Mostrando postagens com marcador reflexão. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador reflexão. Mostrar todas as postagens

21 outubro 2016

DEZ HISTÓRIAS SOBRE EQUIDADE

                                                                                                                                                                    Ernande Valentin do Prado
Destaque. Ernande, 2015

1

As oito horas ela atendeu a gestante que já estava agendada e a encaminhou para fazer os exames de sangue no laboratório do centro da cidade. Escreveu o endereço, explicou a hora de chegar e a preparação necessária.
As oito e quarenta e cinco atendeu outra gestante, também agendada. Encaminhou para fazer os mesmos exames no mesmo laboratório do centro da cidade. Escreveu o endereço, explicou a hora de chegar, que ônibus pegar detalhadamente e deu os vales-transportes. Falou sobre a preparação necessária.
As dez horas visitou Marina, com 36 semanas de gestação. Ela havia faltado a consulta. Em sua casa, depois de uma rápida conversa, concluiu que era preciso chamar o Samu. Quando a ambulância chegou, foi com ela para o hospital e acompanhou seu atendimento. Só voltou para Unidade de Saúde quando deixou Marina de volta em casa.

2

A enfermeira, da Estratégia Saúde da Família, diante da indagação do estudante, disse, sem rodeios:
- Não cuido de doido. Para isso tem o CAPS.
3
Na reunião em que se discutiu a divisão das tarefas necessárias para receber os recursos do incentivo financeiro do PMAQ, ele não apareceu. Disse que estava sentindo-se mal. Na reunião, realizada três meses depois, para comemorar o bom trabalho realizado por (quase) todos, ele compareceu e disse:
- A divisão não pode ser igual. Eu estudei mais, tenho mais responsabilidades. Acho que tenho direito a uma fatia maior.

4

Dona Conceição morava no morro do penteado, no tempo em que quem mandava era o Ladeira. Bom moço, nunca matou ninguém sem motivo, dizia ela.
Depois que os traficantes foram expulsos, chegou água encanada, saneamento básico, asfalto nas ruas e até uma loja das Casas Bahia e uma Agência da Caixa Econômica Federal. Algumas casas foram desapropriadas, na parte mais baixa e construíram praças, uma academia da terceira idade.
- Eu ia lá quase todo dia me exercitar. Disse ela.
Do lado de sua casa foi erguida a Unidade de Saúde, que tem o nome da mãe do governador, de quem Dona Conceição nunca ouviu falar que já tenha ido ao menos uma vez na comunidade.
Semana passada ela recebeu o primeiro carne do IPTU.
- Um luxo, nunca achei que ia ter que pagar IPTU de meu barraco.
Agora a favela tá urbanizada e, além do IPTU, tem a conta de água, esgoto e energia, que antes não tinha. Com o dinheiro da aposentadoria, sua única fonte de renda, ela acha que não vai conseguir dar conta de continuar morando no morro. 
- Dá dó, sempre morei aqui, mas acho que vou ter que vender minha casinha.
Dona Conceição ouviu falar de um Alemão que tá comprando tudo que acha por ali e fazendo hotel. Ele paga bem, lhe contaram.
- É triste, sempre morei aqui! Disse dona Conceição, olhando para o chão. Mas acho que vou ter que me mudar para mais longe, ouvi  dizer tão formando, lá para os arredores do rio, uma nova comunidade. Não tem rua para lá, nem transporte, mas aqui também não tinha, quando vim prá cá. Conforma-se Dona Conceição.

 5

- Para realizar festa não tem dinheiro, disse o coordenador.
Mas como as crianças mereciam, os profissionais se cotizaram e compraram bolo, material de decoração, presentes e contrataram uma banda de forró. As famílias e as crianças se divertiram a rodo. Os profissionais também. Até Dr. Fábio, sempre tão sério e distante, dançou com a presidente do conselho local de saúde.
Lá pelas 11 horas chegou a mulher do prefeito, toda elegante. Discursou e tirou foto com as crianças, com os servidores.
As fotos da festa que ela fez já estão nas redes sociais.

