CADERNINHO DE VIAGEM III
CIUDAD DE LAS ESPERAS
En la pared de una fonda de Madrid hay un cartel que dice: prohibido el cante.
En la pared del aeropuerto de Rio de Janeiro hay un cartel que dice: prohibido jugar con los carritos porta-valijas.
O sea: todavía hay gente que canta, todavía hay gente que juega.
Eduardo Galeano
Olho de longe, de cima, e a geografia com os recortes de terra e água me fazem lembrar os sulcos e giros do cérebro. A terra pensa lá embaixo. Medita, às vezes. Grita, às vezes. Sorri, às vezes. Chora, às vezes. As ilhas, mais alto, mais distante e a sensação daquelas “cenas” dos microscópios da histologia que nunca conseguia identificar direito: epitélios. A pele da terra. Os sentidos da terra. As sensações que nascem do toque. Terra-pele que se acarinha e toca, clara e escura, macia.
Mais longe ainda, rios como veias e artérias, rios sujos, rios livres, sangue. Galeano. Capilares levando fertilidade à terra. Cio da terra do Chico. Plantações: contraste reto e organizado frente à sinuosidade desorganizada dos rios. Estradas, estrados, estratos, como que dividindo novas geometrias de retas e curvas difíceis de calcular. E as chegadas chegam. A cidade esperada pousa, finalmente. Cá embaixo, Bel, a amiga que me espera para se aventurar de moto, vento no rosto pelos parques, praças e feiras.
Ciudad de las esperas, livro de fotografias, título que observo, curiosa, da vitrine de uma livraria fechada. Podia ter esperado abrir, mas não. Pouco tempo para viver a cidade e suas ruas. Espera é tempo fora do tempo, meio não planejado, não-instante em um não-lugar que desejamos somente passar, sem ficar. E as fotos pareciam falar desses tempos entre semáforos, salas de esperas, listas de esperas, aeroportos, estações de trem... E não eram só lugares, porque lugares não esperam. Eram pessoas, faces, expressões, vidas que esperam.
Alguma solidão transita na espera pelo caminho, pelo encontro que é só nosso. Ilhas sem palavras, olhos abrindo portas de futuros que se fazem “só” na próxima estação – que engano! Futuro é também esse aparente ócio, esses labirintos e batalhas cotidianas em pausas que não planejamos, “ese mecanismo implacable de perder las horas, de querer las horas” como diz Roitman, em uma “ciudad que nos pierde y donde nos perdemos”. Perdemos sim, e não raro, no meio do caminho, no ruído do ônibus ou dos ventos nas esquinas, me perco e me pergunto para onde vou mesmo?
A mãe que hoje pare, um dia esperou. Porque espera é gestação. É estação silenciosa antes do grito, do choro do nascimento, do parto que é também partida, largada, separação, corte de cordão. O que, um dia alimentou e fez crescer e viver por meses, é rompido e cai em dias. Mistério esse dos instantes e eternidades, das esperas angustiadas ou até, algumas, brincalhonas e irresponsáveis, repletas de risadas e descobertas, esperanças vestidas de flor, vestido longo, de festa...
E vestida de flor, a menininha índia, boliviana, imigrante, brinca na ponte em Buenos Aires. É noite em Puerto Madero, Puente de la Mujer. Uma moça linda vestida de noiva – um vestido muito rendado e enfeitado - faz pose para fotos. O noivo orgulhoso. Uma senhora que devia ser a mãe, impressionava pelo traje e pelas meias em uma noite tão quente. Todos pareciam da mesma família, juntos, comemorando, com suas melhores roupas e sorrisos.
Observo a menininha que brinca com a irmã mais velha. Desconfiadas, quase não deixam que eu me aproxime. Insisto, enternecida pela beleza e pelas risadas. Brincam com as luzes da ponte. Brincam com as luzes enquanto esperam a sessão de fotos dos amantes. Amantes que se unem em ponte-mulher, ponte que abraça e dá as mãos para as duas faces de uma cidade: a bela que acarinha, a feia que oprime. E no centro, no coração da ponte, duas menininhas brincam com luzes.
A cidade das esperas também é a cidade das esperanças e dos beijos nas pontes, dos encontros de amigas que falam de sonhos e amores, de crianças que descobrem luzes e brincam na noite. Noites de músicas distantes e esperas. E o tempo é igualmente contado no ventre materno, onde olhos, faces, mãos, carne e coração se formam, lentamente. Onde, em silêncio, em angústia, em dúvida, nasce um menino, uma menina, um mundo, uma imensidão. Imensidão feita de espera.
Que, sempre que o tempo deixar, sempre que a vida disser, intuir, inspirar, sussurrar, a espera, essa tão injustiçada pausa de instantes, seja gestação. Que o destino seja parte, praça; que o encontro seja pouso, pele, que a viagem seja ponte, poesia. E que a angústia seja brincadeira e que a vida seja uma luz, essas luzes que as crianças brincam e descobrem, pela primeira vez, maravilhadas, risonhas e ternas, em dias de festas, com as melhores roupas, esperando uma canção, um doce ou o doce versinho do poeta que toca de leve o coração.
www.laciudaddelaespera.com.ar
www.fotodoc.com.ar
[Maria Amélia Mano escreve na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]
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