Bloc de Educação Popular em Saúde com foco em crônicas, contos e poesias. Reflete o dia a dia de trabalhadores do Sistema Único de Saúde e Saúde Pública e Coletiva. (cotidiano, saúdes, vidas, poéticas, sensibilidades, ternuras, raivas, gritos)
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21 outubro 2016
07 outubro 2016
DAS CINCO ÀS VINTE E DUAS HORAS
Ernande Valentin do
Prado
1
5 horas,
desperto sem sono. O corpo diz que já chega de dormir. Entro no quarto das
meninas: Beatriz dorme de lado com o celular na mão e o fone nas orelhas. Alice
está toda enrolada em si mesma, quase em posição fetal.
Frio na
primavera de João Pessoa?
Puxo a
colcha e lhe cubro.
2
5h02min,
sento na linda cadeira antiga de Larissa. Herança de família. Na frente meu
computador com mais de seis anos de uso, mas ainda perfeito para o que preciso.
Decidido terminar o projeto do doutorado, do qual já havia desistido. Faltam
poucas horas para a inscrição se encerar.
3
Pouco
antes do meio dia, no ponto da Praça das Muriçocas, uma pancada de estudantes
entra no ônibus. A minha volta, um em cada banco, sentam três meninos de cabelos
raspados, tipo militar, dois do lado, um na frente. O de trás, inquieto,
pergunta, dando um peteleco na aba do boné do outro:
- Vai
deixar o cabelo crescer, depois?
- Vou.
- Tipo
Black Power?
- é.
- Eu
também queria fazer isso, mas não tenho coragem.
Depois
volta-se para o lado e vê que o outro colega abriu um livro.
- O que
tá lendo?
O outro
vira a capa: Assassin's Creed.
- Eu
prefiro ler coisas edificantes. Diz ele, ao ver a capa do livro.
- Eu
também, mas esse é a história do jogo, aí resolvi ler.
4
Meio
dia, ando pela calçada, entre o ponto de ônibus e minha casa. No caminho entre
a Avenida Epitácio e a Raul Carneiro, tenho dificuldade em andar nas calçadas,
sempre ocupadas por Jeep, Toyota, Ford, Chevrolet, Hyundai e mais uma variedade
de carros que nem reconheço, mas que também não vejo diferença entre um e
outro, nem nas cores.
Na
avenida o BMW branco quer disputar espaço comigo em cima da faixa de pedestre,
coisa que está se tornando comum por aqui.
Na Rua
Rita de Alencar Carvalho Luna, até chegar na Benjamim Maia, passo por entre
edifícios de alto padrão (financeiro). Na calçada, por entre os condomínios e
mansões, um imenso depósito de lixo (restos de coisas que ocupam o tempo e a
vida): pedaços de móveis carcomidos por cupim e mofo, caixas de papelão e
isopor de eletrodomésticos novos, telas de computador quebradas, baterias de
celular, secador de cabelos, espelhos quebrados, resto de festas infantis
(bexigas coloridas ainda cheias, que Alice adoraria estourar), entulhos de
construção de uma clínica chique, que ainda nem começou a atender a clientela
de alta renda, invadem a rua e os terrenos que esperam valorização no mercado.
A montoeira monstruosa só não é maior porque catadores de materiais reciclados
fazem plantão no local, disputando espaço, com suas carrocinhas, com os novos
Jeep, BMW e Mercedes, que invadiram João Pessoas nos últimos anos. Limpam de
graça a sujeira da burguesia. O que me lembra um velho slogan, mas ainda
válido:
- Contra
Burguês, vote 16.
5
Durante
o almoço em família, sempre gostoso, Alice, por conta de um comentário de
Larissa, diz:
- Os
negros se discriminam, pai.
- Por
que diz isso, Alice? Pergunta a mãe.
- Óh! Eu
tenho um colega, na escola, que diz que queria ter a pele branquinha, como a
minha, que acha a dela feia.
- Por
que você não dá a “Menina bonita do laço de fita” para ela?
- Eu não
posso dar esse livro para ela, mãe. Ele mudou a minha vida.
- Então
empresta...
6
Às 16
horas, grito da sala, já com a chave da porta não mão:
- Amor,
vou à padaria, quer algo especial?
