palco que mostra a cultura de povos remanescentes de quilombos. Ao tocar o tambor que foi do avô, o percussionista negro fecha os olhos. Deve, assim, sentir mais, olhar mais profundo, olhar o som que vem de longe, de seus ancestrais, de suas lutas e dores. A plateia aplaude e os olhos do homem brilham em um reconhecimento de mil senzalas. Olhar liberto, olhar orgulhoso, olhar que canta.
                O olhar e os jeitos de olhar e de fechar os olhos seguiram me inspirando por toda a semana. Feliz por poder prestar mais atenção em ato tão simples e mágico. Feliz por me lembrar das maneiras em que os olhos e olhares chegaram até minha alma ou o que a alma me fez encontrar, reencontrar. Feliz, porque não entrei em filosofias ou em explicações, mas apenas abri as janelas e deixei que o olhar exercesse seu livre movimento de seguir o arco íris do fim do dia chuvoso.
                Segue mais um tempo de dia que chega e vai embora. Tempo de partida. Olhares que se encontram e se despedem. Segue a noite e o cansaço que fecha os olhos para o sonho liberto em muitos lugares nunca visitados. Olhar que viaja, que passa, que fotografa o sol se pondo, que se desenha no barro, que se fecha no barulho do tambor, se perde, se encontra e se encanta do dia chuvoso e pede mais tempo à vida.
                Que haja tempo para nunca entender o mistério de seguir buscando o olhar mais terno, abraço macio do fundo do coração. Olhar que fala sem palavras, leva e traz imagens e escolhe as melhores cores para se enfeitar. Olhar que fica, quando tudo sai, quando a luz se apaga, quando pensamos que já se foi e ele te surpreende como carinho que abriga, colcha que cobre, estrela que vela o sono, cafuné, ninho que protege a alma e o sonho para sonhar melhor.
https://www.youtube.com/watch?v=H35nwDXtvjY
[Maria Amélia Mano pública na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]


18 agosto 2014

NOVA PALAVRA (María Amelia Mano)

