15 dezembro 2015

CHÃO DE IRENE


Maria Amélia Medeiros Mano


DOR ELEGANTE


Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra (2x)

Ela é tudo que me sobra
Viver vai ser a nossa última obra

Paulo Leminski e Itamar Assumpção


                Lembro de paciente que sempre atendo, Irene. Ela vem toda a semana na unidade, com dor crônica. Mulher pequena, desde cedo "pegando no pesado". Um dia, a filha, descontrolada, bateu na Irene. Dor maior. Depois de ser acolhida e medicada, o auxiliar administrativo, contrariando todas as regras, levou Irene para fazer um RX na emergência. Ela, entre lágrimas e palavras desconexas, disse o maior elogio do ano para a equipe e para mim: "aqui é meu chão..."

                Pelas tantas Irenes, há um mês, na unidade, em atividade educativa, discutimos Dor Crônica e eu resolvi fazer uma Crônica de Dor. Tudo com letra maiúscula, sim! Porque não estou falando de coisa pequena. Mas de coisa que destrói, deprime, mata, muda. Coisa que, segundo a literatura, tem pouca solução, só alívio, mas volta sempre, um dia. Coisa que, segundo a literatura, tem causa que não se identifica ou não se controla, mas a gente busca sempre o motivo.

                A literatura científica, essa que é tão reverenciada, referenciada, essa mesma, é pouco esperançosa. Fala pouco de dor que melhora com abraço e grupo de artesanato. Fala nada de dor que melhora com trabalho na terra. Mas diz que usamos menos opióide do que devíamos. Diz que fisioterapia é fundamental, mas não diz como a gente faz para que ela seja de boa qualidade, que seja perto da casa das pessoas e que o patrão, no trabalho, entenda as faltas... Não mensura o tempo de espera pelo serviço de acupuntura...

                Tive dor crônica. Dor dessas que acorda a gente de madrugada. Mas tive a sorte de saber uma causa, mesmo que eu a achasse mágica ou sórdida. Sorte eu ter um tratamento e um alívio, mesmo que, meio fantasma, ela ainda diga, de vez em quando, que existiu e que pode me visitar, um dia. Dor danada que me fez mais sábia, não só por mim e pelos meus caminhos e escolhas, mas pelas dores de quem atendo, porque consigo me colocar no lugar de quem sente, também, mais, melhor.

                Aprendi, aprendo, que dor maior é dor de dentro, dor de alma, dor aperto no peito, angústia, medo... Mas todas as dores, nas suas tristezas, nas suas marcas, nas suas noites mal dormidas, nas suas desesperanças, abandonos e, sim, nos sorrisos, daquelas pausas de sonhos e calmas, todas, todas têm meu sincero respeito! Eu reverencio todas as dores como reverencio o tempo e as grandes lições. Especialmente as que nos fazem desobedecer as regras, lembrando da Irene.

                Sim, revendo este ano que chega ao fim, estou certa de que subverter às regras foi essencial porque as pessoas precisavam, precisam. Porque as vidas não cabem nas regras. As vidas são feitas de cruéis exceções. Algumas exceções são surpresas maravilhosas, mas o sofrer é sempre um rompimento de certezas e um convite nem sempre aceito de revisitar a alma. Para que algo faça sentido, ao contrário da ciência. Porque nada nessa vida deve perder a razão maior: ser e sentir.

                Mas, confesso que, no decorrer destes dias cujo ciclo se fecha, tive perdas e nem sempre achei a razão e o sentido. Foi difícil. Tive raivas e decepções. Revoltas. Não tive as respostas e nem os remédios para tudo. Cheguei a pensar que tinha me perdido. Vazios... E, um dia, em mais um caos de tarde corrida e a mesma paciente tão infeliz. Rugas de infância. Sorriso sempre escondido entre as mãos pela ausência de dentes. Irene e sua dor, desta vez mais sofrida e magoada...

                Irene, na simplicidade doída de vida diz: “aqui é meu chão...”. Então, na mais escura noite, vejo acender uma luz distante que tem calor bom. É fogueira de juntar homens e histórias. É lua cheia entre galhos. Sim, sou parte desse chão e abrigar pés tão sofridos é o elogio maior do ano.  É o presente. É o sentido. Quero continuar sendo uma faísca desse fogo, uma pedra, um grão, a terra que sustenta a planta, a erva de chá de cuidar de dor. Orgulho ser chão!
               
https://www.youtube.com/watch?v=BR918WhVTpc
https://www.youtube.com/watch?v=eA7bS56Mk1E


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