- Quero
um bilhete da mega sena premiado.
7
16h20min,
descendo pela Rua Rita de Alencar Carvalho Luna (pela segunda vez no dia),
observo as empregas domésticas, jovens, senhoras na terceira idade, passeando
pela calçada, hora do pipi das cadelas das patroas, que cuidam como se fossem
suas.
Inevitável
pensar: por quase nada cuidam de cães que não são seus, como um dia já cuidaram
dos filhos desta mesma burguesia. Inevitável não lembrar do filme: “Que horas
ela volta”, o mais recente cinema, de verdade, que vi na tv.
8
O ônibus
das 16h30min, não passou. As 16h45min, vem o 5605, está lotado, não tem como
avançar pelo corredor. Fico entre a porta e o motor. Do outro lado o motorista.
Mas ao menos está de bom humor, é muito calmo, não dirige como louco, não freia
na reta, como faz a maioria, para ajeitar a carga, talvez.
No ponto
seguinte, vendo a mulher solitária acenar, comenta bem humorado:
- Vou
parar para ela ver que não tem como entrar.
Mas a
mulher que acenou entra. Passa uma vasilha, que carrega consigo, para outra
mulher pôr em cima da proteção do motor.
Quer
interessante, não puder evitar o pensamento:
- Uma
senhorinha com piercing no nariz. Preconceituosamente achava que isso era coisa
só de adolescentes.
Quando
avanço no aperto do coletivo, paro próxima a porta do meio. Uma mulher de
cabelos pintados de amarelo diz, para o rapaz de camisa azul, talvez uniforme
de um condomínio:
- E as
eleições?
- Não
voto.
- Você
justifica?
- Não.
Prefiro pagar multa.
- E
quanto paga?
- Esse
ano vai ser R$ 4,50.
- E paga
onde?
- Nos
correios.
- Não é
melhor justificar? Pergunta a mulher do cabeço amarelo, talvez achando a multa
cara ou tão ruim ir ao correio quanto na boca da urna.
- Não!
Não vale a pena nem ir na urna. Ainda se tivesse ao menos um que valesse a
pena, mas não tem.
9
18
horas, na recepção da Unidade de Saúde, olho para mulher com o bebê no colo.
- Não
tenho régua para medir o tamanho da criança. Digo morrendo de vergonha.
- Você
me pediu para vir aqui e eu perdi a viagem?
- A
senhora está certa. Desculpe-me, eu achei que ia conseguir fazer um exame
completo.
10
22
horas, deito, ligo a TV decidido ver o primeiro episódio do novo seriado:
“Unidade Básica”. Melhor do que esperava, mas unidade de Saúde no Sistema Único
de Saúde, na periferia, que consegue contratar, em três meses, três médicos
diferentes, mas não tem enfermeira?
Absurdo,
mas não dá para ser perfeito.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
30 setembro 2016
DEZ HISTÓRIAS SOBRE UNIVERSALIDADE
1
Dona Cleide acordou bem cedo na quarta-feira.
Finalmente juntou todas as coragens necessárias: foi fazer o bendito exame
Preventivo do Câncer de Colo de Útero.
Caminhou até a Unidade de Saúde de seu bairro,
que não ficava longe. A moça da recepção, sem desviar o olhar da tela do
computador, disse:
- Hoje não vai ter exame porque o ar
condicionado da sala não tá funcionando.
2
Marilda passou a noite com dor de dente. Um
siso insistia em rasgar sua gengiva. Fez febre e jura que teve alucinações com
Freddy Krueger lhe perseguindo. O dia nem tinha amanhecido completamente quando
chegou à Unidade de Saúde aonde sabia que poderia ser atendida como fora de
área, já que morava em local descoberto, como eles diziam.
Viu quando a dentista chegou, por volta as oito
e meia, já a conhecia de outros atendimentos. Até bom dia lhe respondeu. A
odontóloga, moça bem novinha, parecendo recém formada, entrou no consultório e
em alguns minutos saiu e anunciou:
- Hoje não vou atender ninguém: tá faltando
touca de novo.
3
Luzia caminhou da Cohab 4 até o Centro de
Saúde, puxando pela mão sua escadinha de crianças: Jeferson de 8 anos, Clarice
de 6 anos, Simone de 4 anos e Renato de 3 anos. Uma fotografia linda de ver.
