17 janeiro 2015

AS COISAS FELIZES [Maria Amelia Mano]


AS COISAS FELIZES


Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc, etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros


            Passo pela frente da unidade de saúde mancando por uma torção tola no pé. Dona Laura me vê, pergunta o que tenho e diz que vai me mandar um “santo remédio” que tem em casa para eu passar. Fico meio constrangida, mas aceito e, no meio da tarde, uma agente comunitária de saúde vem me trazer um frasco mandado pela dona Laura com a recomendação de usar e massagear. É um spray geladinho de “uso veterinário” que aplico, conforme a orientação de dona Laura. Boa sensação. No fim do dia ela veio buscar o remédio se certificando de que eu estava melhor. Estava, claro.
           Júlia, 19 anos, tem um retardo mental leve e há uns 6 meses iniciou com uma depressão importante. Via vultos, ouvia vozes e pensava em se matar. Encaminhamos para a emergência psiquiátrica que, na admissão, foi avaliada e indicado o uso de antipsicótico em dose alta o suficiente para fazer efeito adverso importante. Também o “clima” das pessoas doentes e perturbadas na volta assustou Júlia e a mãe que sempre a acompanhava. Decidiram pedir alta, desistiram da internação.
         Eu e a psicóloga da unidade manejamos Júlia com antidepressivo e uma dose baixa de benzodiazepínicos pela agitação e insônia. Eu a via todos os dias, no fim do turno. Aos poucos fomos tirando os calmantes e ela permaneceu com o antidepressivo até que, por conta própria, um dia, resolveu parar. Por ser muito cedo, tivemos medo de uma “recaída” e mantivemos as consultas em espaços curtos, tentando identificar as tristezas, os apertos no peito, a “dor por dentro” e o vazio que ela sempre mencionava.
          Foi passando, passando até que, assim como veio, a tristeza e o desespero se foram...
          Dias que seguem. E Júlia volta, tempos depois. Está sorrindo. Elogio o sorriso e a animação, ainda mais porque, de forma rara, veio sozinha, sem a mãe. Quando pergunto no que posso ajudar, ela me responde: “hoje vim contar só coisas felizes!”. De alguma forma, Júlia me põe em cheque, pois não vem para se queixar ou renovar receitas, para solicitar ou ver exames, para pedir conselhos sobre anticoncepção. Confesso que no início, pensei, como faço? Tão acostumada a ouvir queixas! Desafio...
          As perguntas para coisas tristes e dores não são as mesmas para as coisas belas e felizes, embora façam algum sentido. Mas na faculdade não me ensinaram a fazer as perguntas certas para uma crise de felicidade, um surto de contentamento. Decálogo da dor adaptado para alegria? Não posso perguntar se faz tempo que isso acontece, se é todos os dias ou só de vez em quando, se já se sentiu assim outra vez e o que fez a respeito. Não me parece adequado perguntar que outros sintomas estão junto com esse sentimento, o que “piora”, o que melhora, se irradia... Irradia, sim...
         “Me conta o que aconteceu de legal contigo!”, arrisco. E ela me conta que há uns meses ela foi com a família acampar na Ilha das Flores. No último fim de semana, foram pescar no rio. Antes do natal, ela foi com a mãe no centro da cidade, escolher roupa e comprou uma saia e uma blusa. Fazia tempo que o que ganhavam era só para pagar contas e, nesta época, “entrou um pouco mais” e deu para comprar coisas bonitas que ela mesma escolheu. E o melhor de tudo, vai começar a trabalhar no minimercado da vila! Apesar de dizer que não sabe muito lidar com dinheiro, eles pediram, então, que ela arrumasse as prateleiras, limpasse o chão...
         O mais maravilhoso das pessoas é a capacidade que elas têm de nos surpreender, de nos desafiar em coisas belas, em cuidados, em estratégias de se manterem vivas, dignas e sonhando, tendo esperanças. O mais maravilhoso das pessoas é que elas nos desafiam quando trazem o inesperado que se torna mágico, saber, sabedoria nascida da simplicidade do partilhar as coisas felizes, a roupa nova do natal. O mais maravilhoso das pessoas é essa revolução, esse lugar incomum que nos tira do conforto, que nos assalta com sorrisos.
          Chego na unidade mancando e dona Laura logo me assalta: “ainda com esse pé!”. Afirmo que está melhor e ela me pergunta se usei o remédio. Meio envergonhada, digo que sim e ela faz um ar de reprovação como se não acreditasse e me alerta que não posso aplicar só uma vez, mas muitas vezes! E, novamente me manda o spray e diferente de antes, não busca no fim da tarde, para que eu possa usar bastante. Mas por essas coisas de paciente-gente, usei menos que devia e deixo guardadinho na gaveta do consultório. Se dona Laura me perguntar, não quero novamente ser repreendida e é óbvio que vou dizer que usei o spray mais de uma vez...
          Respeito dona Laura! Ela, que tem uns 60 anos de sorriso largo-sempre, que quer aprender a usar o computador para arranjar um namorado, que sabe de tudo um pouco e aprendeu a ler com a vida, sabe que das coisas mais felizes dessa mesma vida, a mais valiosa, é dividir, cuidar, é aprender a mudar de lugar, aprender a ser muitos, a estar do lado, perto, a estar em todos os lugares, a olhar por diversos olhares e se sentir um pouco cada um quando simplesmente nos desarmamos, permitimos, quando simplesmente partilhamos a alegria de escolhermos algo bonito para nos enfeitar e enfeitar os dias.
 (Maria Amelia Mano publica na Rua Balsa da 10 às terças-feiras)

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