Maria Amélia Mano
O meio-dia acontecendo em pleno sol
seguido da manhã que correu
desde muito cedo
e que só viram
os que levantaram para trabalhar
no alvorecer que foi surgindo
Marisa Monte
Maria
de Lourdes é etilista, mas diz que parou de beber há mais de um ano quando
entrou para a igreja. Lembro dela há seis meses, com cheiro de bebida, entrando
“desmaiada” na unidade. Mexia os olhos, respondia às perguntas e mais ainda,
aos cuidados e atenções das técnicas de enfermagem. Fez soro e pediu desculpas.
Mas jura que, agora, tudo passou. Tem um brechó na mesma rua da unidade de
saúde e está feliz com o sucesso das vendas. Também feliz porque, finalmente,
achou o remédio controlado que a faz dormir bem e que compra sem receita na
farmácia na avenida principal. Fez testes com vários: carbamazepina, haloperidol,
biperideno e se deu bem com a clorpromazina. Tudo por conta própria...
A
farmácia que vende os remédios de Maria de Lourdes fica do lado do maior
mercado da comunidade. No mercado, de balconista e caixa e mais a função que
der, trabalha Andréia. Andréia engravidou cedo, 16 anos. Teve gestação
tranquila, amamentou bem até tarde, mas se entristeceu com a ausência do
companheiro e quando Diego fez dois anos começou a se entristecer muito. Tomou
comprimidos, duas caixas de remédio da mãe, Elisa, e foi internada. Andréia
fica triste de Diego chamar Elisa de mãe. Não se conforma. Se sente usada, se
sente “uma teta” e não tem carinho, mas também não consegue ser mãe. Admite que
não tem paciência, que se irrita e bate nele. Teme não amar Diego e teme que
Diego não a ame.
Na
frente do mercado, tem o “xis da dona Hilda”. Dona Hilda perdeu a filha muito
jovem de câncer e desde então, sofre de depressão com muitas internações
psiquiátricas. Tanto o primeiro quanto o segundo esposo batiam nela.
Analfabeta, tem dificuldade de entender as prescrições médicas dos
anti-hipertensivos e hipoglicemiantes orais. Passar para a insulina foi um
processo difícil. Porém, com a chegada do terceiro marido, o Zé, tudo mudou. Zé
é 10 anos mais jovem e cuida de dona Hilda que agora, é outra pessoa. Mas Zé
foi preso “injustamente” e dona Hilda descompensou. Todos os dias ia à unidade
de saúde com aperto no peito e mantém o “xis” e o churrasquinho para ajudar a
renda, mas nem tem mais vontade de nada.
Nanci
é freguesa de dona Hilda. Nanci também não sabe ler e o filho está preso. Fuma
demais e sente falta de ar. Tem infecções respiratórias de repetição. O
dinheiro da aposentadoria de Nanci é curto e ela complementa vendendo artigos
eróticos. Cada vez que come o xis da dona Hilda tem diarreia e vômitos. Passa
mal. Já aconteceu três vezes, mesmo eu e a equipe advertindo. Esquece ou perde
as receitas e sempre tenho que refazê-las. Examino Nanci que está sempre de
calcinha vermelha. De presente dela, já recebi uma calcinha comestível, uma
vez. Da última vez, também passando mal após comer o xis da dona Hilda, Nanci
me deu uma calcinha fio dental rosa choque.
Quando
quero saber de Nanci, pergunto a Dina que trabalha na limpeza da unidade de
saúde. Dina “arrumou os dentes” com a dentista da unidade e agora, espera a
prótese pelo SUS para sorrir melhor. Dina mora com a filha que fez o pré-natal de
Lucas na unidade; algumas consultas comigo. O filho mais novo de Dina consulta
comigo. Rapaz inteligente, responsável e apaixonado pela esposa. Mês que vem,
Lucas faz um ano. Dina quer registrar tudo e, como conheço todos e bato boas
fotos, ela me convida para ser a fotógrafa oficial da festa. Das 15:00 às 17:00
horas é festa de criança e das 17:00 horas em diante, é para os adultos:
churrasquinho e sambinha ao vivo, com os parentes que tocam.
Oriento
Maria de Lourdes para que não fique muito dopada. Sei que vai experimentar
outras drogas. Depois de ameaçar o dono do mercado, afasto Andreia que está às
voltas com o INSS. Mas Diego começou a chama-la de mãe, finalmente. Dona Hilda
melhorou com meio comprimido de isossorbida e a promessa do advogado de tirar
Zé da prisão. Continua vendendo xis e churrasquinho. Nanci melhora, pede as
receitas perdidas, mais uma vez e me pergunta se usei as calcinhas, piscando
“discretamente” o olho. Dina está ansiosa com os preparativos da festa e diz
que vai me buscar e me deixar em casa ou onde eu quiser. Vai ser uma honra
registrar o primeiro aninho de Lucas.
Anoitece
e amanhece. Entristece. Mais um menino morre no fim de semana. De uma forma ou
de outra, é menino “nosso”. É nosso menino. Unidos todos nós. Todos nós unidos.
Todos os nós unidos. A vida, esse entremeado, cheio de laço, nó e nós.
Comunidade. Meu caminho de barro. Meu dia de escuta. Meu ofício de estar no
meio de tudo e com tudo, com todos. Maria de Lourdes, Andréia, Diego, Elisa,
Hilda, Zé, Nanci, Dina, Lucas e outros parceiros de unidade, perdemos mais um. Sina e presente. Tiroteio. Toque de recolher e
toque de mãos, carinho. Tempo que passa. Estudantes. Gente que se despede e
gente que chega pra aprender. Eu que chego, me despeço e aprendo, sem deixar de
sorrir, sem deixar de chorar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?