Todos arrumadinhos, limpinhos e comportados. Ela vinha na frente, com um bolsa
atravessada no peito.
Na recepção a moça perguntou:
- Cadê o cartão SUS das crianças?
Luzia procurou na bolsa, virou, revirou.
Despejou todo o conteúdo no balcão e não achou.
- Sem cartão SUS não tem como achar o
prontuário, mas pode voltar mais tarde, que tem vaga.
Luzia voltou para casa puxando sua escadinha
bonita de ver, embora a moça da recepção não tenha notado, ocupada que estava
tentando convencer o segurança da unidade a comprar-lhe um perfume do catálogo
da Avon.
4
Domingo Dona Sônia acordou com um derrame no
olho esquerdo. Só percebeu quando olhou no espelho e viu que a parte branca do
olho estava toda tomada de vermelho. Assustada foi à Unidade de Saúde. A moça
da recepção, ocupada selecionando os prontuários das pessoas que estavam
agendadas, nem olhou em seu rosto e foi logo dizendo:
- Hoje não tem mais vaga.
Dona Sônia, que não era de insistir, voltou
para casa. No dia seguinte, bem cedo, estava na unidade de saúde. Do portão foi
despachada pela mocha responsável pela limpeza:
- Nem adianta insistir: hoje a médica só atende
gestantes.
Foi para casa mais uma vez. No caminho passou à
igreja e rezou um pai nosso e uma Ave Maria. No dia seguinte, ainda
acreditando, foi à unidade de saúde. Ao chegar estranhou, não encontrou ninguém
aguardando ser atendido. Na recepção só a moça do primeiro dia:
- Hoje a médica está fazendo visita domiciliar.
- Minha fia, disse calmamente Dona Sônia, eu tô
precisando muito de ver a médica.
- Mas hoje é dia de visita domiciliar.
- Eu espero ela voltar, minha fia...
- Ela nem passa aqui hoje, vai direto de casa
para as visitas e de lá vai embora.
- Não tem outra pessoa com quem eu falá?
- Não, a enfermeira vai junto com ela para as
visitas e a Técnica de Enfermagem tá doente, não veio hoje.
Dona Sônia saiu, de novo, da unidade de saúde
sem atendimento, por via das dúvidas, no caminho de casa, passou na igreja.
5
Dona Esmeralda bateu à porta do Enfermeiro. Lá
de dentro ouviu a voz:
- Pode entrar, tá aberta.
A mulher, de pele muito bronzeada, rugas ao
redor dos olhos, mais de um metro e oitenta de altura, aparentando uns 45 anos,
entrou tímida. Não sentou na cadeira a sua frente. Falou em pé.
- Eu queria fazer o preventivo de câncer.
- Nossa! Admirou-se o enfermeiro,
exageradamente, talvez por já ser quase meio dia. E acrescentou:
- Qual seu nome?
- Esmeralda.
- Eu acabei de terminar as coletas, já
desmontei a sala. Agora só na próxima semana.
- Eu me atrasei. Ia vir de carona com o ônibus
das crianças, mas não consegui e vim caminhando.
- Aonde a senhora mora? Questionou o
Enfermeiro, ainda mais preocupado com a papelada que preenchia do que com a
mulher à sua frente.
- Moro no distrito do Tuiuiú.
- Sei, lá não é nossa área. A senhora precisa
procurar a Unidade de Saúde da Família da área rural.
- Eu sei, mas é que aqui eu soube que fazem o
preventivo toda sexta-feira e é o dia que eu posso vir. Disse Dona Esmeralda.
- Mas a senhora pode procurar a outra unidade,
eles lhe dão uma declaração de comparecimento, não vai perder o dia de trabalho.
- Tá bom, eu vou. Só vim mesmo porque tava
sentido uma dor no pé da barriga.
Dona Esmeralda se despediu e saiu, dando as
costas ao homem.
Esquecendo seus papeis, seus relatórios, sua
sala desmontada, o enfermeiro deixou-se recostar na cadeira por alguns
segundos, atormentado com o que tinha acabado de fazer: que inferno, pensou ele
no seu íntimo. A necessidade não tem adstrição.
Saiu correndo pela Unidade de Saúde, já vazia
àquela hora, alcançou Dona Esmeralda já na calçada, do outro lado da rua.