NOVA PALAVRA

Meu amor
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver
Oswaldo Montenegro
       Negra, Joana nasceu em família humilde e cedo saiu de casa. Teve paixão grande, casou cedo, criou 5 filhos em casa quase caindo. Casa de papelão e lata. Aguentou a bebida e a violência do primeiro marido. Passou pela fome e pelo abandono. Voltou a amar e, aos poucos, melhorou a casa, a vida e foi removida da vila por conta das obras da copa. 
       Já na casa nova, Joana perdeu um filho para o tráfico e sua família, ela própria, teve que sair da casa, da comunidade. Teve noites longas, trocou de casa, trocou de vila. Passou dias sem sentido para viver a não ser se proteger e proteger os filhos. Conseguiu se adaptar a um novo lugar, novos vizinhos e mesmo distante, queria continuar a ser atendida por mim, na unidade de saúde.
       Lembro de quando chegou em consulta, após a perda do filho: “doutora, agora sou mãe de um filho a menos...”. Lembro de falar de uma dor que não sarava. Lembro de quando falou do medo, da necessidade de sair e seguir. Senti falta quando Joana se ausentou e fiquei feliz quando voltou a consultar, a falar de si e dos rumos. 
       Voltou a sorrir, aos poucos e, um dia, Joana não perdeu a oportunidade de resgatar um sonho antigo: estudar. Então, ela voltou a estudar e a cada consulta, me contava de um conhecimento novo, com o olhar de criança que aprende a ler. Com a surpresa de quem descobre um mundo novo.
       Um dia Joana chega iluminada, bem enfeitada, vestida de vermelho. Diz que aprendeu uma palavra nova que gostou muito: resiliência. Pergunto o que entendeu da nova palavra. Ela me responde que resiliência é a capacidade de fazer uma coisa boa de uma coisa ruim. E sorri... Sorrimos e, ao final, como de costume, nos despedimos, marcando um novo encontro.
       Penso na palavra resiliência, conceito da física: propriedade de acumular energia a ponto de não romper sob estresse. Tem a ver com elasticidade, plasticidade. Na ecologia, é definida como capacidade de recuperação de um ambiente frente a um impacto ambiental. No mundo dos negócios, é qualidade de quem retorna ao equilíbrio emocional após sofrer pressão.
       Na psicologia é a capacidade de superar obstáculos, resistir às situações adversas, mantendo-se firme. Passando para o coletivo, é a capacidade de comunidades e populações de seguirem seus caminhos, superando traumas, catástrofes. Mas para mim, a partir daquela tarde, fica a compreensão da Joana, porque ela é aprendiz e professora de vida.
       Para Joana, ser resiliente é mais que sobreviver, superar. Para ela, ser resiliente é fazer de uma coisa ruim, uma coisa boa. Assim, não basta se erguer do chão e seguir, é preciso dar um salto. Não basta se olhar novamente ao espelho, é preciso se tornar mais bela. Não basta parar de chorar, voltar a sorrir, é preciso apostar em uma alegria maior. Não basta recuperar a esperança, é preciso apostar em um sonho novo.
       Aprendo com Joana, que a definição das palavras não está no dicionário, mas em outras linhas que cada vida percorre. A palavra só tem significado quando conta a nossa história. A nossa história ganha nome quando a palavra tem sentido. Assim, cada palavra pode ser nossa e é única. Cada palavra é uma invenção nova, um jeito novo de nomear o vivido. E pode mudar, quando muda o passo, quando muda o tempo.
       Para amantes ausentes, a palavra saudade tem nome, cheiro, toque e sabor. Sonhar pode ser a experiência ou o desejo, nas definições, mas é rosto de criança, jardim florido ou encontro de irmãos distantes. Tudo depende do dia e do sonho e depende de quem sonha. Assim, para mim, em 20 minutos de um fim de tarde de agosto, ternura é o sorriso de Joana, esperança é o olhar de Joana e Joana é essa escolha, essa aposta, essa vida que vale a pena escutar e ter a honra de partilhar.  

 
 [Maria Amélia Mano pública na Rua Balsa das 10 às tercas]

12 agosto 2014

Mural de Versos [maria Amélia Medeiros Mano]


Mural de Versos

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
Leminski

                A semana que passou parece que teve 14 dias e as horas dobradas pesavam na alma e nos ombros: o peso de um mundo inteiro. Peso de pacientes difíceis, de processos injustos, de inocências perdidas, decepções e um certo desalento por alguns esforços não serem reconhecidos, algumas esperanças frustradas e alguns sonhos de mudar mundo não serem realizados.
            Desço do ônibus e saio, como de costume, caminhando pelas ruas da comunidade. São quase 10 quadras que caminho até a unidade de saúde que trabalho e sei que minha função já começou antes mesmo de bater o cartão. Passo pela frente da casa da Lúcia e ela me grita: “tu passa sempre de cabeça baixa, né!?”. Entendo como uma brincadeira, como se eu não quisesse olhar para os lados, para a casa dela. E Lúcia continua: “Amanhã eu vou te ver!”.
            Chego na unidade e na minha salinha. Fiz um mural de fotos de algumas crianças em que fiz o pré-natal. Notei, certa vez, que estar no mural era, de alguma forma, motivo de disputa e que as mães comentavam quem estava, quem não estava. No começo eu batia as fotos. Depois, espontaneamente, elas me traziam para eu incluir ou atualizar as antigas. Isso sem falar dos convites de aniversários de 1 ano ou os outros filhos que “são também lindos”.
            Ainda, uma vez uma mãe em que fiz o pré-natal do bebê, apontou para uma foto e me disse: “aquele pé deu até briga!” E quando eu perguntei por que, ela me disse que uma outra mãe que também fiz o pré-natal da filha disse a ela que aquele pé no mural da sala da doutora era o pé da filha, sendo que a que me falava sabia que era o pé da sua filha e não da outra. Confusões de pé a parte, revelei quem era a “Cinderela” para ambas de forma delicada para não magoar. Aprendi que é muito especial ter algo pequeno do que se orgulhar, algo delicado que mais alguém além de nós, dá importância.