6

Na fila ele foi ouvindo as respostas da recepcionista da Unidade de Saúde do Bairro:
Para a senhora de cabelos grisalhos e vestido florido, ela disse:
- Não tem captopril. Volte semana que vem.
Para jovem senhora, de cabeços presos e shorts jeans, ela disse:
- Fazer preventivo não dá esse mês, tá faltando o material de coleta e já faz tempo.
Para gestante, um pouco acima do peso, vestido discreto até a canela, ela disse:
- Metildopa? Ih!, tadinha, acabou agorinha. Se eu soubesse que você vinha, tinha guardado para você.
Para a senhora, de cabelos pretos, bem pintados, óculos escuros, ela disse:
- Azatioprina. Nem sei que medicação é essa. Aqui não tem não.
Mas a mulher respondeu:
- Então se informa, minha filha. Eu sou desembargadora do estado e tenho uma ordem judicial para receber essa medicação agora.

7

- A gente recebeu uma doação de medicações, vem ver. Disse a Técnica de Enfermagem, enfiando a mão nas caixas de papelão.
- Veja isso aqui! Disse o colega: é super caro, nunca tem no SUS.  Vou levar, às vezes eu uso.
- Minha irmã usa esses aqui, vou levar também. Disse a outra.

8

Semana passada, o filho de seu Clovis, vendedor de frutas de porta em porta, foi julgado pela acusação de ter atropelado Silvia Maria, estudante de 15 anos em cima da faixa de pedestres e não prestar socorro.
Vai ficar preso por três anos.
Na mesma semana, o filho do Seu Ademar, da construtora Casa Forte, foi julgado pelo mesmo crime: atropelou Gorete, empregada doméstica de 42 anos em cima da calçada, na mesma rua. Também não prestou socorro. Testemunhas dizem que ele, antes de atropelar a mulher, ainda gritou: sai da frente, louca. O agravante:  ele não tinha carteira de motorista e estava embriagado, segundo três testemunhas diferentes.
Vai prestar serviços comunitários por seis meses.

9

Aqui não se discrimina ninguém, falou o homem vestido de banco e com ar de autoridade. E continuou seu discurso matinal: todo mundo vai ser atendido por ordem de chegada, até idosos, crianças e gestantes, por que não é justo passar ninguém na frente.

 10

- Sebastião Antenor de Souza. Gritou uma vez, bem alto, o médico de dentro do consultório. Ninguém se mexeu na sala de espera. Por isso ele gritou de novo:
- Sebastião Antenor de Souza.
- O que deu neste médico hoje, ele nunca foi de chamar ninguém, o próximo é que sempre entra por conta própria? Reparou Dona Raimunda e comentou com as Técnicas de Enfermagem, que rondavam ali pela recepção.
- Vou lá ver. Disse Amanda, a Técnica de Enfermagem. Mas antes de chegar no consultório ouviu de novo, agora mais alto ainda:
- Sebastião Antenor de Souza.

- Doutor, não tem nenhuma Sebastião aqui, só tem a Dona Raimunda e a Walleska, do salão de beleza, esperando atendimento. Disse a Técnica, mostrando uma folha com a lista de espera.  

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

07 outubro 2016

DAS CINCO ÀS VINTE E DUAS HORAS


Ernande Valentin do Prado

1

5 horas, desperto sem sono. O corpo diz que já chega de dormir. Entro no quarto das meninas: Beatriz dorme de lado com o celular na mão e o fone nas orelhas. Alice está toda enrolada em si mesma, quase em posição fetal.
Frio na primavera de João Pessoa?
Puxo a colcha e lhe cubro.

2

5h02min, sento na linda cadeira antiga de Larissa. Herança de família. Na frente meu computador com mais de seis anos de uso, mas ainda perfeito para o que preciso. Decidido terminar o projeto do doutorado, do qual já havia desistido. Faltam poucas horas para a inscrição se encerar.

