Foto: PELOPES às margens do Rio Guaira, 1989 |
Ernande Valentin do
Pradinho
Mais ou menos às dez e trinta a companhia
voltou marchando da formatura, na presença do Coronel e de todo o batalhão. Era
a primeira desde que retornaram das manobras de guerra no interior. Estavam em
formação mais ou menos 110 soltados perfilados um ao lado do outro em posição
de descansar, pernas ligeiramente separadas e os braços atrás das costas. O
capitão passou o comanda da companhia para o tenente mais antigo:
- Primeira companhia ao meu comando – disse o
tenente, olhando para o capitão.
Os dois trocaram continências e o tenente,
dando meia volta ficou de frente para tropa e falou o mais alto que pode,
talvez tentando impressionar o capitão, que parecia especialmente indiferente
aquela manhã:
- Vanguardeira, sentido!
Imediatamente ouviu-se calcanhares de coturnos
batendo uns contra os outros e o tapa estridente das palmas das 220 mãos contra
220 coxas de soldados, como se fosse um só barulho. Em seguida o tenente passou
o comando de cada um dos pelotões aos sargentos mais antigos em forma.
- PELOPES ao meu comando – disse o sargento do
pelotão de Pradinho - sentido! Permissão?
O sargento bateu continência para o tenente,
que imediatamente, no mesmo gesto mecânico e sem sentido, respondeu:
- Permissão concedida.
O sargento virou-se para direita, ficando de
frente para o pelotão, comandou:
- Pelotão, descansar.
Imediatamente, um após o outro, cada pelotão
foi sendo posto fora de forma para começar o expediente do dia. Menos o
PELOPES, que ficou em forma até que todos os outros dispersassem.
Pradinho sentiu um frio na barriga, angustia,
medo, mas do que em outros momentos. Desde que voltou das manobras, sabia que a
hora do acerto de contras com o sargento chegaria, mais que isso, sabia que era
inevitável. Por mais que desprezasse a ideia do exército, das armas, fardas,
hierarquia, ordens, dos gestos repetitivos que lhe pareciam tão idiotas,
respeitava o significado da lealdade, da confiança que se fazia necessária em
todos os momentos, sobretudo nos de ação.
O sargento comandou, com sua voz forte, autoritária,
mas que para Pradinho parecia de puro deboche:
- PELOPES, sentido!
Todos os solados, como mágica respeitaram
imediatamente a ordem. Coturnos e tapas
foram ouvidos, da mesma forma que antes, apenas menos intensos.
- PELOPES, descansar! – Repetiu o sargento.
Pradinho estava assustando, pressentindo que
chegava o momento, mas mesmo assim não conseguiu evitar, pela milésima vez,
pensar o quanto essas repetições de comandos eram inúteis e ridículas.
- PELOPES, sentido! PELOPES, menos o Pradinho,
fora de forma.
Imediatamente os soltados deslocaram-se um
passo à frente. Ouve-se o som de passos de todos os coturnos batendo no chão,
como se apenas um fosse, menos o de Pradinho, que continuou em posição de
sentido, imaginando que todos podiam ouvir seu coração disparar de forma
incontrolável. Um calor subiu-lhe o rosto, sentiu as pernas fraquejarem, mas
manteve a mesma face. Não demonstraria de modo nenhum seu medo.
É tudo que o sargento quer, mostrar para todos
que posso ser dobrado como qualquer outro recluta, como qualquer um desses
soltados voluntários que aqui estão. Talvez seja verdade, mas não hoje - decide
Pradinho.
Em poucos segundos todo o pelotão desapareceu. Uguinho,
ao longe, antes de sumir das vistas do sargento, olhou para trás, viu Pradinho parado,
em posição de sentido, enquanto o Sargento, com cara enfezada andava em seu
redor.
Tá fodido, pensou ele, mas mesmo Uguinho, com
toda sua irreverência, coragem quase suicida, lealdada e sincera vocação
militar, sabia que o sargento não queria testemunhas do que estava para
acontecer.
O sargento repete os mesmos comandos:
- Pradinho: descansar! Pradinho: sentido!
Pradinho: descansar! Pradinho: sentado um, dois! Pradinho: de pé um, dois!
Pradinho: descansar!
