04 abril 2014

OLHANDO EM VOLTA A PARTIR DE MEU UMBIGO


Ernande Valentin do Prado

Houve um tempo em que não conseguia escrever diretamente no computador. Precisava escrever no papel e depois digitar. Isso, para mim, é um indicativo forte de que a estrutura condiciona até mesmo a forma como se raciocina e organiza o pensamento. Depois aprendi a pensar, não mais com a caneta entre os dedos, mas com as pontas dos dedos. De tal forma o computador me condicionou que, ao começar a trabalhar como Enfermeiro, minha forma de organizar o serviço e mesmo os atendimentos clínicos eram complicados demais, até que, finalmente, consegui um computador.
Quero abrir um parêntese para dizer que acredito que computadores sempre existiram, mas eram de uso exclusivo de escritores. Ninguém me convence de que a Bíblia foi escrita à mão, é impossível e o que dizer de Grande sertão: veredas? Vocês acreditam que foi escrito com caneta, escrevendo, apagando, riscando e reescrevendo?
Fecha parênteses - a falta de computador para meu uso e uso dos ACS condicionou por algum tempo meu modo de fazer, mas de maneira nenhuma determinou que fosse assim ou assado. E é exatamente sobre esses condicionantes que determinam alguns, mas não todos, que quero falar neste texto.