3

Pouco antes do meio dia, no ponto da Praça das Muriçocas, uma pancada de estudantes entra no ônibus. A minha volta, um em cada banco, sentam três meninos de cabelos raspados, tipo militar, dois do lado, um na frente. O de trás, inquieto, pergunta, dando um peteleco na aba do boné do outro:
- Vai deixar o cabelo crescer, depois?
- Vou.
- Tipo Black Power?
- é.
- Eu também queria fazer isso, mas não tenho coragem.
Depois volta-se para o lado e vê que o outro colega abriu um livro.
- O que tá lendo?
O outro vira a capa: Assassin's Creed.
- Eu prefiro ler coisas edificantes. Diz ele, ao ver a capa do livro.
- Eu também, mas esse é a história do jogo, aí resolvi ler.

 4

Meio dia, ando pela calçada, entre o ponto de ônibus e minha casa. No caminho entre a Avenida Epitácio e a Raul Carneiro, tenho dificuldade em andar nas calçadas, sempre ocupadas por Jeep, Toyota, Ford, Chevrolet, Hyundai e mais uma variedade de carros que nem reconheço, mas que também não vejo diferença entre um e outro, nem nas cores.
Na avenida o BMW branco quer disputar espaço comigo em cima da faixa de pedestre, coisa que está se tornando comum por aqui.
Na Rua Rita de Alencar Carvalho Luna, até chegar na Benjamim Maia, passo por entre edifícios de alto padrão (financeiro). Na calçada, por entre os condomínios e mansões, um imenso depósito de lixo (restos de coisas que ocupam o tempo e a vida): pedaços de móveis carcomidos por cupim e mofo, caixas de papelão e isopor de eletrodomésticos novos, telas de computador quebradas, baterias de celular, secador de cabelos, espelhos quebrados, resto de festas infantis (bexigas coloridas ainda cheias, que Alice adoraria estourar), entulhos de construção de uma clínica chique, que ainda nem começou a atender a clientela de alta renda, invadem a rua e os terrenos que esperam valorização no mercado. A montoeira monstruosa só não é maior porque catadores de materiais reciclados fazem plantão no local, disputando espaço, com suas carrocinhas, com os novos Jeep, BMW e Mercedes, que invadiram João Pessoas nos últimos anos. Limpam de graça a sujeira da burguesia. O que me lembra um velho slogan, mas ainda válido:
- Contra Burguês, vote 16.

5

Durante o almoço em família, sempre gostoso, Alice, por conta de um comentário de Larissa, diz:
- Os negros se discriminam, pai.
- Por que diz isso, Alice? Pergunta a mãe.
- Óh! Eu tenho um colega, na escola, que diz que queria ter a pele branquinha, como a minha, que acha a dela feia.
- Por que você não dá a “Menina bonita do laço de fita” para ela?
- Eu não posso dar esse livro para ela, mãe. Ele mudou a minha vida.
- Então empresta...

6

Às 16 horas, grito da sala, já com a chave da porta não mão:
- Amor, vou à padaria, quer algo especial?
- Quero um bilhete da mega sena premiado.

7

16h20min, descendo pela Rua Rita de Alencar Carvalho Luna (pela segunda vez no dia), observo as empregas domésticas, jovens, senhoras na terceira idade, passeando pela calçada, hora do pipi das cadelas das patroas, que cuidam como se fossem suas.
Inevitável pensar: por quase nada cuidam de cães que não são seus, como um dia já cuidaram dos filhos desta mesma burguesia. Inevitável não lembrar do filme: “Que horas ela volta”, o mais recente cinema, de verdade, que vi na tv.

