19 agosto 2015

Aperta-solta-solta




2:47 AM
Nasceu. Faço uma prece (ou um grito silencioso): “chora, chora, chora”. Silêncio. Primeiros segundos.Fonte de calor, posiciona, aspira, seca – repito como um mantra, enquanto posiciono, aspiro e seco. Sonda traqueal nº8. Clampeamento do cordão, por um segundo não encontro o clamp. Coloco o estetoscópio, já sei que o coração bate devagar. Peço para colocar o saturometro.  Inicie a ventilação com pressão positiva. A mãe olha atenta o que fazemos, sinto o olhar. Balão auto-inflável, volume 500mm, máscara anatômica. Ventilação com Pressão Positiva com ar ambiente iniciada, algumas mãos para ajudar. Apgar: 0.

2:48 AM
Mantenha a frequência, não aperte tanto, nem vá tão devagar. A sala está quente. A frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto. Padrão respiratório irregular. Coloca o oxigênio suplementar. Alguém coloca em algum momento o saturometro que ainda não começa a marcar. Revise a técnica.

2:50 AM
Saturação 65% . Frequência cardíaca 84. Tudo tão simultâneo. Entubar. Lâmina reta, 00. Cânula 3. Material para fixação da cânula. “Meu filho está bem?”. Não consigo responder, parece que meu cérebro não consegue nem captar a pergunta. O óculos embaça. Tranco a respiração para conseguir entubar. Você tem 30 segundos, está informação bate em mim. Enquanto olho o ponteiro do relógio. Visualizo as cordas vocais, tão pequeno. “Chora, chora, chora”. Aviso: avisem a UTI.

2:51 AM
Em algum ponto meu corpo diz “sede”. Tanto faz. Siga por aquela pequena vida, siga o protocolo, siga as instruções, apenas siga. “Meu filho está bem?”, alguém responde que não. Não vejo o choro, mas sinto o choro. O recém nascido não chora. Eu não choro. Tudo para dar tão certo, e vai tão errado. Frequência cardíaca caindo, beirando o 70, penso “menor do que 60 iniciar massagem cardíaca”. Enquanto o ritmo “aperta-solta-solta” misturado como beep do saturometro, e o cheiro do bisturi misturam meus sentidos. Revise a técnica.

2:52 AM
Iniciamos a massagem cardíaca: “Um e Dois e três e Um e Dois e Três...”. Um compasso (des)sincronizado. Os minutos ou parecem muito rápidos, ou muito lentos. A dilatação do tempo nunca foi tão evidente. A pressão da mãe sobe. O anestesista controla. Enquanto alguém assume o dueto “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Apgar: 0.

2:53 AM
Frequência cardíaca: 50. Estimo o peso, pequenino. Enquanto preparo o cateterismo umbilical. Uma dose antes de adrenalina 0,1 mg/kg endotraqueal. Prepara a adrenalina. Fora a adrenalina que corre em meu sangue. Consigo cateterizar o umbigo. A sala fica abafada, e é até possível encontrar um silêncio. Adrenalina EV 0,03 mg/kg. Repetir em 3 ou 5 minutos.

2:54 AM
Retomo o “Um e Dois e três e Um e Dois e Três”. Os olhares começam a demonstrar que talvez estejamos perto do fim. Frequência caindo. A decisão de parar a reanimação é minha. Porque eu escolhi medicina?

2:55 AM
Assistolia. O beep fica continuo.

2:57 AM
Mal nasceu e já partiu.

3:15 AM
O primeiro gole de água desce pela garganta. E a primeira lágrima desce pelo rosto. O ritmo, o barulho, o cheiro, o beep, a mãe, a respiração, o calor, tudo parece que continua. Escuto. Logo vem o aviso: “vai nascer mais um”. E ainda preciso preencher os papéis.

* História fictícia, mas nem tanto. 

Voam abraços,
Mayara Floss

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