- Dona Esmeralda, gritou ele, arrumando o
cabelo e o jaleco branco que enroscou no portão enferrujado da unidade, onde
ficou pendurado um pedaço de pano branco e um botão.
- Pode voltar à minha sala? Vou dar um jeito de
fazer seu exame, assim não vai ter perdido sua caminhada.
6
A moça na recepção riu nervosa, irritada,
sentido o mal cheiro do homem. A moça da limpeza passou a vassoura em seus pés.
Outras pessoas, que esperavam a vez de ser atendidas, taparam as narinas.
- O que o senhor quer? Disse a recepcionista.
- Tó com dor no pé da barriga, disse o homem em
trajes maltrapilhos.
- Tá com o cartão SUS?
- Não tenho. Respondeu ele, instintivamente procurando
nos bolsos.
- Qual seu endereço?
- Eu moro na Rua, durante o dia ando por aí, de
noite durmo embaixo daquela marquise, onde a senhora me vê todo dia, quando vem
trabalhar.
- Tem comprovante de endereço?
- Tenho. A senhora pode comprovar, já que me vê
lá todo dia.
- Não é assim que funciona, tem que ter o
papel, tem que ter Agente de Saúde que lhe visita uma vez por mês. Ironizou com
um sorriso no canto da boca, a recepcionista, olhando para as usuárias,
esperando apoio moral.
Elas riram desconcertados.
- Você não pode ser atendido aqui, disse a
recepcionista. Precisa procurar o consultório de Rua. Pode ir lá no Centro, na
Secretaria de Saúde, e procurar saber aonde eles atendem.
- Mas eu moro aqui, moça, e tô com muita dor.
Insistiu o homem.
- Aqui a gente só faz saúde da família e o
senhor não tem família, tem?
7
- O seu atendimento, meu senhor, será feito no
CAIS Mangabeira. Disse a assistente administrativa da Unidade de Saúde.
- Cais, não sei onde é, eu moro faz pouco tempo
por aqui. Pode por favor me explicar onde é e o que é?
- Não sei explicar. O senhor procura, disse a
mulher, já virando-se para atender à próxima pessoa.
- Então não precisa explicar, só escreve aqui o
endereço que eu acho. Disse conformando-se o rapaz.
- Eu não sei o endereço e nem tenho tempo de
procurar. O senhor que dê um jeito. Não tenho que fazer mais que isso.
8
A enfermeira da Estratégia de Saúde da Família
disse, referindo-se a mulher que andava pela cidade enrolada em um colchão
velho:
- Eu não conheço esse caso.
O Conselheiro tutelar afirmou, sem nem ao menos
sentar:
- É caso de interdição, não sei mais o que
fazer com essa senhora.
A diretora do Centro de Assistência
Psicossocial, referindo-se ao mesmo caso, disse:
- Já conheço a situação faz anos. A paciente
não adere ao tratamento. Não tem nada que o CAPS possa fazer.
A assistente social, muito consciente,
enfatizou:
- Eu já fiz tudo que podia por ela. Agora só
posso rezar.
9
Na reunião, o coordenador da equipe disse:
- Vamos fazer uma visita à delegacia. Parece
que tem muita gente lá precisando de cuidados. E como tá em nossa área, vamos
lá ver.
Ninguém questionou, ninguém estranhou, ninguém
disse que “bandido bom é bandido morto”.
- Que dia vai ser? Perguntou a técnica de
enfermagem, com a agenda na mão.
A nutricionista perguntou:
- Vamos só uma vez ou vamos voltar outros dias?
- Eu sempre achei que deveríamos visitar a
delegacia, tem preso de todo lado lá, e a maioria nem família tem aqui na
cidade. Disse o Agente de Saúde da microárea da delegacia.
Depois da reunião a Médica da equipe chamou o
coordenador para conversar. Sozinhos em sua sala, ela disse:
- Tem tanta coisa para fazer e você ainda
inventa mais isso? Desabafou deixando-se cair na cadeira, muito irritada.
- Por que não falou isso na frente de todos os
outros?
- Não vou me expor na frente dessa gente.
- Esse é o nosso trabalho. Disse sem rodeios o
coordenador, já abrindo a porta para sair da sala.
