08 setembro 2015

LA NOCHE EN LA MIRA


Maria Amélia Mano

Es que la noche no
La noche no es una ciencia exacta

Jorge Drexler

            Sono e manhã confusa de segunda. Acordo tarde. Falta gás e o banho fica frio. Saio para trabalhar e esqueço o celular em casa. Escuto Jorge Drexler, mas esqueço de carregar a bateria do Ipod. Esqueço de tirar o guarda-chuva da bolsa. Não vai chover e pesa, ocupa espaço. Sem livro na bolsa. Quem sabe era para prestar mais atenção no trajeto. Coisa que nem sempre faço. Aviso do Universo para ser generosa comigo e meus esquecimentos e desorganizações.

Yo debería a esta altura saberlo
Yo debería tenerlo ya claro en mis años
Una canción aparece de pronto
Y se clava en el alma
Como un cuerpo extraño

            Estava vivendo dias de extrema desatenção. Caminhos e trajetos “só para mim”, ouvindo música e quase dançando sem perceber os outros. Mas há dias de extrema atenção. Nestes dias, vejo tudo. Em uma loja de sapatos, vi uma velhinha experimentando e se olhando. Em segundos, começou a dançar na frente do espelho. E sorriu para mim. Ônibus: um poeta sorri para uma criança e, em outro, a cobradora segura uma linda rosa nas mãos. Ternuras cotidianas invisíveis.

La soledad no traía canciones
Traía demonios, resaca, tormenta
Traía el extraño regalo de ser un eterno autotidacta

            E percebi que o fio de bateria que restava me permitia algumas canções no caminho. Ainda não era tempo de sair de mim. Talvez um caminho do meio. Atenção aos caminhos de dentro e de fora de mim. Mantenho Jorge Drexler. Em algum momento, a música, tudo poderia parar, como na vida. Salto do ônibus com aviso de recarregar o aparelho. Caminho entre atenta ao dia, pessoas, contexto e a música que me faz dar passos ritmados.

Vine hasta el mar con la noche en la mira
Mis lentes de cerca, mi guitarra rota
Con una hoja en blanco, que en blanco quedaría
Intacta

            No caminho até a unidade de saúde, a agente comunitária me alcança o passo e quer falar. Conta que houve tiroteio na noite passada. Metralhadoras. Barulho assustador. Moradores apavorados. Promessa de noite violenta. Inúmeras balas atingindo a casa da avó de um traficante. Dentro de um dos projéteis, um recado escrito de que aquilo tudo iria continuar até que matassem seu neto. E se não o matassem, ela iria pagar por ele, com a vida...

Llamaba a la puerta con todas mis armas
Con algunos vicios, algunas virtudes
Pensé para mí que cumplía los pasos de un pacto
Pero la musa no pacta

            A noite que Drexler canta não é a mesma da que ia acontecer na vila. As possíveis surpresas da noite tampouco. As armas que canta, os pactos não são os mesmos. Mas a história foi contada justamente após canção com palavras semelhantes. Significados únicos. E lembro de que nem só dentro de garrafas ao mar e buracos no muro se colocam recados. Nem todo bilhete é de amor. E ameaças podem ser feitas sem palavras ditas olho no olho.

            A música silencia enquanto a vida entre ameaças e ruídos de tiros, segue, persiste, apavora. A noite é mais longa e a insônia, uma epidemia. No entanto, alguém “lá em cima” ensurdece, não escuta os murmúrios de medo das crianças, as apreensões das mães. Disse que não implantamos agenda eletrônica na unidade e que também não abrimos a mesma para 3 meses. Muitos atestados na equipe de saúde. Nosso conceito não está bom. E precisamos atingir muitas metas.       

            Sim, achamos 3 meses tempo demais para agendar. As pessoas têm urgências. As pessoas esquecem. A demanda diária por coisas imediatas é imensa. A ansiedade pelo hoje é real. O que será do amanhã? Organizar serviço e demanda como está escrito nos livros... Receitas prescritas, leis impostas, estudos de eficácia e efetividade, metanálises sobre acesso, artigos e novas tecnologias para realidades que pouco se aproximam. Então, se subverte, se questiona e o esforço de seguir é o mesmo de sempre...

            Cansaço e tarde calma de sexta. Chego na hora de atender. Dia sem esquecimentos, sem correrias, sem chuva, sem peso extra na bolsa. Apenas o peso dos apertos nos peitos, das taquicardias, da semana que passa sob ameaças. Um homem morreu pela manhã. No meio da tarde pedem para fechar a unidade: vai ter vingança. Quem morreu? Filho, esposo, pai, irmão de quem? Na segunda saberei quando me chamarem para atender uma “extra”. Mais uma mulher que chora...

            Na segunda, talvez, vou encaixar a mulher que perde o filho entre os 12 pacientes agendados. Escutarei dores e esperanças e, no caminho de ida e volta, antes e após bater o cartão ponto, canções. Fecharei os olhos e a vida vai me interromper, me abrir as pálpebras com força, para dizer de ausências e medos. Buscarei as diretrizes do serviço, a meta, o trabalho em número, o esforço em suspiros, a estatística do abraço. Nem tudo é programado, nem tudo é previsto, nem na agenda eletrônica.

            Às vezes esqueço o guarda-chuva, o celular, o gás. Quase sempre esqueço os sonhos que sonho de noite. Esqueço que nem toda noite é de lua, é de descanso e alívio. Sorrio, ainda, apesar de não encontrar as palavras que escuto todos os dias nos protocolos, no tratado, no artigo, nos indicadores de saúde, estes que me aparecem em tabelas e curvas. A mesma curva que o ônibus faz e me avisa que devo saltar. Caminhar. Atravesso a rua. Aumento o volume da música. Canto...

Hacer canciones no es una ciencia exacta.


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