Ernande Valentin do Prado
Houve um tempo
em que não conseguia escrever diretamente no computador. Precisava escrever no
papel e depois digitar. Isso, para mim, é um indicativo forte de que a
estrutura condiciona até mesmo a forma como se raciocina e organiza o
pensamento. Depois aprendi a pensar, não mais com a caneta entre os dedos, mas
com as pontas dos dedos. De tal forma o computador me condicionou que, ao
começar a trabalhar como Enfermeiro, minha forma de organizar o serviço e mesmo
os atendimentos clínicos eram complicados demais, até que, finalmente, consegui
um computador.
Quero abrir um
parêntese para dizer que acredito que computadores sempre existiram, mas eram
de uso exclusivo de escritores. Ninguém me convence de que a Bíblia foi escrita
à mão, é impossível e o que dizer de Grande sertão: veredas? Vocês acreditam
que foi escrito com caneta, escrevendo, apagando, riscando e reescrevendo?
Fecha parênteses
- a falta de computador para meu uso e uso dos ACS condicionou por algum tempo
meu modo de fazer, mas de maneira nenhuma determinou que fosse assim ou assado.
E é exatamente sobre esses condicionantes que determinam alguns, mas não todos,
que quero falar neste texto.
GOVERNABILIDADE SE CONSTRÓI, NÃO SE LAMENTA
Durante dois
anos e meio fui metalúrgico. Trabalhava com uma retífica dando acabamento em
peças para carros que tinha certeza de que
não conseguiria comprar (e pelo visto estava certo, ainda ando de ônibus). Meu
salário como Enfermeiro, para o mesmo tempo de dedicação diária hoje é inferior
ao que receberia se tivesse me especializando no ramo e ainda conseguiria
emprego mais fácil, mas não é sobre isso que quero falar.
Comecei neste
emprego logo ao chegar a Curitiba. Era ajudante de operador de retífica.
Trabalhava durante o dia e fazia o que chamavam de segundo grau à noite no
Colégio Estadual Dr. Décio Dossi em Fazenda Rio Grande, Região Metropolitana de
Curitiba. Nesta época, arrumava tempo para ir ao cinema toda semana, militar no
grêmio escolar, no recém-fundado diretório municipal do Partido dos
Trabalhadores (que Deus o tenha) e no grupo de jovens da paróquia local.
O meu trabalho
era muito simples: as peças saiam brutas dos tornos e cabia a mim, entre
outros, fazer o acabamento. Era mais ou menos como polir até ficar na medida
exata. Duas pedras abrasivas giravam em sentido contrário em uma velocidade
alta e eu pressionava a peça de metal entre elas até deixar na medida exata,
calculada em milésimos. Durante a noite, sonhava com minha mão sendo esmagada
por essas pedras, era uma coisa terrível.
No primeiro dia
de trabalho, fui apresentado ao encarregado do setor de acabamento e instruído
a procurá-lo em caso de mudança de peça ou algum problema na máquina. Era um
cara tranquilo, bonachão e sorridente, mas deixou claro que eu deveria parar a
máquina se houvesse algum problema e apenas ele podia “consertar” ou trocar de
peça (trocar de peça era na verdade mudar a regulagem para outro tipo de acessório
e medidas) e era também a única parte do trabalho que exigia criatividade e
raciocínio metódicos, o resto era rotineiro e repetitivo.
No primeiro dia
fiz algumas peças, era muito fácil, embora todos tenham me dito que aquele era
o setor mais difícil, embora não o mais prestigiado, inclusive em termos
financeiros, mas tinha compensações, como, por exemplo, não ter que mexer com
óleo derivado de petróleo. A minha máquina trabalhava com água e um fluido
verde que não me lembro do nome.
Ao concluir meu
primeiro lote de peças (se não me engano para FIAT), parei a máquina e esperei
o “chefe” chegar. Ele chegou, desmontou a base onde a peça era encaixada,
depois mudou a distância entre as pedras de polir, trocou mais duas ou três
peças e começou a regular a medida (essa era a parte mais difícil e
empolgante). No segundo dia, precisei trocar de medida três vezes, porém o “chefe”
tinha várias outras máquinas para regular e nem sempre podia me atender com a
velocidade de que eu precisava (ou queria). Nesses momentos, eu poderia até
sentar e esperar sem que pensassem que estava enrolando, mas se tem uma coisa
que não consigo fazer é sentar e esperar. No segundo dia de trabalho, comecei a
organizar o entorno de minha máquina. Arrumei o armário, limpei as peças, as
chaves que estavam espalhadas, lavei, limpei, varri. Mesmo assim sobrou tempo,
então resolvi desmontar a máquina para adiantar o trabalho, assim o chefe
poderia só remontar com as novas medidas.
