Paula e o fone de ouvido
Eu não me animei muito confesso. Nunca valorizei muito bem aquilo que as pessoas elogiavam de mim. Ainda não valorizo. Não me convenço. Com o fazer musical não foi diferente.
Depois de que retiraram um novelo da minha cabeça não tenho mais o violão. Digo, a habilidade de tocar o violão. E a voz nem sei se tive alguma vez. Perdi as gravações no tumulto de idas e vindas e na destruição da casa familiar. Não poderia opinar. Não lembro.
Mas o que quero contar aqui é outra coisa. De como a música acabou sendo meu refúgio. E como isso veio em transmissão complexa - genética, memórias, infância, emoção e saudades - do meu pai.
Meus pais moraram juntos tão somente quatro ou cinco anos. O suficiente para produzir os três irmãos que somos. Depois ele partiu para um outro país, o México; e depois, já no Peru, de volta para Tacna, a cidade onde nascemos, onde não morávamos mais - tínhamos migrado para a capital, Lima.
Ele sempre gostou em exagero de música. Suspeito que gastava muito em discos. Tal como os três filhos dele acabamos também gastando. Quando, nas férias, o visitábamos em Tacna - e nos finais de semana no Chile - sempre tinha música tocando na casa, no carro, no consultório. Aprendemos a nos encantar com os aparelhos, com as capas dos discos de vinyl, com as fitas enormes e misteriosas, e com a grande diversidade de músicas espalhadas até pelo banheiro.
Lembro um pouco dele dançando na sala ou dentro do carro, soltando o volante e deixando ele (o carro) também dançar.
Quando ele separou da nossa mãe deixou uma parte da coleção de discos - nada comparado ao mundo de LPs que ficavam na casa dele em Tacna, ou na casa da esposa dele, em Arica. Mas com o que deixou prenchemos nossa imaginação, recheamos nossos sonhos, afinamos gostos pelo som e pela beleza da música.
Eu especialmente, que virei um tímido formidável entre os 9 e os 25 anos, me refugiei na música. Esperava impaciente as aulas acabar para correr em casa, fazer voando os deveres - tudo o qual eu considerava fácil - para botar os fones de ouvido gigantes que ele tinha deixado para trás e escutar discos e discos. De todo tipo, tão proliferante era meu pai em gostos musicais ou em desejo de comprar e sentir o som dentro de si mesmo.
Anos depois, muitos anos depois, eu ando pelas ruas de fone de ouvido, escuto pelo menos umas 4 horas de música por dia. E sim. Ela é o meu refúgio definitivo diante da dor, do desespero, do desalento e do desânimo.
As facas não me penetram, as hemorragias não me derrubam, o tempo é meu e assobia ao meu ritmo. Tudo graças à música, essa herança definitiva que meu pai nos deixou.
Comprovei isso hoje cedo. Saindo de casa com uma tristeza dilacerante que não costumo viver. Foi a música dos Alabama Shakes e dos Kings of Leon que me salvou de alguma besteira.
Mas descobri que o meu fone amado - o discreto que levo a todo lugar - está rasgando. Usar magia sempre tem um preço.
[Julio Wong escreve na Rua Balsa das 10 quando pode]
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