Maria Amélia Mano
Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, asso, asso
Asso, asso, asso, asso, asso, asso
Porque se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogênios
Ficam calmos, calmos
Calmos, calmos, calmos...
E lá se vai mais um dia...
Milton Nascimento - Lô Borges - Marcio Borges
Em 2014, em uma
sala de aula lotada de uma escola pública da Vila Dique, em Porto Alegre, Brasil,
crianças e adultos assistem às suas próprias histórias. Alguns riem. Alguns
choram. Depoimentos, lutas de mulheres, famílias e sonhos de um lugar melhor
para viver. Fernando quer ser skatista profissional, Juliana quer ser médica,
Letícia quer aprender a tocar piano, seu João quer dirigir um trator, Osvaldo
quer aprender a dirigir. Lívia quer ter um filho. Júlia quer ter uma casa.
Helena quer ter paz. Sonhos no novo reassentamento, o Porto Novo.
Em 2013, em uma
sala de aula lotada de uma escola pública de Pedras Altas, Brasil, uma
conferência de saúde contraria a história local. De lugares distantes, as
pessoas vêm para lutar por melhores condições. Sentem que podem e devem falar.
Sentem que podem e devem sonhar. Cidade vizinha é Melo, Uruguai, fronteira,
passagem, distância, pampa, vento, frio, porteiras, muro de pedra, estrada de
terra, donos de castelos e quilombolas e assentados, desigualdades, abandono.
Melo,
Uruguai, em 1988, houve a visita do Papa João Paulo II. Vivendo de pequenos
serviços, pequenos contrabandos, pobres, os moradores se preparam para o evento
com esperanças. Preparam-se para as vendas com barracas de alimentos e
lembrancinhas. Beto¹ resolve construir um banheiro para a festa e para isso, vende
a bicicleta que usa para trabalhar e usa as economias da família. Dinheiro para
ajudar Sílvia, a filha estudiosa e esforçada que sonha em ser locutora
profissional. Sílvia vive com um rádio de pilha, valor de sonho.
Guaratiba,
Rio de Janeiro, Brasil, 2013, moradores se animam com a visita do Papa
Francisco. Um manguezal coberto de mato, a 60 quilômetros do centro, foi
escolhido para uma missa. Juracy comprou refrigerantes. Rodrigo construiu
banheiros. Adriana e Monique ficaram esperançosas. Operários trocam lâmpadas e
limpam as ruas. Depois de mais de 50 anos de esquecimento, aquele novembro foi
esperado pela população, meio de aumentar a renda e possibilidade de
progressos.
João Paulo
II passou por Melo em 15 minutos. Diante de um olhar perdido, as comidas
típicas se espalharam pelo chão e os pequenos terços baratos, ficaram ao vento.
Francisco foi para Copacabana. Uma forte chuva transforma o aterro em um
lamaçal e a missa em Guaratiba é adiada. Adriana quer de volta a coleta do lixo.
Monique quer transporte de qualidade e área de lazer para as crianças. Ao ver o
noticiário mentiroso da mídia uruguaia, Sílvia abandona seu rádio sem pilhas e
sai com Beto para ajudá-lo no trabalho, agora, a pé, sem a bicicleta.
Em Porto
Alegre, os sonhos se desfazem em balas e mortes de jovens entre a Vila Dique e
o Porto Novo. Em pedras Altas, o castelo se mantém imponente. Mas, em Alto
Paraíso de Goiás, uma criança quer viajar pelo mundo. Ele gosta de alongar e
fazer ginástica. Em Brasília, uma adolescente quer fazer Engenharia Ambiental
no Acre. Ela planta mudas e conhece ervas. O garçom de São Paulo quer estudar
Sociologia. Ele já trabalhou com meninos de rua. O músico que canta em João
Pessoa quer ser famoso. Ele já gravou dois CDs que vende a 20 reais, o par.
Fronteira é
linha que divide países. Realidade e ficção. Fronteira é espaço de separação e
encontro. Encontro de vidas, perda e busca de desejos, baixar e erguer de olhos.
Fronteira, começo e fim, “confins que nos separam de nós mesmos”². As pessoas e
planos que li, assisti e conheci, fronteiras de esperanças em viagem, interior
de terras, de almas, de mim. O rádio de Sílvia, as histórias que contamos e a
certeza de que religião, ciência, conhecimento e o que mais vier para prometer
felicidade e salvação, só valem a pena se puderem ajudar a realizar sonhos.
E basta contar compasso
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração na curva
De um rio, rio, rio, rio, rio
E lá se vai...
Mais um dia...
2 – José de Souza Martins - Fronteira: a degradação
do Outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009.
Foto – Pedras Altas - RS, fronteira com Uruguai, cidade de
Melo.
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