O colega do
lado, que entrou na empresa 60 dias antes, alertou-me que não deveria fazer
aquilo, que esse era o trabalho do encarregado. Ele chegou, viu que eu tinha
desmontado a máquina e não disse nada, apenas colocou as novas peças e regulou
a máquina. Depois elogiou minha organização.
Fui fazendo o
que era possível dentro de minha governabilidade e alargando-a todo dia um
pouquinho. No final do primeiro mês eu mesmo desmontava e montava minha
máquina. O encarregado vendo isso me disse um dia: por que não regulou logo de
uma vez?
Eu disse: posso?
E ele disse, não. “Não é nem para desmontar”. Porém, na próxima vez que
precisou regular, fiz quase tudo sozinho e, desse dia em diante, ele só passava
na minha máquina quando não tinha nada que fazer ou quando eu o chamava. Em
três meses, eu já estava regulando as máquinas dos colegas, quando o
encarregado não dava conta ou quando faltava ao trabalho por algum motivo.
Lembrei-me dessa
história porque hoje em dia tenho trabalhado com muitos profissionais de saúde
que dizem não ter governabilidade para isso ou aquilo no trabalho e fico
imaginando que governabilidade, ou melhor, falta de governabilidade é, entre
outras coisas, uma ótima desculpa para “não fazer”, para jogar a culpa em
alguém, reclamar, esperar e nunca ser responsável.
Quando trabalhei
como auxiliar de Enfermagem, no meu primeiro emprego, era o único profissional
auxiliar que sabia passar sonda nasogástrica (na época auxiliar ainda podia
fazer esse procedimento). Dois dias seguidos passei sonda para uma colega. Na
terceira vez que ela pediu eu disse que estava ocupado, mas vou lhe ensinar a
fazer, assim não precisará mais de mim e ela disse: não quero aprender para não
ter que fazer. No primeiro mês como Enfermeiro, no Espírito Santo, fiz um
planejamento para o Pronto Socorro (que nunca foi meu forte). Eu o apresentei à
direção e fui convidado para discutir a situação. Nesse dia fui convidado para
ser Gerente de Enfermagem do hospital e fazer planejamento para todos os
setores. O Diretor ainda acrescentou: “nunca ninguém fez isso aqui”. No
primeiro dia como Enfermeiro em Saúde da Família, perguntei à minha colega com
cinco anos de profissão porque ela não tinha uma sala e diante da resposta
resolvi dar meu jeito. No terceiro dia já tinha uma sala (essa história está
detalhada em: Os caminhos que me trouxeram até aqui – no livro Vivências de
Educação Popular em Atenção Primária à saúde).
Tenho trabalhado,
nos últimos dois anos, com profissionais de saúde da Atenção Básica no curso de
Especialização em Saúde da Família. Na elaboração do projeto, muitos
especializando alegam falta de governabilidade para eliminar objetivos e metas
importantíssimas, como, por exemplo, realizar atividades educativas e
desenvolver trabalho em grupo. Um especializando chegou a dizer que só se
sentia bem com o trabalho clínico, pois era o único que tinha realmente
governabilidade, tudo mais não lhe cabia, mas governabilidade não se lamenta,
constrói-se e alarga-se todo dia um pouquinho, coisa que aprendi com uma Testemunha
de Jeová que tentava me vender uma revista Sentinela em um domingo qualquer.
Ele me disse: “desculpa todo mundo tem uma: quem não quer fazer dá uma
desculpa, quem quer dá um jeito.” Verdade verdadeira, como diria meu pai.
Com tudo que
disse, não estou desconsiderando a falta de infraestrutura, organização,
salários ridículos, condições desumanas de convivência, gestões arbitrárias,
autoritárias, prepotentes, incompetentes, mas mesmo nestas situações (já passei
por todas) quem quer da um jeito, quem não quer dá uma desculpa.
Revisão – Jailson Conceição – Bahia
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
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