15 setembro 2015

Criando caso


Maria Amélia Mano

À nova geração de médicos de família: 
Ana, Arnildo, Luan e Mayara.

                Ora, então pediram para eu “criar casos”. Explico: situações clínicas complexas em Medicina de Família. “O que vemos no cotidiano”, diz a amiga que me convida. Comorbidades, situações difíceis em que temos que manejar várias patologias e estar atualizados para todas as possibilidades e riscos. Não é só criar casos, é buscar referências e atualizar condutas. Achei pretensioso, mas gostei. Quem sabe?

                Na unidade de saúde, chega Dora, paciente antiga. Dora “se cria” enquanto “caso”. Dora, 52 anos, negra, casada, auxiliar de serviços gerais, natural e procedente de Porto Alegre. Obesa,  é hipertensa – já com três classes de anti-hipertensivos - e tem uma tendinopatia em punhos, bilateral o que a afastou do trabalho e a põe às voltas com fisioterapeutas, traumatologistas – fila de espera – , ecografias, atestados e peritos do INSS.

                Dora é casada com Jorge. Jorge é guarda de obras de construção civil, teve tuberculose. Por ser etilista e a doença ser recidiva, Jorge tinha indicação de fazer dose supervisionada no domicílio. A Agente de Saúde, jovem e bonita, se comprometeu a fazer, mas viu dificuldades na família em todas as fases do cuidado, desde a administração dos tuberculostáticos até o diálogo com os contatos próximos, com resistência até em fazer os exames necessários.

                Pelo trabalho, Jorge era visitado de noite. Dora não gostava da ideia de ter uma menina nova e bonita procurando pelo marido todas as noites. Apesar de ter sérios conflitos conjugais pela bebida, ela era ciumenta. Dora se responsabilizou em dar os remédios e levar Jorge três vezes por semana, na unidade, ao meio dia, para administrar as drogas. A seguir, a equipe responsável conseguiu que todos os contatos fizessem os exames.

                A filha de Dora, Diva, fazia um pré-natal irregular na unidade. Sabíamos que era usuária de drogas. Diva já tinha Laura e logo, veio Luísa. Após o parto, Diva se afundou em uso pesado de crack e começou a bater muito nas crianças. Tanto que perdeu a guarda das duas filhas. Luísa não tinha nem um aninho quando teve o braço fraturado por Diva. A seguir, Diva sumiu por uns tempos e foi presa por tráfico. Pra completar, na mesma época, Jorge perdeu o emprego.

                Acompanhei Dora: o medo de ter a doença do marido, o etilismo, o desemprego, o ciúme, a resistência e a insegurança. Dora chorando pelas netas e assumindo os cuidados, sem muita condição para isso. Dora sem saber onde estava Diva. Dora visitando Diva no presídio. Dora com dor nos punhos, enfrentando peritos grosseiros. Dora analfabeta, atrapalhada com os medicamentos e descompensada da hipertensão. Pedi opinião de cardiologista.

                Após meses de espera, o cardiologista avalia e prescreve drogas que Dora não consegue comprar. Ela vende a casa e sai da comunidade. É avisada de que deve procurar o médico de sua área. Resiste: “a senhora sabe tudo de mim...”. Resisto, também. Mantenho o prontuário da família sob protestos. As diretrizes não são feitas para engessar o serviço, mas para nortear. Abre-se a discussão sobre vínculo, cuidado e direito à saúde. E outras situações se somam.

                Jorge terminou o tratamento e está abstêmio. Conseguiu emprego de vigia em uma obra e está bem, por enquanto. Diva passou dois anos e meio na prisão e foi convertida por uma igreja. Não está usando mais drogas. “É outra pessoa”, afirma Dora, feliz. Laura e Luísa estão lindas e saudáveis. Vem sempre à consulta muito arrumadas e enfeitadas. Laura tem cinco anos e é vaidosa. Luísa já está com três anos e começou a ir na escolinha.

                Dora ainda está às voltas com espera de especialistas, exames e peritos. Depois que as coisas foram se organizando, ela também foi se organizando e, hoje, está com a pressão compensada, usando as mesmas drogas de sempre. Jorge era acompanhado por um colega por questões de vínculo. Diva nunca conseguiu se vincular.  Vejo Dora mensalmente. Vejo Laura e Luísa com frequência. O prontuário da família permanece ativo.

                Ora, então pediram para eu “criar casos”. Não sei se seria capaz. Penso em Dora. O esquema de três classes de anti-hipertensivos que, possivelmente, seja o cerne da discussão clínica pedida é uma parte da riqueza que se pode vivenciar: indivíduo, família, contexto. Relações e sentimentos, por vezes aparentemente “pequenos”, que ajudam ou dificultam. Soluções possíveis, simples e negociadas.

                Lições de não julgar e de acreditar. Lições de escuta e acolhida. Lições de tempo e do tempo: o meu, o dela. O desafio à nossa prepotência e tolerância à frustração: uso de drogas, violência, desemprego, medo, ansiedade, direitos violados, desestrutura. Ainda, questões que julgamos administrar em conjunto (Dora, familiares e equipe de saúde): doença infectocontagiosa,  cuidado de crianças pequenas,  analfabetismo, dor, lesão pelo trabalho...

                Lições de bom senso, flexibilidade e empatia. Se a terapêutica se limita às condições financeiras, não é mediocridade tentar adequar. As regras e diretrizes da organização dos serviços escritas por estudiosos e gestores não podem justificar exclusões, ferir o direito à saúde, desrespeitar o vínculo, produzir mais ansiedade e doença. Os atributos da Atenção Primária à Saúde estão neste caso e, em especial, a longitudinalidade.

                Lições de ser Médico de Família e manejar o improvável ciúme e a inexplicável conversão. Lições de enfrentar a cruel insensibilidade de outros serviços e instituições, a desesperada burocracia, a regra infeliz, a falta de reconhecimento. Mas, também, a maravilhosa sensação de paz nas pausas em que tudo parece silenciar, em que a pressão arterial, finalmente, chega ao ideal e que o sorriso das crianças, em festa, diz muito deste ofício de abraçar e amar.

                

Foto: primeira consulta do recém-nascido em que fiz o pré-natal da mãe adolescente.
                

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