21 janeiro 2015

"Doutor, o que eu tive no hospital?"


 Estava aproveitando a experiência na área rural da Irlanda. Da janela só se vê árvores e muros de pedra. Uma casa ao longe, fumaça na chaminé. Uma vila pequena onde as pessoas falam ainda o idioma antigo: o gaélico. Foi nesse clima de conforto que por três vezes no mesmo dia os pacientes tiveram uma dúvida que eu já havia escutado em outros momentos: “Doutor, o que eu tive no hospital?”. É muito difícil imaginar que os pacientes ficaram internados por horas ou dias e não entenderam o que tiveram no hospital. E como repetidas vezes acontece, percebo que os problemas da medicina no Brasil e na Irlanda são muito parecidos. As reclamações se encontram em uma via comum. 

E ai cai-se, às vezes, numa retórica profissional: “não tenho tempo para explicar” ou o pior “o paciente não vai entender”.  Reverto o questionamento para “quanto tempo leva um explicação?” e “é o paciente que não entende, ou o profissional que não sabe como explicar?”. Somos educados para nos comunicarmos (fora do contexto da anamnese Localização, Intensidade, Caráter, Irradiação Duração, Evolução, Fatores Associados...)? A compreensão do paciente em relação ao tratamento é fundamental para cooperação e adesão, ou até, o que pouco se fala: a escolha do paciente de não seguir o tratamento indicado, não cooperar, não aderir. O paciente ainda pode sofrer preconceito taxativo quando decide não seguir um tratamento, virando os bordões: “este paciente é difícil” ou “o paciente é ruim”. A questão da comunicação está no cerne da medicina, aparte dos diagnósticos brilhantes, como foi escrito “um médico medíocre, mas cordial, obtém melhor satisfação das pessoas que um médico tecnicamente brilhante, mas rude”¹. 

Não estamos falhando na comunicação?
  A medicina é mais do que uma equação balanceada com medicamentos e procedimentos dentro do atendimento à saúde. Como Manchada (2013) escreveu: “O problema, certamente é que o padrão de cuidado atual não está funcionando”. Estamos frequentemente focando na doença, ao invés da causa da doença, ou ao invés da experiência do paciente. Manchada (2013) continua seu texto falando: “a maior ironia é que a maioria dos profissionais de saúde reconhece isso como cuidado adequado à saúde”.   

Principalmente, no hospital, geralmente pacientes e familiares estão mais fragilizados, precisando de cuidado e simplesmente aceitam as condutas sem explicação ou questionamento – não que aconteça na atenção primária e secundária, mas aparentemente fica mais marcado na atenção terciária.

Nunca vou me esquecer de um paciente, ainda no segundo ano da medicina, fiz a anamnese e talvez porque tinha mais tempo para comentar algumas coisas sobre cavalos ficamos conversando/coletando a história, ele tinha levado um coice de um cavalo na região do fígado. No meio da conversa, ele puxou vários comprimidos de paracetamol escondidos na gaveta do hospital e falou que estava tomando porque aliviava a dor, lembro que era uma superdosagem, e talvez a causa de ele estar internado. Culpa do paciente? Culpa do serviço? Sem, culpabilizações, talvez estejamos falando de comunicação.   

 Mas a pergunta “O que eu tive no hospital?” ficou por dias martelando nas minhas reflexões.  Na saúde atual o paciente paga (mesmo que através de impostos) pelo serviço, mas não necessariamente para ficar mais saudável ou para ajudar no processo de autoconhecimento do próprio corpo ou do processo saúde-doença. 


Voam abraços,

Mayara Floss
 
1. Borrel Carrió F, Dohms M. Relação clínica na prática do médico de família. In: Lopes JMC, Gusso GDF, editores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade. São Paulo: Artmed, 2012. p. 124-134.

2. Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013. Diponível em: http://www.amazon.com/The-Upstream-Doctors-Innovators-Sickness-ebook/dp/B00D5WNXPE


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

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