8

O ônibus das 16h30min, não passou. As 16h45min, vem o 5605, está lotado, não tem como avançar pelo corredor. Fico entre a porta e o motor. Do outro lado o motorista. Mas ao menos está de bom humor, é muito calmo, não dirige como louco, não freia na reta, como faz a maioria, para ajeitar a carga, talvez.
No ponto seguinte, vendo a mulher solitária acenar, comenta bem humorado:
- Vou parar para ela ver que não tem como entrar.
Mas a mulher que acenou entra. Passa uma vasilha, que carrega consigo, para outra mulher pôr em cima da proteção do motor.
Quer interessante, não puder evitar o pensamento:
- Uma senhorinha com piercing no nariz. Preconceituosamente achava que isso era coisa só de adolescentes.
Quando avanço no aperto do coletivo, paro próxima a porta do meio. Uma mulher de cabelos pintados de amarelo diz, para o rapaz de camisa azul, talvez uniforme de um condomínio:
- E as eleições?
- Não voto.
- Você justifica?
- Não. Prefiro pagar multa.
- E quanto paga?
- Esse ano vai ser R$ 4,50.
- E paga onde?
- Nos correios.
- Não é melhor justificar? Pergunta a mulher do cabeço amarelo, talvez achando a multa cara ou tão ruim ir ao correio quanto na boca da urna.
- Não! Não vale a pena nem ir na urna. Ainda se tivesse ao menos um que valesse a pena, mas não tem.

9

18 horas, na recepção da Unidade de Saúde, olho para mulher com o bebê no colo.
- Não tenho régua para medir o tamanho da criança. Digo morrendo de vergonha.
- Você me pediu para vir aqui e eu perdi a viagem?
- A senhora está certa. Desculpe-me, eu achei que ia conseguir fazer um exame completo.

10

22 horas, deito, ligo a TV decidido ver o primeiro episódio do novo seriado: “Unidade Básica”. Melhor do que esperava, mas unidade de Saúde no Sistema Único de Saúde, na periferia, que consegue contratar, em três meses, três médicos diferentes, mas não tem enfermeira?
Absurdo, mas não dá para ser perfeito.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

30 setembro 2016

DEZ HISTÓRIAS SOBRE UNIVERSALIDADE

Folhas molhadas. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

1

Dona Cleide acordou bem cedo na quarta-feira. Finalmente juntou todas as coragens necessárias: foi fazer o bendito exame Preventivo do Câncer de Colo de Útero.
Caminhou até a Unidade de Saúde de seu bairro, que não ficava longe. A moça da recepção, sem desviar o olhar da tela do computador, disse:
- Hoje não vai ter exame porque o ar condicionado da sala não tá funcionando.

2

Marilda passou a noite com dor de dente. Um siso insistia em rasgar sua gengiva. Fez febre e jura que teve alucinações com Freddy Krueger lhe perseguindo. O dia nem tinha amanhecido completamente quando chegou à Unidade de Saúde aonde sabia que poderia ser atendida como fora de área, já que morava em local descoberto, como eles diziam.
Viu quando a dentista chegou, por volta as oito e meia, já a conhecia de outros atendimentos. Até bom dia lhe respondeu. A odontóloga, moça bem novinha, parecendo recém formada, entrou no consultório e em alguns minutos saiu e anunciou:
- Hoje não vou atender ninguém: tá faltando touca de novo.
3
Luzia caminhou da Cohab 4 até o Centro de Saúde, puxando pela mão sua escadinha de crianças: Jeferson de 8 anos, Clarice de 6 anos, Simone de 4 anos e Renato de 3 anos. Uma fotografia linda de ver. Todos arrumadinhos, limpinhos e comportados. Ela vinha na frente, com um bolsa atravessada no peito.
Na recepção a moça perguntou:
- Cadê o cartão SUS das crianças?
Luzia procurou na bolsa, virou, revirou. Despejou todo o conteúdo no balcão e não achou.
- Sem cartão SUS não tem como achar o prontuário, mas pode voltar mais tarde, que tem vaga.
Luzia voltou para casa puxando sua escadinha bonita de ver, embora a moça da recepção não tenha notado, ocupada que estava tentando convencer o segurança da unidade a comprar-lhe um perfume do catálogo da Avon.

