Estava aproveitando a experiência na área rural da Irlanda. Da janela só se
vê árvores e muros de pedra. Uma casa ao longe, fumaça na chaminé. Uma vila
pequena onde as pessoas falam ainda o idioma antigo: o gaélico. Foi nesse clima
de conforto que por três vezes no mesmo dia os pacientes tiveram uma dúvida que
eu já havia escutado em outros momentos: “Doutor, o que eu tive no hospital?”.
É muito difícil imaginar que os pacientes ficaram internados por horas ou dias
e não entenderam o que tiveram no hospital. E como repetidas vezes acontece,
percebo que os problemas da medicina no Brasil e na Irlanda são muito
parecidos. As reclamações se encontram em uma via comum.
E
ai cai-se, às vezes, numa retórica profissional: “não tenho tempo para explicar” ou o
pior “o paciente não vai entender”.
Reverto o questionamento para “quanto tempo leva um explicação?” e “é o
paciente que não entende, ou o profissional que não sabe como explicar?”. Somos
educados para nos comunicarmos (fora do contexto da anamnese Localização, Intensidade, Caráter,
Irradiação Duração, Evolução, Fatores Associados...)? A compreensão do paciente
em relação ao tratamento é fundamental para cooperação e adesão, ou até, o que
pouco se fala: a escolha do paciente de não seguir o tratamento indicado, não
cooperar, não aderir. O paciente ainda pode sofrer preconceito taxativo quando
decide não seguir um tratamento, virando os bordões: “este paciente é difícil”
ou “o paciente é ruim”. A questão da comunicação está no cerne da medicina, aparte
dos diagnósticos brilhantes, como foi escrito “um médico medíocre, mas cordial,
obtém melhor satisfação das pessoas que um médico tecnicamente brilhante, mas
rude”¹.
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Não estamos falhando na comunicação? |
A
medicina é mais do que uma equação balanceada com medicamentos e procedimentos
dentro do atendimento à saúde. Como Manchada (2013) escreveu: “O problema,
certamente é que o padrão de cuidado atual não está funcionando”. Estamos
frequentemente focando na doença, ao invés da causa da doença, ou ao invés da
experiência do paciente. Manchada (2013) continua seu texto falando: “a maior
ironia é que a maioria dos profissionais de saúde reconhece isso como cuidado
adequado à saúde”.
Nunca vou me
esquecer de um paciente, ainda no segundo ano da medicina, fiz a anamnese e
talvez porque tinha mais tempo para comentar algumas coisas sobre cavalos ficamos
conversando/coletando a história, ele tinha levado um coice de um cavalo na
região do fígado. No meio da conversa, ele puxou vários comprimidos de
paracetamol escondidos na gaveta do hospital e falou que estava tomando porque
aliviava a dor, lembro que era uma superdosagem, e talvez a causa de ele estar
internado. Culpa do paciente? Culpa do serviço? Sem, culpabilizações, talvez estejamos
falando de comunicação.
Mas a pergunta
“O que eu tive no hospital?” ficou por dias martelando nas minhas reflexões. Na saúde atual o paciente paga (mesmo que
através de impostos) pelo serviço, mas não necessariamente para ficar mais
saudável ou para ajudar no processo de autoconhecimento do próprio corpo ou do processo
saúde-doença.
Voam abraços,
Mayara Floss
1. Borrel Carrió F, Dohms M. Relação clínica na prática do
médico de família. In: Lopes JMC, Gusso GDF, editores. Tratado de Medicina de
Família e Comunidade. São
Paulo: Artmed, 2012. p. 124-134.
2. Manchada
R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38
ed.: TED Conferences; 2013. Diponível em: http://www.amazon.com/The-Upstream-Doctors-Innovators-Sickness-ebook/dp/B00D5WNXPE
[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]
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