14 janeiro 2014

Ninguém compreenderia um samba naquela hora...

Morro da Cruz

Ele nasceu no morro
Não sabe nem em que data


Até pensava que a lua
Pendurada no céu
Fosse um pandeiro de prata
Túlio Piva

Minha mãe, Cecília, cantava essa musiquinha com sua voz de fazer dormir. Mas cantava também, enquanto costurava e enquanto fazia a comida. Muitas cantigas eram pérolas da MPB que conheci, primeiro, pela voz dela. Costumávamos dizer que ela inventava e que as músicas não existiam. Fomos crescendo e, pouco a pouco descobrindo as músicas nas vozes de outros cantores. As músicas que cantava para "ninar" existem e são tantas que já pensei em fazer uma coletânea e dar de presente para ela e para minhas irmãs.

Esse sambinha, Pandeiro de Prata, muito tempo depois, ouvi pelas vozes inconfundíveis dos Demônios da Garoa. O compositor, Tulio Piva, era gaúcho, de Santiago do Boqueirão, município missioneiro da região do Planalto, pertinho de Santa MariaVeio para Porto Alegre onde foi farmacêutico-prático na Drogaria Piva na Rua dos Andradas (a Rua da Praia) com Dr. Flores que, na época,se tornou ponto de encontro da boemia de Porto Alegre. Compôs músicas para Elza Soares, Luís Vieira, Noite Ilustrada e Elis Regina.



Tinha o Bar Pandeiro de Prata na Cidade Baixa, bairro boêmio onde vivoHoje, em sua homenagem, existe o Teatro de Câmara Túlio Piva, lugarzinho pequeno e acolhedor pertinho da minha casa, na Rua da República e onde assisti bons espetáculos. Sem vaidade e de alma interiorana, Túlio não foi para Rio ou São Paulo. Preferia a vida simples entre os bares da Cidade Baixa e o salão de beleza da esposa, na Duque de Caxias. Mais um personagem da minha cidade, do meu bairro, que, por essas coisas da vida e da meninice, conheci pelas cantorias da Dona Cecília.
E falando em meninice, voltamos à canção. Voltamos ao menino que nasceu no morroVoltamos ao morro, os muitos morros de Porto Alegre. Morro da Cruz, Morro da Polícia, Morro Santa Tereza, Morro Maria da Conceição ou da Maria Degolada... O último, trabalhei por mais de 3 anos, entre a vulnerabilidade, a violência do tráfico, o descaso do poder público e as muitas histórias lindas que vi e ouvi. Tanto que escrevi um capítulo de livro sobre as histórias, as pessoas. Não à toa, o nome do capítulo é Ensaio sobre a Gratidão, porque só posso ser grata por tudo que tive a oportunidade de aprender, não sem sofrimento, não sem erros ou equívocos. E continuo, hoje, visitando esse morro e essas histórias.
A escassez de profissionais de saúde, a grande demanda, a vulnerabilidade e carência da comunidade bem como a falta de planejamento faziam com que existisse na Unidade de Saúde Pequena Casa da Criança, onde trabalhava, na Maria Degolada, um fato revoltante: a venda de fichas para consultas médicas e odontológicas. Víamos e sabíamos quem eram os detentores desse "negócio" que se aproveitavam das formas equivocadas de se organizar um serviço de saúde em termos de número de profissionais adequados a uma determinada população, considerando, ainda, o contexto social. E todos da equipe, impotentes, sentiam até raiva dessas pessoas e dessa prática.
Uma tarde, a enfermeira chega com ar de susto e me avisa: "adivinha quem vem consultar contigo, hoje?". E, sim, era ele, um dos "marginais" que vendia fichas para os velhinhos na fila. Possivelmente não conseguiu vender essa, me explica a enfermeira e vem pra consultar. Deinício, fui tomada por um desconforto. Mas logo me dispus a escutar em tudo e tentar entender a demanda dele.Vou chamá-lo de Wilson, por causa do Simonal. Já que começamos falando de samba. Já que comecei falando das músicas que minha mãe cantava e Simonal estava sempre nas paradas!
Até para a queixa e para falar da dor precisamos de um preparo. Dizer o que mais incomoda, o que mais dói. E Wilson não estava preparado. Não sabia direito do que se queixar, sobre que mal estar deveria falar. Apenas sorriu, disse que sentia uma dor aqui, outra ali, uma náusea em algum dia, talvez febre, fraqueza eventual, nada específico. Mas, como de costume, tentei investigar. Em algum ponto disse que queria me conhecer e que eu valia muito "na pedra". Explica que a calçada da unidade tem uns desenhos na pedra – cimento – que são quadros e que cada um deles era um lugar na fila. A coisa era organizada. Falava com muita tranquilidade de preços.
Disse que colocava o colchão de madrugada na calçada e ia demarcando espaços. Ainda escuro, às vezes, frio e com chuva. Perguntei se não tinha medo. Ele deu uma risada e disse que tinha nascido naquele morro. Sem pai, nem mãe, foi morando de favor em "puxadinhos" nos pátios de um ou outro vizinho, sendo alimentado por essas famílias. Já tinha morado por tudo. Já conhecia todos e todos lhe conheciam. Era um pouco a sua casa. Dormir na calçada não era novidade pra ele. A calçada da Unidade,na Rua Caldre Fião, no morro da Maria Degolada era também, um pouco, a sua casa, espaço cúmplice de jeitos de se virar, jeitos de sobreviver. Não poderia esperar que ele tivesse algum julgamento sobre o que fazia e me senti de certa forma lisonjeada por ele querer me conhecer e de alguma forma, por eu valer muito "na pedra"...
Wilson saiu com exames, sim. Suspeitava de tuberculose. Gostei do seu jeito sincero e até certo ponto ingênuo sobre a forma de relatar todo o processo de venda de fichas. Para alguém que desde menino teve que se esquivar de perigos, teve que lutar para viver, arranjarestratégias para morar, comer, ele parecia que não tinha perdido alguma coisa do menino que, um dia, foi. Talvez o morro-casa conservou algo. Talvez as próprias pessoas da comunidade, tendo criado Wilson, mantinham o cuidado se submetendo a pagar pela "pedra". Ele era de fato muito franzino para ser ameaçador. Alguns pactos e algumas histórias de ruas e cidades ficam mesmo nas fendas silenciosas das calçadas.
Sabemos somente o que bate na porta e isso é pouco. A cidade é esse universo de personagens que transitam entre o cuidado e o esquecimento. O esquecimento que era cruel para dona Zilah, que morava no mesmo morro. Um morro que também era palco de grandes movimentos culturais de origem africana como a Samba Puro, escola de samba que ensaiava na minha janela. E dona Zilah era sambista! Filha de lavadeiratinha a pose de uma estrela mesmo morando em uma casa muito humilde e aguardando que o então prefeito municipal da época lhe desse uma nova casa, como havia prometido. Era afilhada de Lupicínio Rodrigues que dizia que até para chorar ela chorava afinado. E chorava nas consultas, triste pela solidão e esquecimento, cuidando sozinha da mãe muito idosa que eu visitava em casa.
Zilah Machado fabricava seus próprios tambores e tal qual Wilson, consultava comigo. Era a minha paciente mais famosa e, quando eu podia, ficava ouvindo suas histórias e suas esperanças. Por achar que as pessoas estão sempre "aqui", a gente vai deixando pra depois. Perdi os shows que ela me convidou e hoje, buscando por ela, descubro que faleceu. Tenho um CD (não autografado...) chamado "passageira da nave dos sonhos". As fotos lindas, com roupas de noite, jamais denunciariam a casa onde vivia. Certamente comprou um lugar na calçada do posto, a "pedra de Wilson" e foi acolhida pelo morro. Foi velada com pompas e autoridades no salão da Assembléia Legislativa, mas não sei se algum dia chegou a receber a casinha que tanto lhe prometeram.