Talvez essa repetição, parecida com brincadeira
de adolescente, fosse apenas para provocar e desafiar a desobediência, talvez
fosse pelo nervosismo, pelo confronto inevitável, mas poderia ser apenas
reflexos mecânicos da vida militar ou apenas por saber que podia mandar e que o
saldado teria que obedecer “que nem cachorro vigiando o portão”.
- Pradinho: sentido! Pradinho: descansar!
Entre um comando e outro o sargento olhava em
volta, via que o quartel voltava a normalidade, não havia ninguém observando,
ao menos que pudesse ser visto. Então, com alguma indecisão, disse:
- Espera aqui...
Pradinho ficou sozinho no pátio da companhia, em
posição de descansar, exemplo de soldado treinado em ordem unidade. Ele
pensou: poderia ser pior, ao menos estou na sombra.
Do nada, Uguinho apareceu, saindo de trás de
uma árvore. Por trás de paredes, colunas, escadas, arvores, apareceram cabeças de
soldados e até de um cabo, porém, estão distantes o suficiente para que
Pradinho e Uguinho possam conversar sem serrem ouvidos.
- O que o sargento falou, o que vai acontecer?
– Perguntou Uguinho em tom de cochicho e urgência.
- Ainda não falou! – Respondeu no mesmo tom
Pradinho.
- Onde ele foi, vai ficar até quando aí?
- Não sei, não sei!
- Melhor ir, acho que ele já vai voltar...
O sargento pareceu ficar fora muito tempo.
Pradinho ficou ali parado, conforme o último comando recebido. Quando voltou, o
sargento recomeçou a sessão de sentido, descansar, sentado um, dois, de pé um,
dois. Enquanto girava em torno de Pradinho, ora para esquerda, ora para
direita.
Quando cansou, ou quando percebeu que não
haveria nova insubordinação, disse o sargento, sempre girando:
- Quando casei prometi para minha mulher não
fazer mais maldade com os soldados...
Duas semanas passadas, durante as manobras de
guerra, soltados pararam em uma praça pública urbana, as margens de um grande
rio. Receberam ordens de que poderiam ali descansar, preparar as rações e
alimentarem-se. Das costas, retiram as pesadas mochilas, verde-oliva, arrumaram
o ambiente, reuniram-se em pequenos grupos, dentro de cada um dos pelotões e
prepararam as rações enlatadas fornecidas pelo exercitado brasileiro, EB para
os íntimos.
O comando reuniu-se em um ponto relativamente
longe para não ser ouvido e nem observado, mas em posição que permitia ficar de
olho na tropa. Pradinho preparou seu alimento separado dos outros soltados,
sentia-se mal humorado, irritado, deprimido com aquela situação que lhe parecia
irreal, absurda, incoerente com tudo que esperava e pensava da vida. Comeu em
pé, alerta com os movimentos a sua volta, como se estive montando guarda ou
esperando ser atacada. Do seu lado, seis passos, o sargento do pelotão, sempre
com aquela cara fechada, emburrada, mas ao mesmo tempo debochada, engraçada e
que lhe fazia rir, quando o humor não estava tão ruim.
Em seu campo de visão direita, sem olhar,
Pradinho viu o Sargento caminhar em sua direção. Olhava para baixo, para os
lados, balançava a cabeça, como contrariado com instruções obvias. Ao longe, em
sua frente, observava os soldados de outros pelotões dispersando-se
ordenadamente em fila indiana. Espalhados pela praça, ainda sem formação, estava
o PELOPES, formado por soldados treinado em guerra irregular, combate contra
revolucionário, repressão a agitadores, como falava o sargento. Talvez por
isso, mais rebeldes, com certas regalias, avessos a certas formalidades e
embustes, sempre dispostos a comprar briga por nada. Irritado (ou fingindo
irritação), resmungando (ora como se estivesse conjurando os demônios mais
profundos do inferno, ora simplesmente como o mutley), como de hábito, vinha o
sargento. Pradinho, apesar do tempo de convivência, não conseguia distinguir
quando esse homem estava falando sério, quando era apenas teatro. Achava tudo
muito engraçado, apesar de ridículo e aborrecido ou talvez por isso.
Mas desta vez não estava com paciência para
suportar nenhuma gracinha: putaquepariucaralho, pensou Pradinho ao ouvir do seu
lado o sargento resmungando quase sem abrir a boca.
- Quem foi que colocou essas latas de ração no
lixo, perguntou o sargento, olhando ora para lixeira, ora para o rosto de
Pradinho.