4

Domingo Dona Sônia acordou com um derrame no olho esquerdo. Só percebeu quando olhou no espelho e viu que a parte branca do olho estava toda tomada de vermelho. Assustada foi à Unidade de Saúde. A moça da recepção, ocupada selecionando os prontuários das pessoas que estavam agendadas, nem olhou em seu rosto e foi logo dizendo:
- Hoje não tem mais vaga.
Dona Sônia, que não era de insistir, voltou para casa. No dia seguinte, bem cedo, estava na unidade de saúde. Do portão foi despachada pela mocha responsável pela limpeza:
- Nem adianta insistir: hoje a médica só atende gestantes.
Foi para casa mais uma vez. No caminho passou à igreja e rezou um pai nosso e uma Ave Maria. No dia seguinte, ainda acreditando, foi à unidade de saúde. Ao chegar estranhou, não encontrou ninguém aguardando ser atendido. Na recepção só a moça do primeiro dia:
- Hoje a médica está fazendo visita domiciliar.
- Minha fia, disse calmamente Dona Sônia, eu tô precisando muito de ver a médica.
- Mas hoje é dia de visita domiciliar.
- Eu espero ela voltar, minha fia...
- Ela nem passa aqui hoje, vai direto de casa para as visitas e de lá vai embora.
- Não tem outra pessoa com quem eu falá?
- Não, a enfermeira vai junto com ela para as visitas e a Técnica de Enfermagem tá doente, não veio hoje.
Dona Sônia saiu, de novo, da unidade de saúde sem atendimento, por via das dúvidas, no caminho de casa, passou na igreja.

 5

Dona Esmeralda bateu à porta do Enfermeiro. Lá de dentro ouviu a voz:
- Pode entrar, tá aberta.
A mulher, de pele muito bronzeada, rugas ao redor dos olhos, mais de um metro e oitenta de altura, aparentando uns 45 anos, entrou tímida. Não sentou na cadeira a sua frente. Falou em pé.
- Eu queria fazer o preventivo de câncer.
- Nossa! Admirou-se o enfermeiro, exageradamente, talvez por já ser quase meio dia.  E acrescentou:
- Qual seu nome?
- Esmeralda.
- Eu acabei de terminar as coletas, já desmontei a sala. Agora só na próxima semana.
- Eu me atrasei. Ia vir de carona com o ônibus das crianças, mas não consegui e vim caminhando.
- Aonde a senhora mora? Questionou o Enfermeiro, ainda mais preocupado com a papelada que preenchia do que com a mulher à sua frente.
- Moro no distrito do Tuiuiú.
- Sei, lá não é nossa área. A senhora precisa procurar a Unidade de Saúde da Família da área rural.
- Eu sei, mas é que aqui eu soube que fazem o preventivo toda sexta-feira e é o dia que eu posso vir. Disse Dona Esmeralda.
- Mas a senhora pode procurar a outra unidade, eles lhe dão uma declaração de comparecimento, não vai perder o dia de trabalho.
- Tá bom, eu vou. Só vim mesmo porque tava sentido uma dor no pé da barriga.
Dona Esmeralda se despediu e saiu, dando as costas ao homem.
Esquecendo seus papeis, seus relatórios, sua sala desmontada, o enfermeiro deixou-se recostar na cadeira por alguns segundos, atormentado com o que tinha acabado de fazer: que inferno, pensou ele no seu íntimo. A necessidade não tem adstrição.
Saiu correndo pela Unidade de Saúde, já vazia àquela hora, alcançou Dona Esmeralda já na calçada, do outro lado da rua.
- Dona Esmeralda, gritou ele, arrumando o cabelo e o jaleco branco que enroscou no portão enferrujado da unidade, onde ficou pendurado um pedaço de pano branco e um botão.
- Pode voltar à minha sala? Vou dar um jeito de fazer seu exame, assim não vai ter perdido sua caminhada.

