11 fevereiro 2014

Pelo zum-zum-zum do mundo



Em silêncio falam bichos
Em silêncio pelos olhos os bichos falam 
Cada quintal tem a sua calma
Como tranquiliza a alma meu quintal
Pelo zum zum zum do mundo
No silêncio mais profundo
Os bichos falam, falam
Em silêncio vivem flores
Em silêncio as árvores esperam pelo vento
Só os homens mais sozinhos
Ouvem o silêncio antes do cantar dos passarinhos
(Sá e Guarabira – Em Silêncio)



Sempre tive sonhos de lugares. Lugares de conhecer, de caminhar, de sentir, de viver, de falar e cuidar das pessoas, de contar histórias. Foi assim que, em 1999, com 20 dias de formada, fui trabalhar em Barão de Cotegipe, uma pequena cidade do norte do Rio Grande do Sul, de colonização italiana, alemã, polonesa e ainda contava com índios Kaigang. Vivia na estrada visitando e atendendo as comunidades distantes da zona rural, apreciando as diferentes culturas. Eu amava tudo e, todos os dias, levantava com olhar de aventura, desafio, surpresa e estreia.

Em um momento daqueles que marcamos quando cerramos os olhos, estava voltando de um atendimento na Kombi velha da prefeitura. Estava exausta e com calor e coloquei o rosto pra fora da janela. O verde dos morros e o amarelo do trigo inundaram meu olhar. Lembrei das pessoas, das conversas, do trabalho. Sorri sozinha. Disse a mim mesma: “como sou feliz!”. Como se aquele momento fosse perfeito em tempo, lugar, cor, música. E o mundo podia terminar ali e a vida ser congelada ali e eu estaria sorrindo na Kombi, feliz da vida...

Outro momento igual, aconteceu em 2001, na residência. Fui parar em Benjamim Constant, Amazonas. Um lugar onde andei, sim, mas muito naveguei, de voadeira (pequena embarcação com motor de popa), de canoa e de barco de passageiros. O barco era daqueles com bancos de madeira e redes penduradas. Adultos e crianças seguiam além, em longas jornadas de dias e noites. Em um desses barcos, pelos grandes rios de águas escuras e calmas, águas cheias de mitos e mistérios, presenciei uma das mais emocionantes, a despedida do dia: o pôr do sol no Rio Solimões.

Sozinha, sentada no banco de madeira, não ouvia conversas, nem vozes, mas o barulho da mata, do vento, da água em movimento e dos meus sonhos cantando alguma canção indígena... De novo, a felicidade me invadiu e me deu a mesma sensação de falar comigo mesma e dizer, em silêncio: “é isso”... Veio, novamente, a sensação de estar plena, de ter o que queria, um sonho realizado e sentir que tudo era perfeito e me fazia imensamente feliz, desde o cheiro da mata, as cores do céu, o sol e a luz refletida na água, a música mágica do rio mágico....

Óbvio que me senti poderosa por segundos, como se sentem os que se realizam, os que realizam um sonho. Um poder que durou pouco frente aos desafios e enganos que essas mesmas jornadas me impuseram e ainda, a sensação de que aquele momento de pura felicidade em nada tinha a ver com poder ou dinheiro, tanto que estava em uma Kombi no meio de uma estrada de terra e, depois, sentada em um banco de madeira em um barco simples de passageiros no Solimões. Resolvi ser fiel ao que me fazia feliz e, até então, nem o poder e tampouco o dinheiro me seduziram.

Em 2005, já em Porto Alegre, trabalhava em uma instituição que estava com problemas financeiros e gerenciais e, ainda, com pouco espaço para a criação e a aventura. Além da tensão em que aquela realidade me impunha, estava triste por perdas familiares e de coração partido. Assim, angustiada, voltei a desenhar e fiz vestibular pra Artes Plásticas e me apaixonei pela cerâmica. Alguns eventos e conflitos foram a gota d’água e pedi demissão. No dia seguinte, parti para Florianópolis. Diziam que eu tinha largado a medicina pra vender potes de barro na praia... Confesso que gostei da ideia...

Sozinha, meio sem rumo, fiz o caminho para o Morro da Cruz. E, por essas coisas da vida, cheguei ao mirante, na hora exata do pôr do sol. Estava cansada, mas a caminhada e o sol sumindo lindo me deram a paz e a certeza de que poderia continuar e que tudo tinha seu tempo. Não me senti tão plena como das outras vezes, mas agreguei uma outra condição aos meus sonhos e à vida: a loucura, a criação, a liberdade... Não sucumbir ao que me oprime, ao que me tira a cor e a alegria, ao que não me dá sentido. Saber que ao final de uma caminhada árdua, tem um mirante, uma praia, uma clareira, um sol se pondo... Assim, virei amante do barro da cerâmica e das estradas, trilhas.

Tive outros pequenos momentos, instantes em que falei comigo mesma e me senti em paz e feliz. Essas felicidades e essas descobertas nasceram solitárias e silenciosas a partir de uma conjunção de acontecimentos, de ventos, de águas, de satisfação, de caminhadas, de pequenas notícias ou imagens, por construir e compartilhar coisas belas, cuidados, horas, dúvidas, cansaços... O ofício esse de ser feliz, entendi e aprendi, não é um estado constante. Tal qual a tristeza, a felicidade passa e nasce mais do silêncio do que da festa. Não o silêncio da ausência de ruído, mas da ausência de palavras. O zum-zum-zum do mundo...

