17 março 2015

ANIVERSÁRIO (Maria Amélia Medeiros Mano)

ANIVERSÁRIO

Maria Amélia Medeiros Mano


O primeiro veículo: velocípede de metal, com tiras coloridas de plástico descendo da ponta dos dois “guidons”, caindo como franjas que se movimentavam nas minhas corridas pelos quintais e calçadas. Foi meu e depois, das minhas irmãs e nestes tempos de aventuras, foi perdendo as franjas, mas ganhando histórias.

O segundo veículo: bicicleta roxinha de rodinhas laterais brancas. Grande desafio. Meses encostada na parede. Meses sem tirar as rodinhas. Isso até eu ganhar coragem e ela se tornar o foguete mais veloz atravessando galáxias com bonecas e até a irmã mais nova na garupa. Nesse meio tempo, outro velocípede, o das manas, maior e com espaço para um passageiro, para as bonecas que eram transportadas e acidentadas, sem cintos de segurança!

E veio a bicicleta azul, a Monareta que “se achava” uma “caloi cross”, a moda da época, mas não era... Porque ser “cross” é ser coisa de menino, coisa perigosa. E os pobres pneuzinhos da minha azulzinha viviam furando e secando, sofriam com as manobras enquanto que os joelhos e canelas ficavam marcadas de pequenos desastres de percurso.

O primeiro cão que tive me passava em altura quando se punha entre as duas pernas traseiras e me derrubava quando pulava para brincar. O segundo cão me arranhou no rosto, marca que me deu o apelido de “Falcon”, na escola. Falcon era o boneco aventureiro que tinha marca no rosto. Apesar de eu tentar conversar com meu segundo cão, inspirada pelos filmes da Lassie, ele pouco respondia e mais rosnava. Não fomos amigos.

O terceiro cão foi meu grande presente de aniversário de 12 anos e me acompanhou do final da meninice até quando saí de casa, já formada. Não era um cão genial como dos filmes da época, mas tinha um olhar que parecia entender tudo, quase falar. Vestiu roupa, foi para a praia, o sítio, o tanque (de bóia!), quatro cidades, sete casas, 15 anos e uma infinidade de histórias em que ele, o Pingo, era ou o protagonista ou o coadjuvante.

Ele e o pai viviam brigando, mas quando Pingo se foi, foi o pai quem mais chorou e escolheu um lugar especial no quintal para enterrá-lo. Dizia que era o que tinha restado da nossa infância. Era um pouco nós todas em casa, brincando. O que de vivo testemunhou nosso crescer, nosso sair de casa, sem mudar uma patinha ou um latido...

Nós fomos e ele permaneceu o mesmo até envelhecer e ir amansando, como fazem os idosos sábios, tolerando mais os estranhos e os cheiros novos. O ciúme de filhote se tornou um abano de rabo condescendente e generoso. Maturidade tardia após uma década de latidos, perseguições implacáveis, mordidas de calcanhares e ameaças entre os caninos à mostra, mesmo tendo menos de 20 centímetros de altura.

Outros vieram para tentar ocupar o mesmo espaço. Personalidades distintas. Até melhores, mais inteligentes, mais bonitos, menos ranzinzas. Mas nenhum como ele, assim como nenhuma bicicleta como a azul que queria ser cross... Assim como nenhum boneco como o Pirulito e a Michele. Nenhum seriado como o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Nenhuma árvore como o pé de siriguela da vó e nenhum momento como este, agora, em que a inocência dos meus dias, meus bichos, meus brinquedos, meus tesouros e minhas aventuras me invadem como a primeira ondea sentida de mar, de espanto e medo.

Primeira onda de mar. Primeiro beijo cheio de ansiedade e surpresa. Mas nada como o beijo que te acorda, que te cabe, que te cobre quente e macio: aquece e embala sono e sonho. Braço. Abraço. Confiança que se pega com a mão e se oferece como presente de vida. É mais um verão que se vai e novo outono que chega, chovendo. Cumpro mais um tempo, mais um ano que a vida me dá e que dou a vida. E continuo aprendendo a ser mais simples, sempre. Amansando com o tempo e com o olhar, que nem o Pingo.


[Maria Amélia publica no Rua Balsa das 10 às terças-feiras]





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