6

A moça na recepção riu nervosa, irritada, sentido o mal cheiro do homem. A moça da limpeza passou a vassoura em seus pés. Outras pessoas, que esperavam a vez de ser atendidas, taparam as narinas.
- O que o senhor quer? Disse a recepcionista.
- Tó com dor no pé da barriga, disse o homem em trajes maltrapilhos.
- Tá com o cartão SUS?
- Não tenho. Respondeu ele, instintivamente procurando nos bolsos.
- Qual seu endereço?
- Eu moro na Rua, durante o dia ando por aí, de noite durmo embaixo daquela marquise, onde a senhora me vê todo dia, quando vem trabalhar.
- Tem comprovante de endereço?
- Tenho. A senhora pode comprovar, já que me vê lá todo dia.
- Não é assim que funciona, tem que ter o papel, tem que ter Agente de Saúde que lhe visita uma vez por mês. Ironizou com um sorriso no canto da boca, a recepcionista, olhando para as usuárias, esperando apoio moral.
Elas riram desconcertados.
- Você não pode ser atendido aqui, disse a recepcionista. Precisa procurar o consultório de Rua. Pode ir lá no Centro, na Secretaria de Saúde, e procurar saber aonde eles atendem.
- Mas eu moro aqui, moça, e tô com muita dor. Insistiu o homem.
- Aqui a gente só faz saúde da família e o senhor não tem família, tem?

7

- O seu atendimento, meu senhor, será feito no CAIS Mangabeira. Disse a assistente administrativa da Unidade de Saúde.
- Cais, não sei onde é, eu moro faz pouco tempo por aqui. Pode por favor me explicar onde é e o que é?
- Não sei explicar. O senhor procura, disse a mulher, já virando-se para atender à próxima pessoa.
- Então não precisa explicar, só escreve aqui o endereço que eu acho. Disse conformando-se o rapaz.
- Eu não sei o endereço e nem tenho tempo de procurar. O senhor que dê um jeito. Não tenho que fazer mais que isso.

8

A enfermeira da Estratégia de Saúde da Família disse, referindo-se a mulher que andava pela cidade enrolada em um colchão velho:
- Eu não conheço esse caso.
O Conselheiro tutelar afirmou, sem nem ao menos sentar:
- É caso de interdição, não sei mais o que fazer com essa senhora.
A diretora do Centro de Assistência Psicossocial, referindo-se ao mesmo caso, disse:
- Já conheço a situação faz anos. A paciente não adere ao tratamento. Não tem nada que o CAPS possa fazer.
A assistente social, muito consciente, enfatizou:
- Eu já fiz tudo que podia por ela. Agora só posso rezar.

9

Na reunião, o coordenador da equipe disse:
- Vamos fazer uma visita à delegacia. Parece que tem muita gente lá precisando de cuidados. E como tá em nossa área, vamos lá ver.
Ninguém questionou, ninguém estranhou, ninguém disse que “bandido bom é bandido morto”.
- Que dia vai ser? Perguntou a técnica de enfermagem, com a agenda na mão.
A nutricionista perguntou:
- Vamos só uma vez ou vamos voltar outros dias?
- Eu sempre achei que deveríamos visitar a delegacia, tem preso de todo lado lá, e a maioria nem família tem aqui na cidade. Disse o Agente de Saúde da microárea da delegacia.
Depois da reunião a Médica da equipe chamou o coordenador para conversar. Sozinhos em sua sala, ela disse:
- Tem tanta coisa para fazer e você ainda inventa mais isso? Desabafou deixando-se cair na cadeira, muito irritada.
- Por que não falou isso na frente de todos os outros?
- Não vou me expor na frente dessa gente.
- Esse é o nosso trabalho. Disse sem rodeios o coordenador, já abrindo a porta para sair da sala.