O Sargento, sem esperar resposta, deu alguns
passos à frente, como que procurando os responsáveis (talvez seguro de que não
foram os soldados do PELOPES os responsáveis por aquilo). Olhou em volta e
indeciso voltou-se para Pradinho e disse, olhando para a lixeira cheia de latas
e embalagens com o símbolo do Exército Brasileiro:
- Essas latas vazias de ração militar não podem
ficar aqui. Isso não é da conta de civil, não podem ficar na lixeira pública.
- Fazer o que, agora já jogaram - disse
Pradinho sem esconder a indiferença com a opinião do sargento.
Pradinho não tinha consciência do porque estava
mais irritado e deprimido do que o normal, mas sentia um imenso vazio
simplesmente por ali estar com um fuzil FAL 762, uma pistola e um prato base de
Morteiro de 60mm, usar uma farda camuflada, o brasão de uma faca cravada na
caveira em seu gorro, no ombro uma tarja com a sigla PELOPES em amarelo, que
lhe conferiam certo prestigio, inveja de outros soldados, até certo respeito
entre superiores de outros pelotões e de outras companhias do batalhão.
Detestava tudo aquilo, mais que isso, desprezava. Estava cansado, dormindo
pouco, comendo ração militar. Um desejo imenso de jogar tudo para o alto,
provocar sua expulsão do glorioso exército, poder dizer tudo que sentia pelos
superiores, o que achava de toda aquela merda, aqueles jargões militares.
- Pegue essas latas, Pradinho, e coloque em sua
mochila, elas não podem ficar aqui.
- Mas não fui eu que joguei - respondeu de
imediato, ajeitando o corpo e ficando ereto, na mesma posição do Sargento.
- Não importa quem foi, elas não podem ficar
aqui. Pegue e coloque em sua mochila.
De repente suas vistas escureceram, sentiu um
calor subir para face, o coração disparar. Tentou pensar nas terríveis
consequências de uma expulsão, como não cansavam de lhe lembrar todos os dias
de sua insignificante vida militar. Mas percebeu que naquele momento, naquela
praça pública de um lugar estranho, as margens de um rio, cujo outro lado, nem
tão longe, ficava uma terra estrangeira, não conseguiria evitar a insubordinação
e suas consequências. E tudo isso por quase nada, por um orgulho masculino sem
sentido, uma guerra que nem sua era.
- Sargento, minha mochila não é para guardar
lixo. Pegue o senhor mesmo essas latas e guarde em sua mochila, se não quer que
os civis vejam o que a gente come.
Falou de uma vez só, não dando chance para que
o sargento pudesse tentar convencê-lo ou adverti-lo da gravidade do que acabara
de fazer.
O sargento, talvez percebendo o momento de
descontrole (que parecia esperar há algum tempo), nada disse, deu dois passos à
frente, como que procurando outro soltado para pôr o lixo em sua mochila.
Voltou-se, pegou ele mesmo todas as latas, as embalagens e tudo que poderia ser
identificado como sendo militar e colocou em sua própria mochila. Saiu, deu
seis passos à frente e comandou irritado um grupo de soldados que ainda estavam
sentados em círculos:
- De pé um, dois, mocorongos.
Os soldados, assustados, de pronto
levantaram-se segurando seus fuzis que reluziam ao sol e ficaram em posição. O
Sargento, ignorando-os, voltou os seis passos em direção à Pradinho, ainda na
mesma posição e expressão insubordinada na face cada vez mais vermelha. Apenas
disse:
- No batalhão a gente conversa!
Ao longe, na posição 13 horas, os outros
pelotões marchavam em colunas duplas, avançando rumo ao interior. Mais ou menos
duas horas de marcha depois, já fora da zona urbana, próximo de chegar ao local
onde iriam acampar naquela noite gelada, o sargento aproximou-se por trás, sem
que Pradinho pudesse lhe ver, e disse:
- Aquelas latas iriam denunciar nossa posição.
No acampamento a gente vai usá-las para montar alarmes.
Pradinho nada disse, nem olhou para o sargento,
mas entendeu onde ele queria chegar. De
fato o argumento parecia fazer algum sentido, mas, diante de tantas ordens
idiotas que recebia o tempo todo, como saber as que não eram só para
sacaneá-lo?
- No batalhão a gente conversa – repetiu o sargento,
com evidente satisfação, mas sem esconder uma profunda contrariedade.