E sobre a ausência de palavras, lembro da indiazinha Ticuna que me levava de canoa de uma ponta a outra do igarapé, sem nada dizer. Uma vez me perguntaram se eu havia pago a ela pela travessia e eu, surpresa, disse que não sabia que tinha que pagar e que ela nada me dizia, apesar de eu sorrir e agradecer. Entendi que ela me pedia, em silêncio, com o olhar e que eu não entendia o significado daquele olhar. Olhávamos uma pra outra, uma em cada lado da canoa, no meio da chuva amazônica, em silêncio. Eu esperando uma palavra e um sorriso que não vinham. Perguntei quanto devia pagar e me responderam: “qualquer moedinha!”.

Era uma menina pequena sozinha no meio do igarapé com a mãozinha calejada pelo remo... Seu olhar mudou quando eu lhe dei as moedas. Não foi olhar de felicidade, foi um olhar de “agora, você entendeu”. Não me respondia o sorriso. Não me lembro de ter respondido com um olhar feliz em alguma travessia no igarapé. Tampouco me lembro de ter dito algo. Aprendi que precisamos de tempo e sensibilidade para entender o silêncio. Especialmente quando o silêncio é de dor e que dele, nascem opressões, iniquidades e tristezas.

Marthin Luther King dizia que o que lhe preocupava não era o grito dos corruptos e dos violentos, mas o silêncio dos bons. Assim, a pequena indiazinha transitava entre o seu silêncio e o silêncio de uma sociedade que se calava diante dela. E eu, já quase de volta pra casa, após entender o olhar e colocar publicamente a minha indignação sobre a situação, ouvi das pessoas um simples: “ela gosta disso”. Resolvi não mais atravessar o igarapé. Minha decepção e imaturidade não permitiram que eu fizesse alguma coisa pequena e significativa como contar uma história, presentear com a foto tirada... Sim, no silêncio também há culpa e frustração, sensação de ter ficado sem o sorriso...

Esses são aqueles enganos que falei antes e que me tiraram e me tiram a ideia de ser “poderosa”. Sim, os enganos nos fazem sentir menos orgulhosos, menos prepotentes, menos sábios... Seres que precisam constantemente ouvir as vozes mais profundas dos silêncios, das quietudes. Decifrar olhares, gestos, sons, jeitos, cores... Outros jeitos de falar de alegria e tristeza. Jeitos dos outros e jeitos nossos, para dar sentido aos dias, à vida e ao viver. Assim é que, sem sentido, também se desiste. E desisti da faculdade quando vi a arte aprisionada em conceitos e vaidades. Permaneci por anos “amassando barro”, mas não consegui manter. Assim como as trilhas ficaram mais escassas, com o tempo curto.

Daí escuto meu silêncio que me obriga a me recompor: voltar ao barro. Não à toa, Paulinho da Viola pede silêncio para esquecer a dor no peito e assim, fazer um samba sobre o infinito. Esse infinito que trilhamos tão pouco preparados e cheios de surpresas. Assim, em 2013, atravesso o Atlântico rumo a Lisboa e tudo me encanta, mas mais, onde não pouso, onde não fico, onde passo e um sol nasce (sempre o sol...) e o comandante avisa que é da África. África... e quase sinto o vento no rosto, o barulho da água...

Penso que é hora de viver novos silêncios, compor essa canção infinita, sobre o infinito, feita de olhares, infinitos olhares. O olhar da indiazinha. O olhar de quem amamos. O meu olhar no espelho, andarilha, ainda curiosa, ainda aventureira, querendo desenhar e pintar essa trilha, modelar com barro esse caminho. Deixo assim, marcado, o próximo sonho, a próxima Kombi, o próximo barco a sair, o próximo mirante, o próximo pôr de sol. Para “falar” mais, apresento, assim, Malangatana, ativista pela paz, poeta moçambicano do português “incorreto” dos oprimidos, pintor de origem humilde.

Nosso silêncio deve dizer muito do que acreditamos, do que deixamos e do que sonhamos. O olhar do desenho de Malangatana, de significado tão tocante quanto o olhar da indiazinha não exige idioma ou tradução. Que essa dor de quem se encolhe na chuva não cale nossos sonhos e não nos torne omissos. Devo à pequena indiazinha o compromisso com cada olhar triste que encontrar. Nossas faltas são saberes que adquirimos.

O olhar da gravura, a música entoada por vozes negras cortada por choro de crianças e o ruído de passos e ofícios (no vídeo), o caminho, o cansaço diz mais. Dirá mais. É o zum-zum-zum da vida, do vento, do mundo, da canção. É o silêncio de palavras explicadas, o silêncio que germina a semente, onde nascem e vivem as flores e que amadurecem, nós e os frutos e os sonhos, os beijos e os grandes amores.








[Maria Amélia Mano escreve na Rua Balsa das 10 às Terças-feiras]

3 comentários:

  1. Amélia, esse tocou a alma. Obrigada!

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  2. Evoca um trabalho em saúde em que a aventura e a poesia são centrais. Parece que isto está ficando raro.

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  3. Como viver sem desfrutar da compania e da poesia que eh a pessoa Maria Amelia? Agradecida, agradecida, por sentir contigo as emocoes que compartilhou nessa cronica. Como eu sou feliz por poder acompanhar esse blog!

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