* Este é o "Ano Cortázar". Várias homenagens acontecem no mundo todo, em especial na Argentina, país onde o "enormíssimo cronópio" nasceu e que nunca gostou muito dele.
A eterna finitude de Cortázar
Escritor e amigo lembra o dia em que descobriu com assombro que o autor de ‘O Jogo da Amarelinha’ era mortal
15 de fevereiro de 2014 | 16h 00
Ariel Dorfman
Ariel Dorfman
Muito antes de me despedir para sempre de Julio Cortázar me dei conta, para meu assombro e pesar, de que ele não era imortal.
Reprodução
Da esq. à dir., René Zavaleta, Pablo González Casanova, Julio Cortázar, Dorfman, Gabo e outros
Falei com Julio pela última vez em janeiro de 1984, dos Estados Unidos, quando pensei que poderia visitá-lo em breve em Paris - reunião que não se concretizou porque tive de cancelar a viagem: meu filho mais velho, Rodrigo, quebrara a perna. De qualquer modo, consegui conversar com Julio nessa ocasião. Falamos sobre sua recente estadia na Nicarágua, sobre a fadiga que o perseguia, sobre as saudades que sentia de sua querida Carol. E também sobre os preparativos que eu e minha mulher, Angélica, fazíamos para regressar ao perigoso Chile de Pinochet. Ele me pediu que tivéssemos cuidado, como se a morte nos ameaçasse, e não a ele.
Semanas mais tarde, seu falecimento impediu que déssemos o abraço que nos havíamos prometido.
Entretanto, a verdadeira despedida, o momento em que tive a revelação de que não o teríamos sempre conosco nesta terra, ocorrera vários anos antes dessa conversa telefônica final, em uma tarde ensolarada de agosto de 1980, no meio do Pacífico, vários quilômetros mar adentro em frente à baía mexicana de Zihuatanejo.
Cortázar alugara uma casa naquela praia, para veranear com Carol e o filho dela, Stéphane. Eu havia reservado acomodações para minha família em um hotel próximo, porque meus pais iriam passar as férias conosco. Minha mãe, que me dera de presente o Bestiário, quando eu beirava os 17 anos, insistindo que era um livro enigmático e ímpar de que eu gostaria particularmente (e como ela tinha razão!), estava emocionada por conhecer finalmente um dos autores que mais admirava. Lembro que, com a candura que sempre a caracterizou, confessou a Julio em um almoço para o qual ele nos convidou (e cozinhou um peixe delicioso) que se sentia pouco à vontade por desfrutar de sua presença porque não se julgava suficientemente "cronópio" (ingênuo, sonhador, idealista; o termo aparece em contos de Cortázar).
"Acontece", ela disse a Cortázar, meio envergonhada, "que eu aperto o tubo de pasta de dente de baixo para cima, de maneira muito burguesa, racional, ocidental." Julio, com uma ternura imensa e um senso de humor parecido com o de minha mãe, assegurou-lhe que somente um verdadeiro cronópio passaria por tal dilema. Portanto, com toda solenidade, lhe dava as boas-vindas ao clube dos cronópios.
Naqueles dias conversei muito com Cortázar - sobre a influência das ditaduras da América Latina em nossa literatura (acabávamos de participar como jurados de um concurso sobre militarismo no continente, juntamente com Gabriel García Márquez, Julio Scherer e Pablo González Casanova, entre outros), mas também sobre temas menos aleatórios, como a literatura de Roberto Arlt, cujas obras completas Cortázar estava relendo pela primeira vez em décadas, para escrever o prólogo de uma nova edição.
Não falamos, tenho certeza, da velhice ou da morte, que, entretanto, iriam se manifestar inesperadamente durante uma excursão de barco organizada por Julio para uma pescaria na companhia de Stéphane, e para a qual nos convidou, a mim e a Rodrigo, para acompanhá-lo na aventura.
Foi um passeio sob sol esplêndido, no qual os jovens aprenderam estratégias para arrancar peixes das ondas e nós dois, adultos, passamos horas mergulhados em Conrad e Stevenson, Hemingway, Jack London, Rudyard Kipling, comentando como mar era com tanta frequência, na literatura inglesa, um cenário predileto para a transição da mocidade à maturidade, o que raramente acontecia na Espanha ou na América Latina.
Antes do almoço a bordo, quando o sol estava mais encarniçado, nós quatro navegantes começamos a nadar ao redor da embarcação. Pouco depois, Julio disse que estava cansado. Ao voltarmos para o barco Rodrigo e Stéphane subiram dando gritos de alegria, com a agilidade de macacos, conduta que nem eu nem Cortázar imitamos.