10

A nova enfermeira, contratada recentemente para substituir o colega que fora demitido por não fazer campanha eleitoral, vendo a programação da equipe para o mês, disse:
- Por que a reunião com as gestantes é feita no salão paroquial da igreja?
- As irmãs já tinham um grupo de gestantes, disse a Agente Comunitária de Saúde, e para não ter dois grupos, o enfermeiro achou melhor fazer os encontros junto com elas.
- Eu não vou fazer assim. Disse secamente a enfermeira. Vamos montar nosso próprio grupo.
Antes que a Agente de Saúde pudesse abrir a boca para argumentar, a enfermeira novata disse:
- Eu nem sou católica.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

23 setembro 2016

DEZESSETE E QUARENTA E CINCO

Foto: Sem trânsito. Larissa Mendonça Bernini, 2016. 
Ernande Valentin do Prado
17:45, em frente a Universidade Federal da Paraíba, atravesso a faixa de pedestre, ao lado do girador. Vou esperar uma carona no outro ponto, em frente ao restaurante do Orlandinho. O motoqueiro para, civilizadamente, como diz a lei de transito, mas o outro, que vem atrás, felizmente em baixa velocidade, que neste horário o transito tá quase parado em João Pessoa, bate nele. Ainda olha com cara feia, culpando-o pelo acidente. Talvez até pensando: “seu zé ruela, parar para pedestre, onde já se viu?”
- Eu parei para o pedestre, que é prioridade. Diz o primeiro motoqueiro, sem se alterar, justificando-se.
Aceno agradecendo a civilidade que o segundo motoqueiro não teve.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

