Maria Amélia Mano
À nova geração de
médicos de família:
Ana, Arnildo, Luan e Mayara.
Ana, Arnildo, Luan e Mayara.
Ora,
então pediram para eu “criar casos”. Explico: situações clínicas complexas em
Medicina de Família. “O que vemos no cotidiano”, diz a amiga que me convida.
Comorbidades, situações difíceis em que temos que manejar várias patologias e
estar atualizados para todas as possibilidades e riscos. Não é só criar casos,
é buscar referências e atualizar condutas. Achei pretensioso, mas gostei. Quem
sabe?
Na
unidade de saúde, chega Dora, paciente antiga. Dora “se cria” enquanto “caso”.
Dora, 52 anos, negra, casada, auxiliar de serviços gerais, natural e procedente
de Porto Alegre. Obesa, é hipertensa –
já com três classes de anti-hipertensivos - e tem uma tendinopatia em punhos, bilateral
o que a afastou do trabalho e a põe às voltas com fisioterapeutas,
traumatologistas – fila de espera – , ecografias, atestados e peritos do INSS.
Dora
é casada com Jorge. Jorge é guarda de obras de construção civil, teve
tuberculose. Por ser etilista e a doença ser recidiva, Jorge tinha indicação de
fazer dose supervisionada no domicílio. A Agente de Saúde, jovem e bonita, se
comprometeu a fazer, mas viu dificuldades na família em todas as fases do
cuidado, desde a administração dos tuberculostáticos até o diálogo com os
contatos próximos, com resistência até em fazer os exames necessários.
Pelo
trabalho, Jorge era visitado de noite. Dora não gostava da ideia de ter uma
menina nova e bonita procurando pelo marido todas as noites. Apesar de ter sérios
conflitos conjugais pela bebida, ela era ciumenta. Dora se responsabilizou em dar
os remédios e levar Jorge três vezes por semana, na unidade, ao meio dia, para
administrar as drogas. A seguir, a equipe responsável conseguiu que todos os
contatos fizessem os exames.
A
filha de Dora, Diva, fazia um pré-natal irregular na unidade. Sabíamos que era
usuária de drogas. Diva já tinha Laura e logo, veio Luísa. Após o parto, Diva
se afundou em uso pesado de crack e começou a bater muito nas crianças. Tanto que
perdeu a guarda das duas filhas. Luísa não tinha nem um aninho quando teve o
braço fraturado por Diva. A seguir, Diva sumiu por uns tempos e foi presa por
tráfico. Pra completar, na mesma época, Jorge perdeu o emprego.
Acompanhei
Dora: o medo de ter a doença do marido, o etilismo, o desemprego, o ciúme, a
resistência e a insegurança. Dora chorando pelas netas e assumindo os cuidados,
sem muita condição para isso. Dora sem saber onde estava Diva. Dora visitando
Diva no presídio. Dora com dor nos punhos, enfrentando peritos grosseiros. Dora
analfabeta, atrapalhada com os medicamentos e descompensada da hipertensão.
Pedi opinião de cardiologista.
Após
meses de espera, o cardiologista avalia e prescreve drogas que Dora não
consegue comprar. Ela vende a casa e sai da comunidade. É avisada de que deve
procurar o médico de sua área. Resiste: “a senhora sabe tudo de mim...”.
Resisto, também. Mantenho o prontuário da família sob protestos. As diretrizes
não são feitas para engessar o serviço, mas para nortear. Abre-se a discussão
sobre vínculo, cuidado e direito à saúde. E outras situações se somam.
Jorge
terminou o tratamento e está abstêmio. Conseguiu emprego de vigia em uma obra e
está bem, por enquanto. Diva passou dois anos e meio na prisão e foi convertida
por uma igreja. Não está usando mais drogas. “É outra pessoa”, afirma Dora,
feliz. Laura e Luísa estão lindas e saudáveis. Vem sempre à consulta muito
arrumadas e enfeitadas. Laura tem cinco anos e é vaidosa. Luísa já está com
três anos e começou a ir na escolinha.
Dora
ainda está às voltas com espera de especialistas, exames e peritos. Depois que
as coisas foram se organizando, ela também foi se organizando e, hoje, está com
a pressão compensada, usando as mesmas drogas de sempre. Jorge era acompanhado
por um colega por questões de vínculo. Diva nunca conseguiu se vincular. Vejo Dora mensalmente. Vejo Laura e Luísa com
frequência. O prontuário da família permanece ativo.
Ora,
então pediram para eu “criar casos”. Não sei se seria capaz. Penso em Dora. O esquema
de três classes de anti-hipertensivos que, possivelmente, seja o cerne da
discussão clínica pedida é uma parte da riqueza que se pode vivenciar: indivíduo,
família, contexto. Relações e sentimentos, por vezes aparentemente “pequenos”,
que ajudam ou dificultam. Soluções possíveis, simples e negociadas.
Lições
de não julgar e de acreditar. Lições de escuta e acolhida. Lições de tempo e do
tempo: o meu, o dela. O desafio à nossa prepotência e tolerância à frustração: uso
de drogas, violência, desemprego, medo, ansiedade, direitos violados, desestrutura.
Ainda, questões que julgamos administrar em conjunto (Dora, familiares e equipe
de saúde): doença infectocontagiosa, cuidado
de crianças pequenas, analfabetismo,
dor, lesão pelo trabalho...
Lições
de bom senso, flexibilidade e empatia. Se a terapêutica se limita às condições
financeiras, não é mediocridade tentar adequar. As regras e diretrizes da
organização dos serviços escritas por estudiosos e gestores não podem
justificar exclusões, ferir o direito à saúde, desrespeitar o vínculo, produzir
mais ansiedade e doença. Os atributos da Atenção Primária à Saúde estão neste
caso e, em especial, a longitudinalidade.
Lições
de ser Médico de Família e manejar o improvável ciúme e a inexplicável
conversão. Lições de enfrentar a cruel insensibilidade de outros serviços e
instituições, a desesperada burocracia, a regra infeliz, a falta de
reconhecimento. Mas, também, a maravilhosa sensação de paz nas pausas em que
tudo parece silenciar, em que a pressão arterial, finalmente, chega ao ideal e
que o sorriso das crianças, em festa, diz muito deste ofício de abraçar e amar.
Foto: primeira consulta do
recém-nascido em que fiz o pré-natal da mãe adolescente.
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