            Mas voltando...

            Acompanhei Lúcia por 6 meses em um tratamento para tuberculose. Algo difícil para uma paciente etilista, com hepatite C e uma ansiedade que só alivia com um cigarro de maconha. Brigamos e brincamos muito. Quando as coisas não melhoravam, iniciei uma outra investigação que terminou em um diagnóstico de linfoma. Vi Lúcia perder e ganhar os cabelos. Também acompanhei quando recaiu, quando quis desistir, quando persistiu e quando fugiu com um namorado antigo que reapareceu. Quando começou a se pintar e se enfeitar, de novo.
            Fiz o pré-natal da filha da Lúcia. Ana, menina mãe de 17 anos que enfrentou a gestação complicada e a falta da mãe, doente e atrapalhada, a violência do companheiro usuário de crack, a falta de comida na mesa, o cansaço do trabalho braçal. E acompanhei toda a gestação de Ana até a chegada de Maria. Maria, menininha de olhos bem pretos, duas ameixinhas brilhantes e sorridentes. Xodó de Lúcia que interfere na alimentação e nos mimos como toda avó.
            Ana passou por um período difícil em que era agressiva com Maria e se sentia culpada. Não queria gritar. Chorava com a criança que berrava no peito. E quando menos esperamos, no meio da tristeza e da exaustão, ela olhou com olhar de mãe e menina, admirou a pequena Maria e pediu que eu trouxesse máquina para bater fotos para colocar no meu mural. Entendi, de novo, a importância do mural. O lugar de se reconhecer e de reconhecer o filho, de mostrar, de deixar de ser menos anônimo. Lugar de assumir, de pertencer.
            E em um fim de dia exaustivo, na semana de horas duplas, entram na minha salinha, Lúcia, Ana e Maria. Lúcia com suas dúvidas em relação aos exames feitos pela oncologia: “não entendo o que eles dizem”. Ana me pedindo um atestado porque machucou o punho no trabalho de doméstica. Maria só nos observando com seu olharzinho. Já calminha, com a melhor roupinha, passando, acarinhada, entre os dois colos.
            E Lúcia volta de novo com a brincadeira da cabeça baixa. Ana, então, pergunta: “Por que que a doutora anda de cabeça baixa?”. Na verdade, nem tinha percebido e devolvi a pergunta: “E eu ando de cabeça baixa?”. As duas respondem que sim em coro. E Ana, completa: “Não faz isso não! Anda de cabeça erguida!” E Lúcia termina, dizendo: “ela tá é ali, caminhando e pensando na vida...”. Fico surpreendida com a atenção, as ideias e o conselho. Sorrio e olho para elas entre feliz e grata e lhes digo que vou prestar mais atenção e vou procurar andar de cabeça erguida.

            Caminhar é lição de dias, de trajetos, de histórias. Penso no pé da menininha que vi o coração bater quando nem a conhecia e penso que ele me protege os passos, em um mural que humaniza minha sala, que enfeita minhas tardes cheias, que torna cada sorriso, cada carinha um verso de um grande poema chamado vida. A vida que insisto em ser parte, em ser parceira ou, ainda, comparsa, como um dia Lúcia me diz: “tu virou minha comparsa”, como quem vira cúmplice do grande crime que é resistir, acreditar.
            Se olho para o chão, Lúcia, Ana e Maria e o pezinho me lembram que devo erguer o rosto, não por orgulho, por prepotência, mas por dignidade. A mesma que me faz baixar os olhos e perder o sono, a mesma que me faz insistir ou desistir, mas acima de tudo, existir. A mesma que me faz comparsa: criminosa julgada e condenada à liberdade de expressar sua indignação, sua crença, sua dúvida e seu sempre desejo de fidelidade ao que considera justo. Sem álibi, sou conivente e membro de quadrilha cujos parceiros disputam de forma terna e humilde um lugarzinho visível no mural de versos.
            E que esse poema seja de todos os pezinhos e todas as pequenas revoluções de todas as caminhadas, foragidas, libertas, sonhadoras e esperançosas. Que nossos esconderijos sejam as ruas e que elas estejam pintadas com o humor da Lúcia, a força da Ana e o brilho dos olhos curiosos da pequena Maria, descobrindo o mundo, aprendendo a ganhar, a perder e daqui a um tempinho, a caminhar.