GOVERNABILIDADE SE CONSTRÓI, NÃO SE LAMENTA

Durante dois anos e meio fui metalúrgico. Trabalhava com uma retífica dando acabamento em peças para carros que tinha certeza  de que não conseguiria comprar (e pelo visto estava certo, ainda ando de ônibus). Meu salário como Enfermeiro, para o mesmo tempo de dedicação diária hoje é inferior ao que receberia se tivesse me especializando no ramo e ainda conseguiria emprego mais fácil, mas não é sobre isso que quero falar.
Comecei neste emprego logo ao chegar a Curitiba. Era ajudante de operador de retífica. Trabalhava durante o dia e fazia o que chamavam de segundo grau à noite no Colégio Estadual Dr. Décio Dossi em Fazenda Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba. Nesta época, arrumava tempo para ir ao cinema toda semana, militar no grêmio escolar, no recém-fundado diretório municipal do Partido dos Trabalhadores (que Deus o tenha) e no grupo de jovens da paróquia local.
O meu trabalho era muito simples: as peças saiam brutas dos tornos e cabia a mim, entre outros, fazer o acabamento. Era mais ou menos como polir até ficar na medida exata. Duas pedras abrasivas giravam em sentido contrário em uma velocidade alta e eu pressionava a peça de metal entre elas até deixar na medida exata, calculada em milésimos. Durante a noite, sonhava com minha mão sendo esmagada por essas pedras, era uma coisa terrível.
No primeiro dia de trabalho, fui apresentado ao encarregado do setor de acabamento e instruído a procurá-lo em caso de mudança de peça ou algum problema na máquina. Era um cara tranquilo, bonachão e sorridente, mas deixou claro que eu deveria parar a máquina se houvesse algum problema e apenas ele podia “consertar” ou trocar de peça (trocar de peça era na verdade mudar a regulagem para outro tipo de acessório e medidas) e era também a única parte do trabalho que exigia criatividade e raciocínio metódicos, o resto era rotineiro e repetitivo.
No primeiro dia fiz algumas peças, era muito fácil, embora todos tenham me dito que aquele era o setor mais difícil, embora não o mais prestigiado, inclusive em termos financeiros, mas tinha compensações, como, por exemplo, não ter que mexer com óleo derivado de petróleo. A minha máquina trabalhava com água e um fluido verde que não me lembro do nome.
Ao concluir meu primeiro lote de peças (se não me engano para FIAT), parei a máquina e esperei o “chefe” chegar. Ele chegou, desmontou a base onde a peça era encaixada, depois mudou a distância entre as pedras de polir, trocou mais duas ou três peças e começou a regular a medida (essa era a parte mais difícil e empolgante). No segundo dia, precisei trocar de medida três vezes, porém o “chefe” tinha várias outras máquinas para regular e nem sempre podia me atender com a velocidade de que eu precisava (ou queria). Nesses momentos, eu poderia até sentar e esperar sem que pensassem que estava enrolando, mas se tem uma coisa que não consigo fazer é sentar e esperar. No segundo dia de trabalho, comecei a organizar o entorno de minha máquina. Arrumei o armário, limpei as peças, as chaves que estavam espalhadas, lavei, limpei, varri. Mesmo assim sobrou tempo, então resolvi desmontar a máquina para adiantar o trabalho, assim o chefe poderia só remontar com as novas medidas.
O colega do lado, que entrou na empresa 60 dias antes, alertou-me que não deveria fazer aquilo, que esse era o trabalho do encarregado. Ele chegou, viu que eu tinha desmontado a máquina e não disse nada, apenas colocou as novas peças e regulou a máquina. Depois elogiou minha organização.
Fui fazendo o que era possível dentro de minha governabilidade e alargando-a todo dia um pouquinho. No final do primeiro mês eu mesmo desmontava e montava minha máquina. O encarregado vendo isso me disse um dia: por que não regulou logo de uma vez?
Eu disse: posso? E ele disse, não. “Não é nem para desmontar”. Porém, na próxima vez que precisou regular, fiz quase tudo sozinho e, desse dia em diante, ele só passava na minha máquina quando não tinha nada que fazer ou quando eu o chamava. Em três meses, eu já estava regulando as máquinas dos colegas, quando o encarregado não dava conta ou quando faltava ao trabalho por algum motivo.
Lembrei-me dessa história porque hoje em dia tenho trabalhado com muitos profissionais de saúde que dizem não ter governabilidade para isso ou aquilo no trabalho e fico imaginando que governabilidade, ou melhor, falta de governabilidade é, entre outras coisas, uma ótima desculpa para “não fazer”, para jogar a culpa em alguém, reclamar, esperar e nunca ser responsável.
Quando trabalhei como auxiliar de Enfermagem, no meu primeiro emprego, era o único profissional auxiliar que sabia passar sonda nasogástrica (na época auxiliar ainda podia fazer esse procedimento). Dois dias seguidos passei sonda para uma colega. Na terceira vez que ela pediu eu disse que estava ocupado, mas vou lhe ensinar a fazer, assim não precisará mais de mim e ela disse: não quero aprender para não ter que fazer. No primeiro mês como Enfermeiro, no Espírito Santo, fiz um planejamento para o Pronto Socorro (que nunca foi meu forte). Eu o apresentei à direção e fui convidado para discutir a situação. Nesse dia fui convidado para ser Gerente de Enfermagem do hospital e fazer planejamento para todos os setores. O Diretor ainda acrescentou: “nunca ninguém fez isso aqui”. No primeiro dia como Enfermeiro em Saúde da Família, perguntei à minha colega com cinco anos de profissão porque ela não tinha uma sala e diante da resposta resolvi dar meu jeito. No terceiro dia já tinha uma sala (essa história está detalhada em: Os caminhos que me trouxeram até aqui – no livro Vivências de Educação Popular em Atenção Primária à saúde).
Tenho trabalhado, nos últimos dois anos, com profissionais de saúde da Atenção Básica no curso de Especialização em Saúde da Família. Na elaboração do projeto, muitos especializando alegam falta de governabilidade para eliminar objetivos e metas importantíssimas, como, por exemplo, realizar atividades educativas e desenvolver trabalho em grupo. Um especializando chegou a dizer que só se sentia bem com o trabalho clínico, pois era o único que tinha realmente governabilidade, tudo mais não lhe cabia, mas governabilidade não se lamenta, constrói-se e alarga-se todo dia um pouquinho, coisa que aprendi com uma Testemunha de Jeová que tentava me vender uma revista Sentinela em um domingo qualquer. Ele me disse: “desculpa todo mundo tem uma: quem não quer fazer dá uma desculpa, quem quer dá um jeito.” Verdade verdadeira, como diria meu pai.
Com tudo que disse, não estou desconsiderando a falta de infraestrutura, organização, salários ridículos, condições desumanas de convivência, gestões arbitrárias, autoritárias, prepotentes, incompetentes, mas mesmo nestas situações (já passei por todas) quem quer da um jeito, quem não quer dá uma desculpa.
Revisão – Jailson Conceição – Bahia

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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