Julio, ao contrário, segurando a escadinha com as duas mãos e abraçando a parte superior com os grandes braços, os pés ainda abaixo da superfície da água, ficou nessa posição por um bom tempo, um minuto, talvez dois. Eu fiquei aguardando pacientemente ao lado, movimentando as pernas para que as ondas não me levassem, esperando que a escadinha ficasse livre.
De repente, Julio virou-se para mim e disse, quase incomodado, quase bruscamente: "Ajude-me, Ariel".
Por um instante, não entendi. Não entendi o que ele estava me pedindo. Não entendi que alguém como ele, o grande Julio Cortázar, pudesse precisar de qualquer tipo de ajuda para subir nesse barco ou em outro barco, ou qualquer embarcação, agora, amanhã ou nunca.
Contra meu entendimento conspiravam vários fatores. Por um lado, o extraordinário aspecto juvenil de Cortázar - seu ar de eterno adolescente - disfarçava os anos reais que o corpo havia atravessado. Parecia um homem de uns 38 anos (minha idade naquela época) e não alguém que iria completar 66. Mas talvez mais importante fosse a veneração que eu tinha por ele, o pedestal no qual o havia colocado, apesar da fraternidade e do companheirismo que crescera maravilhosamente desde que nos havíamos conhecido em 1970, quando ele foi ao Chile para comemorar a vitória de Salvador Allende. Cortázar não era um ser humano de carne e osso. Era um deus. E os deuses, nossos ídolos, não precisam de ajuda. Os deuses não envelhecem, não têm fraquezas nem são incapazes de vencer uma estúpida escadinha de metal no mar.
Mas evidentemente que era de carne, e claro que de osso meu querido, nosso querido Julio.
Soube disso assim que atendi a sua súplica, assim que comecei a ajudá-lo a subir no barco que balançava. Fiz aquilo da única maneira possível: firmando a mão, para sustentação e apoio, em uma de suas nádegas.
Foi nesse brevíssimo, muscular momento, apalpando de forma incômoda e torpe a dureza ossuda da parte inferior de sua pélvis com a palma da mão enquanto ele subia, que se revelou para mim a mortalidade irrefutável de Julio Cortázar.
Aquele corpo do qual haviam saído O jogo da Amarelinha e os contos perfeitos e alucinantes podia morrer.
Era inconcebível, mas impiedosamente certo: Cortázar, diferentemente de sua obra, diferentemente de Oliveira e La Maga, do axolotl e da ilha do meio-dia, não era imune à passagem terrível do tempo.
Nem ele nem eu mencionamos o incidente uma única vez, como se reconhecer sua debilidade e minha incapacidade de compreendê-la fosse algo estranhamente vergonhoso, um segredo que preferíamos manter oculto, impronunciável, esquecido.
Mas não o esqueci.
Esse encontro com a perecível nádega de Cortázar antecipou o dia, aquele 12 de fevereiro de 1984, quando tocou o telefone de nossa casa em Bethesda, Maryland, e Saúl Sosnowski me avisou que Julio havia falecido. A dor dilacerante da notícia ainda me persegue, machuca, 30 anos depois.
Se não há consolo para a morte dos que amamos de verdade, se não há consolo para a ausência de alguém que me ensinou a viver e a escrever e ofereceu a minha Angélica uma amizade franca e sensível, se nos entristece o fato de que não esteja mais entre nós um ser como ele, que prodigalizou tanta felicidade a tantos seres humanos, o que existe e persiste é meu agradecimento por ter tido o privilégio de compartilhar de sua vida naquele tempo, e agora, e sempre, sempre, de sua obra literária.
Ele gostava de nos presentear.
Quero pensar que, ao pedir ajuda, ali, no mar turbulento de Zihuatanejo, ele estava me dando uma última lição das tantas que me deu. Se estava se despedindo de mim e do mundo, estava me preparando para o dia em que não contaríamos com sua presença imediata e urgente, o dia em que ficaríamos sem seu cérebro tão universal e seu coração tão generoso, e aquela nádega tão dura e efêmera e imprescindível. Estava nos preparando - e te agradeço por isso, Julio - para este momento em que tudo é lembrança, tudo é imortal. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
ARIEL DORFMAN, ESCRITOR CHILENO, É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ENTRE SUEÑOS Y TRAIDORES: UN STRIPTEASE DEL EXILIO (SEIX BARRAL)
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