[Maria Amélia Mano pública na Rua Balsa das 10 às terças feiras]


04 agosto 2014

COM - PASSO [Maria Amelia Mano]


O vio
lento
Des
caso
O sel
vagem
Aban
dono
Mastigue
Des
figure
Des
fie
Trans
forme
Incendeie
Fogo
Fagulha
Cinza
Vento
Poeira
Chão
Passo
Menino
Moreno
Trabalha
De dia
De noite
Sonha
Pintar
Infinito
Mundo
Esperança
Alma
Renasce
Luar
Sorrindo
Dançando
Ciranda
Cantiga
Voar
Olhar
Ternura
Pra mim
Que ainda choro sem saber por que







[Maria Amélia Medeiros Mano publica na Rua Balsa das 10 às tercas]

22 julho 2014

JUDITE [Maria Amelia Medeiros Mano]





Eu estou sempre a querer que deus exista. Devia existir nem que apenas para isto. Um deus com uma missão precisa. (...)
A de nos permitir levar um carinho a quem amamos. Porque o amor sem anúncio de retorno torna-se o mais difícil dos amores. Mas é amor.
Vale sempre a pena e é, em último caso, o que justifica tudo.
valter hugo mãe

            Vou chamar de Judite, pois este é o nome da mãe que perde o filho no texto do valter hugo mãe. Sim, letras minúsculas, como ele prefere, como mesmo nomeia deus. Não por falta de respeito. Mas por liberdade ortográfica, por fluidez da escrita, por simplicidade, pela utopia da democracia das palavras (todas devem ser iguais...) ou simplesmente porque “as pessoas não falam por maiúsculas”. Mãe, sobrenome, ele escolheu, pela ideia de gerar, de parir um encontro de palavras que compõe uma história, um verso, mesmo sabendo que nada se compara à experiência da maternidade.
            Também valter hugo teve irmão morto e por assim dizer, tem uma mãe que perdeu um filho. Atendo a mães que perderam seus filhos, na guerra cotidiana da violência urbana. Tenho, na família, mães que perderam filhos muito jovens. Li o texto após ter feito uma visita a uma mãe que perdeu dois dos três filhos, a que chamarei Judite. Foi a versão mais verdadeira e humana do que sinto. A dor na alma e no coração completamente impossível de descrever é de alguma forma, nesse texto, desenhada e colorida com alguma tinta encantada que em vez de fazer chorar, faz sorrir.
            E volto a Judite que vi, pela primeira vez, há cerca de dez anos. Ela já trazia a perda de um filho como marca. Vinha pelas dores, pelos cuidados com as doenças da velhice, sempre acompanhada pelo companheiro de vida. Com a dificuldade em vir na unidade de saúde, eu visitava o casal que sempre chamava “os meus velhinhos”. E ela sempre falava no plural: “a doutora mora no nosso coração e não paga aluguel”. Assim, pelo vínculo, essas visitas se seguiram e se seguem até hoje, mesmo com a minha mudança de trabalho, me desvinculando da instituição que atendia dona Judite e o marido.
            Nesse meio tempo, dona Judite perdeu outro filho e há dois meses, o companheiro. A cada perda, que também coincide com alguma perda física ou com alguma dor nova, ela se reinventa e, de forma digna, mantém o brilho e a doçura nos olhos verdes, a alegria do vermelho que traz sempre nas roupas. Cor predileta, símbolo do time que o esposo torceu a vida inteira, o Internacional. A cada passo pequeno dela, minha admiração, meu respeito e meu desejo de aprender ao acariciar seus cabelos brancos.