18 março 2016

QUANDO DECIDI SER ENFERMEIRO

Logo do Centro Acadêmico de Enfermagem da PUCPR
Ernande Valentin do Prado
 
Na minha frente tem uma mulher de 26 anos, morena, cabeços muitos pretos. Geralmente está alegre, animada, apesar de tudo. Hoje ela está nua, como esteve nos últimos dias, deitada de costas na cama, única posição em que consegue ficar. Da virilha até a coxa, do lado esquerda, uma ferida aberta em carne viva. São 45 dias de internação no sexto andar do Hospital Cajuru em Curitiba, Paraná.
Ela começa a dar sinais de que pode não estar aguentando mais, que está perdendo a fé que voltará para casa, que ficará de pé novamente. Já estou cuidando pessoalmente dela há 15 dias, mas não vejo nenhuma melhora da ferida, cada dia mais ela queixa-se de dores por qualquer movimento.
Meu nome é Ernande Valentin do Prado, eu sou Auxiliar de Enfermagem recém-formado e recém contratado nesta instituição. Trabalhar aqui, no hospital mais complicado da cidade foi opção minha, foi onde achei que poderia devolver à população o investimento que fizeram no meu curso.
Estamos em março do ano 2000, são 11 horas e 30 minutos, bem marcado no meu relógio. Mais uns minutos e começo a distribuir as mediações.  Mas no meio do caminho tinha uma pedra, quer dizer, uma enfermeira que gostava de lembrar-me, de tempos em tempos, que era minha chefe, que eu deveria lhe obedecer. Hoje parece ser um desses dias:
- Por que demora tanto no quarto 22?
- Se fosse lá às vezes, nem precisaria perguntar. Iria ver melhor que a mulher lá dentro, a família dela, precisa muita atenção.
- E seus outros pacientes, diz a enfermeira, esperando encontrar uma falha onde se agarrar.
- Todos estão sendo atendidos conforme suas necessidades. Nenhum caso tão sério hoje, digo sem disfarça minha irritação.
- Você não pode fazer isso...
- Isso o que, pergunto irritado.
- Dar atenção especial para os pacientes, diz a Enfermeira, sentada atrás de sua mesa, sem alterar a voz.
- E por que não, pergunto de forma agressiva, indignado.
- Por que temos que dar tempo igual aos pacientes. Responde calmamente a chefe.
- Quem disse isso, pergunto mais indignado ainda com uma afirmação que me parecia completamente sem pé nem cabeça.
E acrescento:
- Nem todas as pessoas são iguais, por isso não podem ser tratadas da mesma forma. Cada um tem um caso, uma história, não têm necessidades iguais, não podem ser tratadas de forma igual. Pessoas desiguais, com necessidades desiguais precisam ser tratadas de formas desiguais para serem iguais.
- Você pensa assim, disse a Enfermeira, ainda muito calma.
- Penso, respondo ainda mais irritado com a calma dela.
- Então vá fazer o curso de Enfermagem e aí vai poder tomas suas próprias decisões. Enquanto isso, quem decide aqui sou eu e deve dar o mesmo tempo para todos os pacientes.
- Então tá, respondo calmamente e saio da sala.
Três meses depois eu estava matriculado no curso de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR para os íntimos. Antes tentei fazer um cursinho pré-vestibular muito barato. As aulas eram uma zona de prostituição no Centro de Curitiba. Matriculei-me e frequentei quase três semanas, não de forma contínua, mas juro que tentei ir às aulas. Alguns professores eram muito engraçados e me distraia com eles, embora não conseguisse decorar nada do que eles me pediam.
Outros só me revoltavam, como o de História. A primeira vez que ele me irritou foi quando, em uma aula sobre a segunda guerra mundial, disse que Hitler era um “Zé Mané fracassado na vida que endoidou, pirou o cabeção e fez uma guerra”.
Hitler, Zé Mané?
Achei um desrespeito muito grande à humanidade, à todas as pessoas exterminadas por ele. Como pode um Zé Mané ter praticado tanto mal, ter espalhado o terror e convencido uma nação inteira que matar Negros, Comunistas, Homossexuais e Judeus era o que melhoraria suas vidas?
Mas aguentei firme. Pensei – não preciso acreditar no que o professor fala, só responder a prova do vestibular. Porém, quando em uma aula sobre o comunismo, o professor disse que Karl Marx era um sujeito que explorava o sogro para se manter financeiramente, decidi que não frequentaria mais o cursinho. Inclusive pedi meu dinheiro de volta e tive muito trabalho para conseguir. Mesmo desconfiando que assim não conseguisse passar no vestibular.
Encarei três dias de provas sem escutar as baboseiras do professor de história, mas por conta disso não escutei mais nada, nem as aulas do engraçado professor de química.
Estava trabalhando à noite no dia da divulgação dos resultados do vestibular. As 19 horas e 30 minutos, estou na farmácia, que funcionava no subsolo. A funcionária está nervosa, ainda pouco me conhece e eu a ela. Atrás do guichê, mexe sem parar no computador e ignora minha presença. Estou ficando nervoso, mas quero evitar que minha fama de criador de caso se espalhe mais ainda.
- O que está acontecendo, pergunto com voz simpática (eu acho).
Outras pessoas estão chegando, já se forma uma fila.
- Meus filhos fizeram o vestibular, quero ver o resultado.
Fico curioso, também queria ver o resultado.
- Tem internet aí, pergunto já esquecendo o que estava esperando.
- Tem.
- Seus filhos fizeram vestibular para que?
- A menina fez para Enfermagem, respondeu ela.
- Eu também fiz, digo ansioso. Será que pode ver se meu nome está aí?
Ela olhou rápido meu nome no crachá, depois baixou os olhos e para tela do computador e disse:
- Passou.
- Tá falando sério?
- Tô. Seu nome não é Ernande Valentin do Prado?
- É...
- Passou, vai estudar com minha filha.
- Posso entrar aí e ver na tela, pergunto incrédulo e esperando ela dizer não. Na porta tinha uma placa com letras bem grande: não entre.
- Assim você quer demais, meu amigo. Você sabe que não pode entrar na farmácia. Disse isso abrindo a porta e dando a entender que eu poderia entrar.
Olho e meu nome estava na lista de aprovados.
Passei, vou ser enfermeiro.
Mesmo contente com a notícia, pensei: isso vai custar muito caro: serão quatro anos trabalhando à noite, estudando de dia sem dormir, economizando tudo que posso, juntando tudo para poder pagar as mensalidades.
Pelo menos, quando concluir, pensei iludido, vou poder organizar o trabalho como acredito que precisa ser feito.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog