Maria Amélia Mano
Ser forte, Catarina, não é quebrar os outros, mas saber-se quebrado. É
ser capaz de cuidar de seus barcos de papel – e também dos barcos dos outros –
não como uma criança que os imagina poderosos, de aço. Mas sabendo que são de
papel e que podem afundar de repente.
Eliane Brum
Chama
a atenção a correspondência em cima da mesa, os selos com as gravuras.
Homenagens a profissões simples. No entanto, as pessoas estão sem rostos. Não
sou do tipo que faz a crítica social da arte com nariz torcido de intelectual.
Não! Reconheço que a arte é um campo vasto onde quase tudo cabe. Cabe a beleza
em diferentes formas e o engajamento nem é o obrigatório para ser belo. Mas me
pareceu um estranho modo de homenagear. Parece um reforço ao que já é anônimo, não
desenhar as faces... Mas também, cartas já fazem pouco sentido em um mundo de
urgências...
Mas Beto tem
urgências... Ele tem 27 anos, três
filhos e esposa que ama. Sentiu que estava brigando muito em casa. Sentiu que
estava ansioso, que estava pensando em tudo para amanhã, para ontem, sem
paciência. Muita energia e muita intensidade. Beto é motorista entregador.
Gosta do que faz, mas está irritado, brigão. Afasto do trabalho. Converso.
Precisa de ajuda, de alguém para conversar, ouvir os medos e angústias.
Encontro Mário
no ônibus. Ele me pergunta se aquela condução vai até o centro. Confirmo e já
seguimos conversando. Mário veio do Haiti para fugir da miséria e em busca de
oportunidades. Quer também ajudar a família que ficou. Trabalha na praça de
alimentação do shopping, juntando bandejas e pratos das mesas. Limpa tudo. Sabe
falar inglês e francês e está aprendendo português mas precisa conversar mais.
Que aprender mais. Quer sair deste emprego pois ganha pouco. Mora longe.
Fernanda é
empregada de uma cooperativa e trabalha de gari. Ganha pouco, o trabalho é duro
e por vezes, as pessoas não respeitam. A cidade é setorizada para a limpeza e
cada setor tem um responsável que é o chefe imediato. Ela fica em um setor da
zona norte da cidade que é mais deserto. Agora, o chefe imediato está
assediando Fernanda. Ela já reclamou para o coordenador geral, mas ele pouco
ligou, disse que alguma coisa ela fazia.
Atendo
Patrícia, que tem linfoma e é ambulante no centro da cidade. Vai junto com o companheiro
que tem as duas pernas amputadas pelo diabete. Diz que com ele vende mais. As
pessoas sentem dó. Ficaram juntos muito tempo e ele foi embora. Era bom e
companheiro, ajudou com as filhas nos piores momentos de Patrícia, quando ela
bebia demais. Por isso aceitou ele de volta, doente. Mas já não alimenta
ilusões de amor. Mantém seu tratamento e, de vez em quando, bebe ainda e fuma
maconha para ficar mais feliz.
Elisa limpa os
ônibus de uma linha interestadual e sente dores nas costas. Priscila trabalha
em uma guarita de um estacionamento de um shopping e se sente humilhada quando
a acusam de roubo. Sofre. Apesar de encontrarem o equívoco mais tarde, não
pediram desculpas. Luana limpa o chão de uma loja e se ressente porque ninguém
lhe olha ou cumprimenta. Uma mulher atravessa o centro da cidade puxando um
carrinho com restos de papéis. Está de boné e blusa rosa, combinando. Tem uma
história...
Beto volta
depois de um mês. Está usando remédios e, mais tranquilo na consulta, diz que
tem mais “calma no pensamento”. Fala que está conseguindo ser mais paciente e
mais cuidadoso em casa. Feliz com o apoio da esposa. Quer voltar a trabalhar.
Quer ser melhor “por dentro” e aproveitar as coisas simples como seu ídolo, o
ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Conta do texto que leu no grupo de
apoio: Menina Quebrada. Diz o quanto as palavras foram importantes, o quanto
lhe fizeram sentido.
O texto que Beto
leu fala das nossas quebraduras, das fragilidades, dos fragmentos que temos,
que somos. Fala de histórias que são nossas e que podem ser das pessoas que nos
passam. O menino que limpa bandejas no shopping e seus desafios de refugiado. A
mulher que limpa a rua e é assediada. A ambulante do centro. A mulher que limpa
o ônibus, a que auxilia no estacionamento e é humilhada, a que se enfeita de
rosa para puxar um carro de restos da cidade. A que se sente invisível. O
menino que faz entregas e me indica um texto e me ensina a ser melhor, mais
sábia, mais simples...
Histórias,
pessoas e seus barcos de papel... Por que não desenhar os olhos e bocas nos
selos das cartas que viajam? Parece que há uma insistência em não ver, não
navegar, não perceber que há alegria e mágoa e há vida na vida que nos passa. É
preciso reconhecer que somos todos parecidos, frágeis, que cuidamos e somos
cuidados, que ensinamos e aprendemos, que somos quebrados e inteiros e mais
verdadeiros e humanos seremos quando nos enxergarmos no pedaço e na inteireza
de quem passa, porque quem passa nos conta de nós.
Beto, Mário,
Fernanda, Patrícia, Elisa, Luana, Priscila e a catadora vestida de rosa têm nome, têm
rosto. Na arte que acredito, na homenagem que entendo justa, no selo que sonho
grudado nas raras cartas que percorrem mundos está o desenho de cada um. O
desenho do olhar universal, aquele que reencontro a humanidade, aquele que
encontro brilho, aquele que me encontro, aquele que me enxergo, inteira,
partida e comovida com o abraço e o sorriso de quem se orgulha de ter caído e
se orgulha de cada pedaço que reuniu de si.
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