DO OLHAR
Consulto há mais de 10 anos com a mesma pessoa que me mede os defeitos da retina, troca as lentes e me faz ver melhor. Cuidadora dos meus olhares, uma vez me mandou uma lente de contato pelo correio, a meu pedido, pois a tinha perdido em uma trilha em Parati, buscando a praia deserta e de águas frias. Ela entendeu minha necessidade de descobrir, minha certa irresponsabilidade, meu descuido... E não deixou de me brindar com o melhor olhar possível.
Há dois anos, ela, a menina dos meus olhos, me disse que estava doente, muito doente. Sorriu e falou que, apesar das poucas chances, ia lutar, ia seguir. No ano seguinte, estremeço quando ligo para marcar a consulta. Mas fico feliz em saber que ela continuava lá, firme. Neste ano, o mesmo. Entro no consultório já feliz pela presença dela que tanto entende da minha miopia, do meu astigmatismo e agora, da vida.
Ela continua. Segue, como prometeu fazer pela família, por si mesma e pelos seus sonhos. Sorri, radiante, e diz que vai passar alguns meses fora, estudando, realizando um sonho de anos. Família vai junto. Sim, tem a chance da doença voltar, mas ela insiste em dizer que tem que ter foco na vida, nos planos, nos sonhos e o que tiver de vir virá. E saio com a certeza de que a verei ano que vem, quando minha lente cansar, quando meus olhos pedirem.
E o dia segue. O tempo segue. O taxista que me leva ao destino, no fim da tarde, ajusta a lente do celular para registrar um pôr de sol. Mostra todas as imagens que já fez de milhares de sóis se pondo, em cada lugar da cidade onde estava, de passagem, trabalhando, levando pessoas por caminhos alheios. Mas onde dava para ver o sol se pondo, ele insistia em ver, registrar. Olhares passageiros.
Maneno, o ceramista, constrói, do barro, com técnica e sensibilidade as imagens de uma terra distante, de um tempo de pais e avós que, de mão em mão, de geração em geração, deram a ele o gosto pela arte do fundo da terra, da lama. E da alma da terra, a peça cheia de graça que ele desenha com o traço predileto, a figura predileta: olhos. Não sabe bem porque, mas gosta de desenhar olhos, olhares. Olhares de barro escuro, cor de pele, cor de origem.
É festa no palco que mostra a cultura de povos remanescentes de quilombos. Ao tocar o tambor que foi do avô, o percussionista negro fecha os olhos. Deve, assim, sentir mais, olhar mais profundo, olhar o som que vem de longe, de seus ancestrais, de suas lutas e dores. A plateia aplaude e os olhos do homem brilham em um reconhecimento de mil senzalas. Olhar liberto, olhar orgulhoso, olhar que canta.
O olhar e os jeitos de olhar e de fechar os olhos seguiram me inspirando por toda a semana. Feliz por poder prestar mais atenção em ato tão simples e mágico. Feliz por me lembrar das maneiras em que os olhos e olhares chegaram até minha alma ou o que a alma me fez encontrar, reencontrar. Feliz, porque não entrei em filosofias ou em explicações, mas apenas abri as janelas e deixei que o olhar exercesse seu livre movimento de seguir o arco íris do fim do dia chuvoso.
Segue mais um tempo de dia que chega e vai embora. Tempo de partida. Olhares que se encontram e se despedem. Segue a noite e o cansaço que fecha os olhos para o sonho liberto em muitos lugares nunca visitados. Olhar que viaja, que passa, que fotografa o sol se pondo, que se desenha no barro, que se fecha no barulho do tambor, se perde, se encontra e se encanta do dia chuvoso e pede mais tempo à vida.
Que haja tempo para nunca entender o mistério de seguir buscando o olhar mais terno, abraço macio do fundo do coração. Olhar que fala sem palavras, leva e traz imagens e escolhe as melhores cores para se enfeitar. Olhar que fica, quando tudo sai, quando a luz se apaga, quando pensamos que já se foi e ele te surpreende como carinho que abriga, colcha que cobre, estrela que vela o sono, cafuné, ninho que protege a alma e o sonho para sonhar melhor.
https://www.youtube.com/watch?v=H35nwDXtvjY
[Maria Amélia Mano pública na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]
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