10
A nova enfermeira, contratada recentemente para
substituir o colega que fora demitido por não fazer campanha eleitoral, vendo a
programação da equipe para o mês, disse:
- Por que a reunião com as gestantes é feita no
salão paroquial da igreja?
- As irmãs já tinham um grupo de gestantes,
disse a Agente Comunitária de Saúde, e para não ter dois grupos, o enfermeiro
achou melhor fazer os encontros junto com elas.
- Eu não vou fazer assim. Disse secamente a
enfermeira. Vamos montar nosso próprio grupo.
Antes que a Agente de Saúde pudesse abrir a
boca para argumentar, a enfermeira novata disse:
- Eu nem sou católica.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
23 setembro 2016
DEZESSETE E QUARENTA E CINCO
![]() |
Foto: Sem trânsito. Larissa Mendonça Bernini, 2016. |
Ernande Valentin do Prado
17:45, em frente a
Universidade Federal da Paraíba, atravesso a faixa de pedestre, ao lado do
girador. Vou esperar uma carona no outro ponto, em frente ao restaurante do Orlandinho.
O motoqueiro para, civilizadamente, como diz a lei de transito, mas o outro,
que vem atrás, felizmente em baixa velocidade, que neste horário o transito tá
quase parado em João Pessoa, bate nele. Ainda olha com cara feia, culpando-o pelo
acidente. Talvez até pensando: “seu zé
ruela, parar para pedestre, onde já se viu?”
- Eu parei para o
pedestre, que é prioridade. Diz o primeiro motoqueiro, sem se alterar,
justificando-se.
Aceno agradecendo
a civilidade que o segundo motoqueiro não teve.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]
18 março 2016
QUANDO DECIDI SER ENFERMEIRO
![]() |
Logo do Centro Acadêmico de Enfermagem da PUCPR |
Na minha frente tem uma mulher de 26 anos,
morena, cabeços muitos pretos. Geralmente está alegre, animada, apesar de tudo.
Hoje ela está nua, como esteve nos últimos dias, deitada de costas na cama,
única posição em que consegue ficar. Da virilha até a coxa, do lado esquerda,
uma ferida aberta em carne viva. São 45 dias de internação no sexto andar do Hospital
Cajuru em Curitiba, Paraná.
Ela começa a dar sinais de que pode não estar
aguentando mais, que está perdendo a fé que voltará para casa, que ficará de pé
novamente. Já estou cuidando pessoalmente dela há 15 dias, mas não vejo nenhuma
melhora da ferida, cada dia mais ela queixa-se de dores por qualquer
movimento.
Meu nome é Ernande Valentin do Prado, eu sou
Auxiliar de Enfermagem recém-formado e recém contratado nesta instituição.
Trabalhar aqui, no hospital mais complicado da cidade foi opção minha, foi onde
achei que poderia devolver à população o investimento que fizeram no meu curso.
Estamos em março do ano 2000, são 11 horas e 30
minutos, bem marcado no meu relógio. Mais uns minutos e começo a distribuir as
mediações. Mas no meio do caminho tinha
uma pedra, quer dizer, uma enfermeira que gostava de lembrar-me, de tempos em
tempos, que era minha chefe, que eu deveria lhe obedecer. Hoje parece ser um
desses dias:
- Por que demora tanto no quarto 22?
- Se fosse lá às vezes, nem precisaria
perguntar. Iria ver melhor que a mulher lá dentro, a família dela, precisa muita
atenção.
- E seus outros pacientes, diz a enfermeira,
esperando encontrar uma falha onde se agarrar.
- Todos estão sendo atendidos conforme suas
necessidades. Nenhum caso tão sério hoje, digo sem disfarça minha irritação.
- Você não pode fazer isso...
- Isso o que, pergunto irritado.
- Dar atenção especial para os pacientes, diz a
Enfermeira, sentada atrás de sua mesa, sem alterar a voz.
- E por que não, pergunto de forma agressiva,
indignado.
- Por que temos que dar tempo igual aos
pacientes. Responde calmamente a chefe.
- Quem disse isso, pergunto mais indignado
ainda com uma afirmação que me parecia completamente sem pé nem cabeça.