O Sargento, nos dias que se seguiram, como que
um torturador habilidoso, lembrava-lhe várias vezes por dia a importância do
soltado obedecer, da gravidade da insubordinação, da possibilidade de expulsão,
da corte marcial, prolongada prisão. Sempre concluía sua fala, sempre sem
testemunha, dizendo:
- No batalhão a gente conversa...
Agora era a hora da conversa.
Pradinho sabia que era inevitável, que os
acontecimentos do campo não seriam esquecidos. O sargento não toleraria
desrespeitado as regras militares. O desprezo que sentia pela vida militar e
tudo que dizia respeito ao exército, começava a contamina-los a tal ponto que
começava a despreza-se também, afinal de contas, também era milico. Começava a
achar que merecia tudo aquilo.
O
sargento continuava girando à sua volta, fazendo aquele discurso disciplinar
que ele não entendia se era verdade ou apenas deboche. Só queria que chegasse
em algum lugar, que ficasse definido qual sua punição, assim o fim poderia
começar.
Quem tá no inferno, não custa dar um abraço no
capeta - pensava enquanto via a boca do sargento se mexendo, mas sem ouvir mais nada.
- É o seguinte - finalmente escutou Pradinho, -
você tem três alternativas: um: paga dez. Dois: sobe na arvore. Três: vai
preso.
- Quero ser preso, sargento - disse Pradinho,
com voz firme, resoluto.
Talvez surpreso, mas sem demonstrar, sem mudar
o tom da voz ou a expressão facial, o sargento, girando em direção contrária,
acrescentou outras condições:
- Pode pagar as dez flexões mentalmente –
acrescentou o sargento.
- Não vou pagar flexão nem subir na arvore,
pode me participar, prefiro ser preso.
- Espere mais um pouco - disse ele e saiu,
deixando Pradinho em posição de descansar.
Uguinho apareceu novamente, outras cabeças
surgiram por trás de todas as colunas e paredes próximas. Desta vez gritaram
para Uguinho:
- O que tá acontecendo?
- não é da conta de vocês - disse Uguinho sem
se importar se seria ouvido.
- Por que não pagou a flexão mental?
- Não vou deixar o EB me sacanear. Se quer me
punir, que seja de verdade.
- Você é que sabe!
O tempo passou mais lentamente ainda do que da
primeira vez que o sargento afastou-se, tanto que desta vez Pradinho não
aguardou na posição de descansar. Quando observou, no final do pátio da
companhia, a aproximação do tenente do pelotão, sem esperar o comando, tomou
posição de sentido.
O oficial, com cara de moleque zombeteiro, mas
fingindo uma expressão séria, chegou próximo e comandou:
- Descansar, soldado!
Imediatamente ele separou as pernas e cruzou os
braços atrás das costas. Cabeça erguida, o medo já havia desvanecido, sabia que
não seria expulso, mas que a cadeia era inevitável, só não sabia ainda qual
seria o tempo que permaneceria na cela do batalhão.
- O que está acontecendo, o sargento disse que
não quer lhe obedecer?
- Ele me deu três opções: eu escolhi ser preso.
Não estou desobedecendo!
- Foi isso? – perguntou calmamente o tenente,
como que não querendo prolongar aquela conversa.
Não esperou a resposta, nem deu outro comando,
apenas virou as costas e se foi, sumindo atrás da parede do alojamento dos
oficiais. Alguns minutos depois voltou o sargento. A mesma face raivosa (e
debochada), mesmo tom de voz, comandou, como se nada tivesse acontecido:
- Pradinho, sentido, Pradinho descansar,
Pradinho sentido: fora de forma.
Nada mais foi dito sobre esse episódio**.
[Ernande Valentin do Pradinho publica na Rua
Balsa das 10 às 6tas-feiras]
Capítulos publicados
* Da letra de Raul Seixas, muito popular nos
batalhões do Exército Brasileiro (EB), naqueles tempos.
** História de
ficção, qualquer semelhança com nomes (especialmente no diminutivo) e situações
vivenciadas no 30 BIM é mera coincidência.
Boa tarde grande amigo Pradinho,aqui é o Luciano 663 como fiquei feliz em encontrar este tesouro que vc publicou, cara quantas lembrancas boas viagei no tempo, grande qbraab amigo qualquer coisa meu telefone e 43-996013053, estou e Jaguariaíva PR, grande abraço a todos Pelopianos.
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