            Valter diz que o rosto de Judite nos é sempre familiar. Há sempre Judites nas famílias. Há mulheres que ele entende, para quem as conhece, parece, foram escolhidas para a dor sobre-humana, para a tristeza impossível, para a ausência sem cura e que, portanto, são vistas como sagradas. Esse sagrado é o que as aproxima, o que as identifica, o que as faz se parecerem. No entanto, ele afirma que é preciso, urgentemente, que reconheçamos o direito delas de serem normais: risonhas, cuidadosas, vaidosas, gulosas, enfeitadas e esperançosas...
            Mas é com frequência que me pego em franca reverência silenciosa, seja quando arrumo sua mesa para o café, seja quando sento ao seu lado e olho fotos antigas, seja quando escuto suas histórias, seja quando ela, agora, se corrige, falando no singular o que antes falava no plural: “a doutora mora no meu coração e não paga aluguel”. Porque o mundo das pessoas sagradas é esse dos que fazem ninho e espaço de sobra no coração para abraços, doces e sorrisos francos. É esse mundo que perde, mas oferta de si. Perde, mas celebra a vida pelos momentos leves que pode acarinhar.
            Há uma celebração não só da própria vida vivida, mas da vida que se foi com o outro e da vida do outro que se foi. No texto, valter hugo entende que se lembrar é uma forma de presença, uma forma de sentir, é uma forma de ter, uma forma de dar vida. Vale a pena resistir à dor, trazer a alegria de volta. Porque essa alegria ainda que pareça, não é esquecimento, mas é o caminho que conseguimos percorrer a partir de lembrança, saudade, presença e ausência. Sorrir ao lembrar é celebrar a si mesmo, é homenagear quem partiu, mantê-lo vivo.
            E lembro de minha mãe contar da recente reunião de três mães da família para celebrar o aniversário de uma delas. Também chamarei esta aniversariante de Judite... Elas sentaram e viraram a noite contando histórias, piadas, lembrando e rindo. Rindo das festas, das brincadeiras, das frases e das presenças. Celebraram a si mesmas e celebraram a sempre presença dos que tiveram junto. Festejaram minha avó e a fizeram viva e se o deus de valter hugo mãe existe, acarinharam minha avó, com o amor mais exigente e este sim, sagrado.
            Assim, na saída, dona Judite sempre insiste em me deixar na esquina do seu prédio. Vamos de braços dados. Segura uma cadelinha branca que ela acaricia tal qual arruma seus cabelos de cor igual. Nos despedimos e após alguns passos, olho para trás. Ela parece confusa e toma o rumo contrário. Retorno. Ela me diz, sem jeito, que quer fazer outro caminho. Finjo que acredito e oriento que é melhor voltar pelo caminho mais curto. Ela sorri, consente e volta por onde veio. Nos despedimos novamente. Fico cuidando dona Judite indo para casa, se afastando até virar um pontinho vermelho, virando a esquina, onde está a portaria do prédio.
            Desta vez, dei a ela um lenço cinza claro com pássaros coloridos, de tons suaves, para colocar no pescoço. Quando a vi, de longe, imaginei meu presente na distância. Os pássaros delicados com as cores e tons da sua pele, do seu cabelo e da sua alma cor de rosa. Imaginei, por segundos, que esses pássaros poderiam sair, poderiam voar com ela, na leveza dos passos, do olhar. Diferente do que se pensa, eles, os pássaros aprenderiam com ela, como sempre aprendo. Ela os ensinaria a voar, como me ensina a viver, a celebrar e a ter certeza de que valeu e vale a pena.

http://www.publico.pt/portugal/noticia/judite-1662321

[Maria Amelia Mano publica na Rua Balsa das 10 às terças]




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