E acrescento:
- Nem todas as pessoas são iguais, por isso não
podem ser tratadas da mesma forma. Cada um tem um caso, uma história, não têm
necessidades iguais, não podem ser tratadas de forma igual. Pessoas desiguais,
com necessidades desiguais precisam ser tratadas de formas desiguais para serem
iguais.
- Você pensa assim, disse a Enfermeira, ainda
muito calma.
- Penso, respondo ainda mais irritado com a
calma dela.
- Então vá fazer o curso de Enfermagem e aí vai
poder tomas suas próprias decisões. Enquanto isso, quem decide aqui sou eu e
deve dar o mesmo tempo para todos os pacientes.
- Então tá, respondo calmamente e saio da sala.
Três meses depois eu estava matriculado no
curso de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR para
os íntimos. Antes tentei fazer um cursinho pré-vestibular muito barato. As
aulas eram uma zona de prostituição no Centro de Curitiba. Matriculei-me e
frequentei quase três semanas, não de forma contínua, mas juro que tentei ir às
aulas. Alguns professores eram muito engraçados e me distraia com eles, embora
não conseguisse decorar nada do que eles me pediam.
Outros só me revoltavam, como o de História. A
primeira vez que ele me irritou foi quando, em uma aula sobre a segunda guerra
mundial, disse que Hitler era um “Zé Mané fracassado na vida que endoidou,
pirou o cabeção e fez uma guerra”.
Hitler, Zé Mané?
Achei um desrespeito muito grande à humanidade,
à todas as pessoas exterminadas por ele. Como pode um Zé Mané ter praticado
tanto mal, ter espalhado o terror e convencido uma nação inteira que matar
Negros, Comunistas, Homossexuais e Judeus era o que melhoraria suas vidas?
Mas aguentei firme. Pensei – não preciso
acreditar no que o professor fala, só responder a prova do vestibular. Porém,
quando em uma aula sobre o comunismo, o professor disse que Karl Marx era um
sujeito que explorava o sogro para se manter financeiramente, decidi que não
frequentaria mais o cursinho. Inclusive pedi meu dinheiro de volta e tive muito
trabalho para conseguir. Mesmo desconfiando que assim não conseguisse passar no
vestibular.
Encarei três dias de provas sem escutar as
baboseiras do professor de história, mas por conta disso não escutei mais nada,
nem as aulas do engraçado professor de química.
Estava trabalhando à noite no dia da divulgação
dos resultados do vestibular. As 19 horas e 30 minutos, estou na farmácia, que
funcionava no subsolo. A funcionária está nervosa, ainda pouco me conhece e eu
a ela. Atrás do guichê, mexe sem parar no computador e ignora minha presença. Estou
ficando nervoso, mas quero evitar que minha fama de criador de caso se espalhe
mais ainda.
- O que está acontecendo, pergunto com voz
simpática (eu acho).
Outras pessoas estão chegando, já se forma uma fila.
- Meus filhos fizeram o vestibular, quero ver o
resultado.
Fico curioso, também queria ver o resultado.
- Tem internet aí, pergunto já esquecendo o que
estava esperando.
- Tem.
- Seus filhos fizeram vestibular para que?
- A menina fez para Enfermagem, respondeu ela.
- Eu também fiz, digo ansioso. Será que pode
ver se meu nome está aí?
Ela olhou rápido meu nome no crachá, depois
baixou os olhos e para tela do computador e disse:
- Passou.
- Tá falando sério?
- Tô. Seu nome não é Ernande Valentin do Prado?
- É...
- Passou, vai estudar com minha filha.
- Posso entrar aí e ver na tela, pergunto
incrédulo e esperando ela dizer não. Na porta tinha uma placa com letras bem grande:
não entre.
- Assim você quer demais, meu amigo. Você sabe
que não pode entrar na farmácia. Disse isso abrindo a porta e dando a entender
que eu poderia entrar.
Olho e meu nome estava na lista de aprovados.
Passei, vou ser enfermeiro.
Mesmo contente com a notícia, pensei: isso vai
custar muito caro: serão quatro anos trabalhando à noite, estudando de dia sem
dormir, economizando tudo que posso, juntando tudo para poder pagar as
mensalidades.
Pelo menos, quando concluir, pensei iludido,
vou poder organizar o trabalho como acredito que precisa ser feito.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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