 Wilson e Dona Zilah, personagens que se cruzavam na mesma calçada, me deram suas lições: o "bandido" Wilson e a estrela Zilah... Conheci os dois em suas verdades e seus momentos. O marginal de sorriso ingênuo, franzino, grato aos pais-vizinhos pelo colo. A estrela trajada de brilho, mas ressentida com o esquecimento, a doença, a pobreza e a solidão. A lua, pandeiro de prata do morro, acolhia os dois. E nada é o que parece ser.  
"As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender", canta Dona Cecília fazendo uma costura ou esquentando o leite, agora, para os netos. Paulinho da Viola, samba de letra terna, eterna. A voz quase de fazer dormir, ninar. Sobre as coisas que estão no mundo, minha mãe me preparou com sua ternura e seu colo. Mas o que eu preciso aprender ainda está em segredo. Desconfio, está escondida em alguma cantiga, algum refrão que acabou sendo cantado quando eu já adormecia. O jeito é continuar a ouvi-la e procurar entre um samba e outro, a poesia da vida que é sempre cantada e que é sempre canção.

[Maria Amélia Mano escreve na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]

3 comentários:

  1. Faz tempo que não chorava. Obrigado. Amei.

    Os poetas românticos europeus sonhavam com a palavra ou a sílaba ou a combinação de palavras que, viradas conjuro mágico, criasse ou destruísse o universo.

    Seguindo a tradição mágica da qual a Kabalah é só um exemplo, eles sonhavam. E no sonho faziam poemas e belezas, Amélia.

    O que precisamos aprender está no sonho. E quase nunca o tornamos consciente. Mas no sonho produzimos belezas, como teus textos, querida.

    Obrigado por Ser. Pela Cecília. E por ser médica daqueles que eu me orgulho ainda de compartilhar a mesma profissão embora eu não cuide das pessoas.

    Abraço. E, sim, homens choram bem. E se aliviam e libertam com o pranto. Suave. Calmo. De emoção e de arte de viver.

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  2. Nesta época de surpreendente expansão da cultura capitalista no mundo popular, injetando-lhe valores de extremo individualismo imediatista, muitas vezes grosseiro, e fazendo com seja mais difícil com ele se encantar, esta história de seu Wilson nos fala de que o desafio continua: encontrar poesia e sentido até nesta dinâmica malandra e opressiva que tanto bate na porta dos serviços de saúde.

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  3. mais uma história que me emociona... Wilson, Zilah, Dona Cecília, que tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Obrigado.

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